domingo, 25 de fevereiro de 2018

Eu, Tonya




“Eu, Tonya”- “I, Tonya”, Estados Unidos, 2017
Direção: Craig Gillespie

A carência afetiva atua de maneira trágica nas escolhas de vida dos seres humanos. Cria uma espécie de daltonismo afetivo e eles confundem o vermelho com o verde. Envolvem-se com pessoas espertas que tem faro para essa fragilidade que leva a comportamentos masoquistas de submissão. Quando isso acontece, formam-se pares difíceis de separar, o que só vai acontecer depois de muito sofrimento.
Aquela menina que acaba de fazer 4 anos (McKenzie Grace, um prodígio de graça), vestida como uma boneca, é trazida pela mão da mãe tirânica, ambiciosa, dominadora e cruel, para ser treinada num dos esportes que mais valoriza a elegância e a delicadeza. Na patinação artística o que é julgado não é somente a capacidade acrobática mas a maneira como a apresentação acontece. Ali vencem os valores estéticos que fazem a performance parecer natural e fácil mas também os modos da patinadora, seu traje e a música escolhida. Julga-se o quanto ela é bela e etérea.
E é uma pena porque aquela menina vai crescer e trazer o ambiente onde foi criada para a cena da patinação. Suas roupas, costuradas pela mãe, e depois por ela mesma, são de mau gosto, com brilhos mal colocados, cores berrantes e os detalhes nada elegantes. Seu cabelo é rebelde e os gestos arrogantes. Ela é caipira e submissa. A tal ponto que seu comportamento na pista é estimulado por surras de escova no banheiro que a mãe considera eficaz para uma boa performance.
Essa história é real. Tonya Harding foi a primeira mulher americana que ousou fazer um “triple axel” ou seja, saltar e girar três vezes no ar e cair com leveza, como se tudo aquilo fosse natural. Era amada pelo público e seu objetivo era ganhar uma medalha de ouro nas Olimpíadas de Inverno em 1994.
Mas seu sonho tornou-se um pesadelo.
Quase todo mundo ouviu falar do “incidente” ocorrido com Nancy Kerrigan, rival de Tonya nas pistas de patinação que excluiu Tonya para sempre daquilo que ela mais amava fazer. Era a sua vida.
O filme “Eu, Tonya”, é dirigido por Craig Gillespie como se fosse um documentário, com depoimentos de pessoas como a mãe dela (Allison Janney, espetacular como a bruxa da vida de Tonya), o marido Jeff (Sebastian Stan) que se aproveitava dela e era tão cruel quanto foi a mãe, fazendo Tonya sentir-se culpada e merecedora de surras o tempo todo, o patético guarda-costas megalomaníaco (Paul Walser Hauser) e ela mesma, Tonya, interpretada com paixão pela atriz australiana Margot Robbie.
O filme foi indicado para 3 Oscars: melhor atriz para Margot Robbie, melhor atriz coadjuvante para Allison Janney e melhor edição.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Trama Fantasma




“Trama Fantasma”- “Phantom Thread”, Estados Unidos, 2017
Direção: Paul Thomas Anderson

