quinta-feira, 15 de julho de 2010

“A ilha do medo”

“A ilha do medo” (Shutter Island, Martin Scorcese, Estados Unidos, 2010)
Postado em 26 de março de 2010, às 11:00

Quer ver um filme de suspense, um “thriller” inteligente?
Assista ao último Scorcese. Sem medo de errar.
É uma obra prima na linha dos melhores Hitchcock, com direito até a uma escada em caracol como em “Vertigo - Um corpo que cai”, ou Brian De Palma de “Carrie, a estranha”, ou seja, os donos do gênero.
“Ilha do medo”, vindo do mestre Martin Scorcese, que alguns consideram o maior cineasta vivo, é um presente para quem gosta de bom cinema.
Surpreenda-se também com o talento do ator Leonardo Di Caprio numa interpretação soberba. É o quarto filme em que ele trabalha com o diretor (os outros três foram “Gangues de New York”, 2002, “O aviador”, 2004 e “Os infiltrados”, 2006, que deu o único Oscar de direção para Scorcese).
Em Berlim, quando o filme foi apresentado no Festival deste ano, Leonardo Di Caprio assim falou sobre o papel dele em “Ilha do medo”:
“É um personagem que se fragiliza e isso é irresistível para um ator. O que me atrai é a possibilidade de sondar a dor humana e de me expressar em diferentes níveis, inusitados para o público e para mim”.
O filme começa com uma tela branca e pouco a pouco vemos surgir um barco saindo de um espesso nevoeiro em um mar revolto. O detetive Teddy Marshall passa mal. Seu parceiro o ajuda.
Esse é o tom do filme que já nos assalta com apreensão. Desde o início sabemos que tudo vai ser pesado, encoberto, intrigante.
“Ilha do medo” é magistralmente filmado nas Boston Harbor Islands, um cenário sombrio e assustador. Grandes ondas se quebram sobre penhascos. Um manicômio judiciário é o único prédio da ilha que ostenta um misterioso farol.
Estamos em 1954. Dois agentes federais, Di Caprio e Mark Ruffalo, descem do barco e são recebidos por guardas armados com fuzis. Vieram investigar o desaparecimento incompreensível de uma mulher internada no manicômio de segurança máxima. Seu crime nefando fora o de matar os próprios filhos.
Ben Kingsley, que incarna o diretor do manicômio, é um dos psiquiatras que vai fazer as honras da casa à dupla detetivesca. O outro médico é interpretado por um ator que Ingmar Bergman adorava, Max Von Sidow.
Baseado no livro “Paciente 67” de Dennis Lehane, o roteiro, juntamente com a edição do filme, criam o clima de descobertas assustadoras que vão contando uma história sob o prisma do protagonista, o detetive de Di Caprio, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, que testemunhou a libertação dos campos de concentração e que ficou marcado pelo horror e impotência do ser humano frente ao mal que vem do seu semelhante.
A investigação sobre o desaparecimento da interna filicida vai trazer à tona outros mistérios e tremendas inquietações. O detetive Teddy Marshall vai afundando aos poucos nesse lugar pantanoso.
E o espectador começa a partilhar de um obscuro conhecimento que se materializa em “flashes” que vão aumentando em tempo e se transformando em cenas no decorrer do filme. São pesadelos, delírios, alucinações?
Martin Scorcese mergulha fundo no universo da natureza humana que abriga em seu canto mais escuro o mal e a loucura. Como é difícil transitar nas fronteiras do ser...
Quando esse tema é desenvolvido no cinema por um diretor como Scorcese, que não se limita a querer meter medo nas pessoas, o resultado é assombroso.
Aqui os monstros crescem na sombra da alma humana. E assustam porque nos assaltam de dentro de nós mesmos.
A uma certa altura, o psiquiatra Crawley ensina que a palavra “trauma” vem do grego e significa “ferida” e que estas podem criar monstros que devemos deter dentro de nós.
A música é um elemento que pontua o filme e que faz crescer a emoção: o som pungente do violino da peça de Mahler, intervenções de uma orquestra com cordas lancinantes de John Cage, sons que nos remetem a gritos...
E se você tiver paciência e esperar, no fim dos créditos ouvirá Dinah Washington cantar com voz sublime “This bitter earth”, Esta terra amarga:
No fim, tudo podia
Não ser tão amargo...
Nessa terra amarga
Para que serve o amor?
Vá ver esse momento privilegiado do cinema e aproveite a chance de refletir sobre suas próprias fragilidades.

2 comentários:

  1. GK, em 31 de março de 2010, às 14:33
    Eleonora, sigo suas crônicas. Semana passada assisti "SINGLE MAN", me nego a dizer o titulo em português... é um absurdo.
    Este final de semana irei assistir "A ILHA DO MEDO".
    GK

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  2. Sylvia Manzano, em 26 de março de 2010, às 22:36
    Num mundo onde - na minha humilde opinião - ninguém quer ver as feridas internas e colocar tudo do lado de fora - que não deixa de ser uma piada, às vezes, porque alguém pode até estar dormindo com o inimigo, mas oh, a sagrada família nos ampara, nos apoia, é um porto seguro - é bom saber que Scorcese nos enfia goela abaixo, nossos medos mais recônditos ou como diz tão a eleonora: Aqui os monstros crescem na sombra da alma humana. "E assustam porque nos assaltam de dentro de nós mesmos."Conclusão: vou me munir de coragem e vou ver esse filme e descobrir se, afinal, a mulher que matou seus próprios filhos foi encontrada.
    Por puro preconceito, eu não imaginaria que Leonardo Di Caprio diria uma coisa tão bonita dessas:
    “É um personagem que se fragiliza e isso é irresistível para um ator. O que me atrai é a possibilidade de sondar a dor humana e de me expressar em diferentes níveis, inusitados para o público e para mim”.
    Essa possibilidade de sondar a dor humana, numa época onde se foge da dor, como o diabo foge da cruz, é digna de louvor.
    Não sei se tem a ver, mas acho que tem: hoje eu estava num ônibus em São Paulo e tinha uma mulher possivelmente em surto, falando sozinha e muito brava com quem quer que ela estivesse falando na imaginação.
    O cobrador começou a falar: - Esqueceu de tomar o diazepan, o gadernal.
    A mulher, acho, nem ouviu.
    Eu desci perto do Hospital das Clínicas, a mulher desceu atrás de mim e o cobrador botou a cabeça pra fora e continuou a dizer que ela tinha esquecido de tomar o diazepan.
    Não sei o que me deu na pituca que eu disse a ele que a mulher estava doente e merecia respeito.
    Ele respondeu que eu não esquecesse de tomar o diazepan, que logo era eu que estaria gritando por aí.
    Muitas e muitas vezes, vi pessoas rindo, caçoando ou ficando bravas com alguém que esteja dando demonstração de estar em surto pelas ruas, como se aquilo fosse uma coisa muito engraçada e fico pensando que de todas as discriminações, a pior talvez seja com os loucos.
    Pronto: falei.
    Talvez eu realmente tenha esquecido de tomar o meu diazepan do dia... rsrsrs
    Márcia Brandão Raposo, em 26 de março de 2010, às 22:11
    Confesso que sai do cinema sem ter certeza de que havia gostado. Na verdade, não gostei. Os dias foram passando e eu reformulando com os meus botões. É genial, sim! Pesado. Mas genial!

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