Ele veste com requinte as mulheres ricas da aristocracia inglesa e europeia nos anos 50. Aquela casa elegante e imaculada, em Londres, é um templo que ele preside como o grande sacerdote, o único homem naquele território.
Suas clientes olham Reynolds Woodcok (Daniel Day-Lewis) com adoração e se submetem ao seu bom gosto e cuidados. Ele é gentil, adulador mas distante. Há sempre um certo temor na sua presença, invisível sustentação do seu narcisismo.
A irmã, Cyril (Lesley Manville), está ali para que nada falte, nem destoe. Horários, refeições e trabalho. Tudo isso comandado por regras pétreas, que Cyril faz respeitar. Ele a chama com algum afeto e humor de: ”minha velha coisa e tal”. Séria, olhar penetrante, vestida com discrição e cabelos num coque modesto, ela vela pelo irmão.
Todo dia, depois que as costureiras chegam, ainda na madrugada e tiram seus casacos para vestir os aventais brancos e imaculados, ele entra em cena depois de uma toalete meticulosa.
O café da manhã é um ritual sagrado. Silêncio, introspecção, recolhimento. Ele mesmo serve seu chá enquanto desenha croquis. Cyril e a modelo do momento são meras espectadoras.
Solteiro convicto, Reynolds de tempos em tempos muda de musa. Afinal, cansa-se delas, não há novidade, nem mesmo vontade de corrigir os defeitos. Ele não nasceu para ser um Pigmalião. Elas são meros corpos necessários para a criação dos vestidos. É Cyril que as dispensa, com eficiência. Afinal Reynolds tem que ser poupado de esforços inúteis. E mulheres não faltam para fazer esse papel. 
Até que um dia, num restaurante perto de sua casa de campo, ele nota aquela garçonete alta, pele muito branca, um pouco desajeitada mas com um sorriso difícil de qualificar.
Ele faz o pedido, sempre sorrindo para ela, sedutor. É uma lista enorme. Ele está faminto? Ela não comenta nada e só responde quando ele pergunta.
Alma (Vicky Krieps) é convidada para jantar naquela noite.
Na mesa, ele pergunta se é parecida com sua mãe, quer ver o retrato dela e aconselha:
“- Você deve ter ela sempre com você. Eu tenho costurado no interior do meu casaco um cacho do cabelo da minha. Foi ela que me ensinou meu ofício. Devo tudo a ela.”
Depois, mostra para Alma o retrato da mãe vestida de noiva para o segundo casamento:
“- Fui eu que fiz. Minha irmã me ajudou. Vestidos de noiva são complicados porque há muitas superstições. Quem costura não casa...”
“- E sua irmã? Casou? ” pergunta Alma.
“- Não. Ela vive comigo.”
Intuitivamente, Alma, que não quer ser mais uma que será descartada como inútil, vai descobrindo as amarras de Reynolds. Ele mesmo deu a ela, em suas primeiras conversas, a chave das algemas maternas. E, no avesso da barra de um vestido de noiva, ela descobre costurada a senha que faltava.
Mulher forte, Alma vai desconstruir a rigidez daquele homem por quem se apaixonou. Como uma feiticeira, ela saberá o que procurar na floresta para obter resultados.
Paul Thomas Anderson, 47 anos, tem dois Oscars de melhor roteiro original por “Boogie Nights”1997 e “Magnolia”1999.
É um diretor com filmes premiados em Cannes, Berlim e Veneza. Sempre preocupado com a estética e as atuações do elenco, em “Trama Fantasma” faz uma bela parceria com o excelente Daniel Day-Lewis, seis vezes indicado ao Oscar de melhor ator (levou três), tem 60 anos e diz que esse será seu último filme. Pena. Ele está esplêndido. E Vicky Krieps é uma estrela descoberta em Luxemburgo.
O filme tem 6 indicações ao Oscar: filme, diretor, ator, atriz coadjuvante (Lesley Manville), trilha sonora (Jonny Greenwood) e figurinos (longos clássicos com detalhes marcantes em cores e tecidos gloriosos).
“Trama Fantasma” é como um vestido de alta costura, feito à mão, com tecido, corte e pontos impecáveis para deslumbrar na passarela. Uma obra de arte.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Lady Bird - A Hora de Voar




“Lady Bird – A Hora de Voar”- “Lady Bird”, Estados Unidos, 2017
Direção: Greta Gerwig

Aquelas duas são tão iguais que precisam estar sempre brigando. Mãe e filha. Duas pessoas muito amorosas mas que não se deixam levar porque tem medo do que pode acontecer.
A filha, Christine, que se batizou “Lady Bird” é exagerada e se irrita porque o mundo que ela quer não existe. Ou talvez exista, fora de Sacramento, aquela cidadezinha sem graça onde vive, pensa ela. E por isso quer voar para bem longe. Nova York talvez. E, quando estiver lá, certamente vai sentir falta de Sacramento, da mãe, do pai, dos irmãos adotivos, dela mesma até, quando era mais ingênua e se decepcionava com as pessoas que punha num pedestal.
Greta Gerwig, 34 anos, única diretora na lista dos diretores indicados ao Oscar 2018 e quinta mulher a cumprir essa façanha, em seu primeiro filme, escrito também por ela, emplacou 5 indicações. Além de melhor filme, melhor diretora, melhor roteiro original, levou também a indicação de melhor atriz para Saoirse Ronan, a Lady Bird encantadora e detestável, às vezes, plena no papel que é escrito pela diretora com tintas autobiográficas e o de melhor atriz coadjuvante para Laurie Metcalf, ótima como a mãe que se desdobra em cuidados com os filhos, marido e o trabalho no hospital psiquiátrico e que tem que brigar com a filha para não abraçá-la e protegê-la de tudo e todos.
Quem viu “Frances Ha” de 2012 , que Greta Gerwig escreveu junto com o diretor Noah Baumbach, seu namorado desde 2011, revê a personagem em “Lady Bird” mas numa versão mais doce, mais menina, ainda não tão crescida, nem dona do próprio nariz. Está prestes a embarcar na aventura que a espera. Mas ainda não. Os passos de bailarina ainda são tímidos. Ainda virão os “grand jetés” pelas ruas de Nova York.
Pode ser que essa “Lady Bird”, seja produto da memória afetiva de uma Greta Gerwig que faz uma volta à Sacramento e vê tudo com olhos mais amorosos? Com saudades do tempo de menina?
“Lady Bird” é um filme que respira ansiedade e sinceridade. É bem provável que agrade mais às mulheres. Afinal, somos todas Lady Bird, mais ou menos parecidas com ela. Passamos todas no século XX por tudo isso que ela vive no começo do século XXI.
A adolescência é um período da vida que, visto de longe, parece simples e ingênuo mas como é sofrido. Todas e todos sabemos bem disso.


sábado, 17 de fevereiro de 2018

O Insulto



“O Insulto”- “L ’Insulte”, França, Líbano, 2017
Direção: Ziad Doueri

Para entender um pouco melhor a situação política do Líbano, temos que lembrar que a região é conturbada e que houve uma guerra civil entre 1975-1990 que dividiu o país, colocando em confronto os muçulmanos aliados à Síria e os cristãos aliados ao Ocidente. É um lugar de relacionamentos tempestuosos. Para aumentar a tensão, ocorreu que milhares de palestinos buscaram refúgio no Líbano e países vizinhos, depois de expulsos pelos israelenses das terras que ocupavam.
Em 1982, tropas enviadas por Ariel Sharon, Ministro da Defesa de Israel, iniciaram uma operação, “Paz na Galileia”, destinada a neutralizar as tropas palestinas no sul do Líbano, que atacavam o norte de Israel.
Uma frase dita com raiva por um dos personagens do filme refere-se a essa operação militar:
“- Quisera que Ariel Sharon tivesse exterminado todos vocês.”
E o acontecimento que deflagrou o conflito entre um libanês do partido cristão, Toni Hanna (Adel Karam) e o refugiado palestino Yasser Salameh (Kamal El Basha) foi uma coisa boba. A discussão na rua acabou no tribunal e tomou tal proporção que levantou embates entre grupos inimigos na cidade de Beirute.
O roteiro de Ziad Doueri, muçulmano e sua ex mulher cristã, Joelle Touma, vai mostrando camada por camada dessa briga que tem raízes profundas e antigas. E o talento do diretor, que foi assistente de Quentin Tarantino, envolve o espectador.
Quando o filme começa, vemos os partidários do partido cristão num comício atacando verbalmente os palestinos. E a mulher grávida do libanês cristão pede para o marido que a leve para a aldeia de Damour, terra da família de Toni, próxima de Beirute mas onde haveria um ambiente mais calmo. Ele se recusa a ouvi-la. É um homem jovem e autoritário.
Seu opositor, o refugiado palestino, mais velho, comanda reformas da prefeitura. Estando debaixo da sacada do apartamento onde moram Toni e sua mulher, cai água na cabeça dele, que fica zangado, xinga o outro que está molhando a plantas e diz que a calha está colocada de maneira errada. Pede para fazer o conserto mas o outro não deixa e exige que ele peça desculpas.
Quando o palestino vai pedir as desculpas, aconselhado por sua mulher, a coisa esquenta já que a TV na oficina de Toni berra um discurso do partido cristão contra os palestinos.
E mais, o libanês solta a frase já citada sobre Ariel Sharon olhando com raiva para o outro e leva um murro no estômago.
Pronto. A situação adquire contornos radicais e vai para o embate jurídico no tribunal.
E é lá que o filme cresce porque coloca questões difíceis de responder. Quem é o culpado? Quem agrediu primeiro? Ou ainda: são todos vítimas?
As razões para as guerras fratricidas são inúmeras. As cicatrizes não se consolidam, as feridas se abrem ao menor acontecimento que parece fútil, como a exigência do pedido de desculpas pela água derramada que levou à uma ofensa, que gerou ofensa maior ainda e por fim, deu vazão à violência.
A natureza humana não é pacífica. Em nós todos a agressividade é uma condição natural para a defesa da vida. Mas, diferente dos outros animais, guiados pelo instinto, temos acesso à reflexão, ao adiamento do primeiro impulso. Só isso pode nos levar a pensar em convivência com os que são diferentes de nós.
No estacionamento do tribunal há uma cena, envolvendo os dois ótimos atores, que acena com uma leve esperança e alívio da tensão. Mas até quando?
O filme escapou da censura no Líbano e foi a terceira maior bilheteria do ano passado no país. Está na lista dos indicados ao melhor filme estrangeiro e é a primeira vez que o Líbano concorre ao Oscar.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Todo o Dinheiro do Mundo




“Todo o Dinheiro do Mundo”- “All the Money in the World”, Estados Unidos, 2017
Direção: Ridley Scott

O diretor britânico Ridley Scott tem no currículo filmes inesquecíveis como “Alien”1979, “Blade Runner”1982, “Thelma e Louise”1991, “Perdido em Marte”2015, entre outros. No ano passado completou 80 anos e enfrentou um problema não imaginável antes dos eventos marcados por manifestações contra o assédio sexual.
Ora, Kevin Spacey, apontado como um dos figurantes da lista negra, era o ator principal do novo filme de Scott, “Todo o Dinheiro do Mundo”, interpretando o bilionário J. P. Getty que, aos 80 anos, tem o neto mais velho sequestrado na Itália e recusa-se a pagar o resgate, mesmo sendo o homem mais rico do mundo.
O diretor foi rápido. Chamou o talentoso Christopher Plummer, 88 anos e, um mês antes do lançamento, refilmou todas as cenas. Foi um acerto a mais na vida desses dois octogenários. A única indicação para o Oscar do filme foi a de de melhor ator coadjuvante para Plummer, mostrando o faro indiscutível de Ridley Scott.
“Todo o Dinheiro do Mundo” conta o que foi um dos sequestros mais conhecidos do século XX, em 1973, nas ruas  de uma Roma que vivia momentos de festa e liberdade de costumes. Jean Paul Getty III (Charlie Plummer, sem parentesco com Christopher), de 16 anos, é forçado
a entrar numa Kombi velha e é levado por bandidos sujos e primitivos para a Calábria, sul da Itália. Pedem 17 milhões de dólares como resgate.
E o homem que era o mais rico da história do mundo nega-se a pagar um centavo, fazendo até uma piada com isso e seus 14 netos. No começo, todos pensavam que tudo não passava de uma brincadeira ou até de um modo de tirar dinheiro do avô, imaginado pelo próprio neto.
Mas, conforme o sequestro se alonga por meses, e a mãe de Paul (uma impecável Michelle Williams), divorciada do filho do velho Getty (Andrew Buchan), um homem drogado, luta para conseguir o dinheiro que ela não tem, com a ajuda de Fletcher Chace (Mark Wahlberg, apagado no papel), luzes sombrias focam a personalidade do avô.
Um colecionador de beleza, ele encontrava mais prazer com as peças únicas que comprava do que com a convivência com outros seres humanos. Na mansão palaciana de Londres, quadros de mestres renomados que valiam fortunas, esculturas gregas e romanas, faziam companhia para o velho arrogante e solitário. Enormes lareiras, sempre acesas, tentavam aquecer o lugar gelado e seu frio habitante.
Mas nada é para sempre. Nem ninguém. O desfecho da história é conhecido.
E Ridley Scott demonstra mais uma vez, nesse suspense doloroso, o que o dinheiro não pode comprar. Uma fábula moral a ser relembrada no século XXI.


segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Três Anúncios para um Crime




“Três Anúncios para um Crime”- “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri”, Estados Unidos, 2017
Direção: Martin McDonagh

Na neblina da manhã, vemos três cartazes semidestruídos ao longo de uma estrada deserta. Mais tarde, quando o sol aquece aquela mesma estrada, Mildred Hayes (Frances McDormand, extraordinária) olha aqueles cartazes e tem uma ideia. Seu rosto, vincado e triste, se ilumina, enquanto a voz da divina Renée Flemming canta uma melancólica canção irlandesa.
Mildred segue até a agência de publicidade na cidadezinha e aluga os três cartazes. À noite, um policial vê os cartazes ostentando duas perguntas e um lamento: “E aí xerife Willoughby? ”, “E ainda nenhuma prisão? ”, “Estuprada enquanto morria “.
A mãe de Angela Hayes quer que o assassino seja descoberto e preso. Já se passaram sete meses e nada aconteceu.
A atriz Frances McDormand (“Fargo”) faz uma mãe abrutalhada e teimosa com tanta convicção que espanta. A personagem pouco fala mas sabe agir. E transmite essa certeza da vingança com os tons da dúvida. Uma mulher contra tudo e todos. Porém, ela mesma está em conflito com a culpa que também sente por sua relação tempestuosa com a filha.
O elenco de apoio está muito bem. Desde o xerife Willoughby (Woody Harrelson), passando pelo policial Jason Dixon (Sam Rockwell), até o ex marido Charlie (John Hawkes). Todos expressam vivamente o quanto é rude e grosseiro o pessoal que habita aquele lugar. Brigas, palavrões que pontuam cada frase que é dita, tudo neles é intempestivo e cru.
Carregados com “a raiva que germina a raiva”, como diz uma personagem que não sabe o que diz, vão ter que passar por um inferno de retaliações, até conseguir, talvez, ter calma antes de agir, como aconselha outro personagem que sai de cena deixando cartas.
Com 7 indicações ao Oscar (melhor filme, atriz, dois atores coadjuvantes, roteiro original, edição e trilha sonora), o filme dirigido pelo britânico Martin McDonagh passa um retrato de um lugar distante, no coração dos Estados Unidos, onde a lei do mais forte impera. A violência é a solução dos problemas, o racismo está entranhado na alma dos brancos e a sexualidade se expressa com brutalidade.
Um retrato assustador e irônico, pontuado por um humor corrosivo. Um alarme para o mundo de hoje que descamba para a crueza.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Sem Amor



“Sem Amor”- “Nelyubov”, Rússia, França, Bélgica, Alemanha, 2017
Direção: Andrey Zvyagintsev

Há uma beleza calma nas paisagens invernais que abrem o filme. Mas na natureza humana os invernos são espaços internos secos, duros, gelados. Quando uma relação afetiva chega a esse ponto, morre. Talvez haja a esperança de renovação de afeto em outro lugar, com outro parceiro.Talvez.
A câmara mostra a saída da escola. Crianças partem sozinhas. Uma ou outra tem a mão de uma mãe para segurar ou a de um pai que aproveita para passear o cachorro da família.
Alyosha (Matvey Novikov), 12 anos, não volta direto para casa. Anda pelas margens do rio onde crescem grandes arvores. Encontra uma fita amarela e brinca com ela. A fita é daquelas que a polícia usa para isolar o local de um crime.
Arrepiados na plateia, sentimos um mal estar.
Quando o garoto chega em casa, a mãe Zhenia  (Maryana Spivak) não faz nenhuma demonstração de afeto. Fria, distante, briga com ele por causa de seu quarto desarrumado. Pessoas vem visitar o apartamento que está à venda.
O pai Boris (Aleksey Rozin) quando chega, também não olha para o filho. Começam uma grande briga. Discutem o destino do filho.
Percebe-se claramente que o filho é um peso em suas vidas. Querem resolver a situação cada um jogando a responsabilidade sobre o outro. Finalmente, a mãe vence com a proposta de mandá-lo para um colégio interno:
“- Vai ser bom para ele. De qualquer forma depois vem o exército.”
Alyosha escuta, em lágrimas silenciosas e escondido, a decisão sobre o seu destino. Rosto congelado de dor, sem emitir um único som, ele é a imagem da devastação interna. Crianças precisam de pais, mesmo inadequados. Alyosha não tem ninguém. O mundo para ele é um deserto, onde ele se perde, impotente.
Tanto a mãe quanto o pai do menino já refizeram suas vidas e não escondem a pressa em vender o apartamento e se livrar do filho.
Mas é nesse momento que acontece o inesperado. O garoto sumiu. Não foi à escola por dois dias seguidos. A mãe recebe o telefonema e avisa o pai. Este fica relutante em sair do trabalho para ir com a mulher na delegacia. Mas acaba indo.
Nenhum dos dois sabe o que aconteceu com o filho. Dormiram fora com seus novos parceiros e não pensaram no menino. Na entrevista na polícia fica claro que pouco sabem sobre o filho, seus amigos e lugares preferidos.
Um grupo de voluntários começa as buscas.
Frente a um lago, o pai pergunta se não vão procurar ali.
“- Procuramos pessoas vivas...”, responde o encarregado.
Como será o final dessa história sem começo feliz? Fica claro que o menino é fruto de uma gravidez inesperada e de um casamento às pressas.
Há uma secura, um egoísmo monstruoso nesses personagens que só pensam em si mesmos e suas vidas refeitas. Só procuram a polícia para manter a imagem perante os outros.
Com os novos parceiros haverá uma esperança de mudarem? Parece que o diretor Andrey Zvyagintsev  (“Elena” e “Leviathan”) não aponta nessa direção.
Zhenia nos olha com um olhar que continua vazio de afeto, apesar de dizer que ama o seu companheiro. E Boris trata seu filho pequeno com a mesma indiferença com que tratava o outro.
O fato é que os personagens de “Sem Amor” querem preencher um vazio interior mas não sabem como. E claro que não é só na Rússia que vemos pessoas assim. Nossa cultura, voltada para a realização de desejos materiais, cada vez mais se esquece da necessidade de promulgar a solidariedade entre as pessoas. E isso se aprende em casa.
“Sem Amor” foi indicado para a lista dos cinco filmes que concorrem ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

A Forma da Água






“A Forma da Água”- “The Shape of Water”, Estados Unidos, 2017
Direção: Guillermo del Toro

Águas verdes fazem dançar as algas em torno a uma casa submersa. Ouvimos em “off” a voz de um narrador que quer nos contar a história de uma princesa muda. Na sala da casa debaixo da água, uma moça sonha com algo agradável Seu rosto mostra isso.
Será a princesa que não fala? Ela flutua mas, aos poucos, vai descendo para o sofá. A voz do narrador fala de um monstro que vai aparecer.
De repente ela acorda. Já é hora de ir trabalhar. Mas antes, ela se deixa levar para um mar de delícias, na água de sua banheira. É o seu elemento e o seu prazer. Sem isso não daria para começar o dia.
Mas o que são aquelas estranhas marcas em seu pescoço? Sobre isso paira um segredo só dela. Sabemos que foi abandonada ainda bebê e vivera num orfanato desde então.
O vizinho (Richard Jenkins) desempregado e prestativo é seu único amigo. Ele também tem seus segredos. Por que insiste em adorar aquelas tortas enjoativas que ele vai saborear olhando com um brilho nos olhos para o rapaz que fica atrás do balcão?
Bem, Elisa (Sally Hawkins, esplêndida) não é de condenar ninguém. Não se incomoda com as manias do vizinho. E convidada a provar a iguaria, discretamente cospe a gororoba no guardanapo.
No trabalho dela, uma base do exército americano, faz par com Zelda (Octavia Spencer) que a protege sempre que pode.
Olhando bem, aquela mocinha aérea não parece que pertence a esse mundo.
Como ela é só muda, escuta bem as pessoas mas não é compreendida pela maioria. Sua personalidade doce é confundida com ingenuidade. Mas não se enganem. Ela sabe ser combativa e lutar pelos seus desejos.
E tudo vai mudar para melhor, e também para mais perigoso, quando o sádico agente (Michael Shannon) traz um tanque para o laboratório de pesquisas.
Aprisionaram um ser que vivia nas aguas amazônicas. Lá ele era venerado como um deus. E o que querem dele?
Tudo é segredo. Porque os russos estão à espreita para roubar as descobertas dos americanos. É a Guerra Fria e todo cuidado é pouco. Qualquer um pode ser o inimigo, acreditam os militares e aquele agente mau concorda.
Elisa vai viver dias de céu e inferno, perdidamente apaixonada por seu príncipe submarino, que ela descobriu no tanque ultra secreto.
Só ela pode salvá-lo de um destino cruel.
É nesse tom de contos de fada que o diretor e roteirista mexicano Guillermo del Toro nos envolve em “A Forma da Água”. Ele sabe criar uma atmosfera ambígua, ao mesmo tempo infantil e adulta, cheia de alusões aos males do nosso tempo, como o racismo, o preconceito, o julgamento apressado, a paranoia e a maldade pura e simples.
A produção de arte se esmera nos detalhes que acompanham a trama. Os cenários, os figurinos dos personagens, a trilha sonora inesquecível de Alexandre Desplat, tudo nos carrega ao mundo dos anos 50, com um charme todo especial. Há até uma homenagem ao cinema do pós guerra, preto e branco, cheio de danças e músicas.
E quando ouvimos a divina Renée Flemming cantando “You’ll never know”, já estamos todos fisgados na torcida  por Elisa e seu príncipe submarino (Doug Jones).
É tão bom quando tudo que se passa na tela nos envolve e não vemos o tempo passar. Sonhamos o sonho dos personagens e não queremos acordar.
“A Forma da Água” consegue tudo isso em duas horas de uma história de amor bem contada.
O filme é candidato certo a vários prêmios. Começou a coleção com o Leão de Ouro em Veneza.
Vocês vão gostar.