sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Animais Noturnos


“Animais Noturnos”- “Nocturnal Animals”, Estados Unidos, 2016
Direção: Tom Ford

A abertura é chocante. Exóticas mulheres gordas rebolam nuas em câmara lenta, num palco com cortinas vermelhas. Rostos de deboche, bandeirinhas americanas e fogos de artifício nas mãos. Elas são como que líderes de torcida de um jogo bizarro.
Depois, numa galeria de arte, convidados bebem e conversam, enquanto as gordas, deitadas em plataformas brancas, continuam seu show.
Susan, a dona da galeria (Amy Adams), bela e fria, volta para sua casa contemporânea no alto da colina de Los Angeles, cercada de obras que expõem. Vemos Damien Hirst, Robert Motherwell, artistas de primeira linha que, como as gordas, também ironizam a cultura americana. Jeff Koons trona no jardim da casa com seu cachorrinho gigante prateado.
Ela tem um olhar vazio, triste, desencantado.
Um pacote a espera. Ela tenta abrir e corta o dedo. Sangue. É o livro do ex-marido, dedicado a ela:
“Você me inspirou. Queria que fosse a primeira a ler. Edward”.
Ficamos sabendo em “flashbacks” que não se veem há mais de 15 anos. E que foi Susan quem rompeu o casamento, acusando-o de ser muito sensível e romântico. O que a encantara no começo do romance, foi depois o motivo para desprezá-lo. Ela desiste de ser artista plástica para casar-se com um rico bonitão e tornar-se dona de uma galeria de arte.
Mas, assim como as finanças do casal, o casamento atual não vai bem. Susan pergunta ao marido (Armie Hammer):
“- Por que você não foi na galeria ontem? E por que não dormiu em casa?”
Desculpas esfarrapadas. Distância entre eles. Ele diz que precisa ir a Nova York a trabalho. Quem acredita?
Num jantar naquela noite, o homem ao lado dela a felicita pelo vernissage:
“- Um lixo total...” responde ela.
“- Querida, você é um grande sucesso. Talvez um pouco insegura. O mundo da arte é absurdo. Mas menos doloroso que o mundo de verdade”.
E, à noite, insone e sozinha, Susan abre o livro e começa a ler a história de Tony (Jake Gyllenhall). O título faz com que ela se lembre de como Edward (também Jake Gyllenhall) a chamava por causa da insônia: “Animais Noturnos”.
A partir desse momento vamos ver três narrativas encenadas: a história do livro, a vida atual de Susan e o passado, quando casou com Edward. Culpa, arrependimento e vingança são temas em comum.
Assim como todos nós, Susan vai imaginando as personagens do livro e fazendo paralelos com as pessoas de sua vida.
Na história do livro, Tony passa por uma experiência terrível que envolve sua família e uma gangue liderada por um bonitão cruel (Aaron Taylor-Johnson). Um detetive (Michael Shannon) vai ajudar Tony numa vingança.
Na vida real, Susan aprende que o tempo é inflexível e que o passado não pode ser refeito.
Tom Ford, que dirigiu seu primeiro longa em 2009, o elogiado “Direito de Amar - A Single Man”, produziu, dirigiu e escreveu o roteiro de “Animais Noturnos”, adaptado de um livro de 1993, escrito por Austin Wright, “Tony e Susan”.
Nesse seu segundo longa, o mundo dos muito ricos de Los Angeles e o mundo marginal e cruel do Texas são vistos por uma óptica estética e irônica. São cenários naturais para Tom Ford. Ele nasceu no Texas e Los Angeles é uma cidade da moda, da arte e do cinema, que ele conhece tão bem.
E seus personagens são tratados com rigor. Sempre atraentes, ninguém escapa. Vivos ou mortos, recebem o que merecem mas sempre com um visual impecável.

Muito bom. Ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza  2016.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O Que Está Por Vir


“O Que Está Por Vir”- “L’Avenir”, França, 2016
Direção: Mia-Hansen Love

O que virá com o futuro? Não sabemos mas vamos ter que enfrentar. Talvez ajude se nos prepararmos para esse momento...
Nesse filme raro, dirigido pela diretora e roteirista de 35 anos, Mia-Hansen Love, casada com outro diretor de cinema francês, Olivier Assayas, 25 anos mais velho do que ela, vamos acompanhar uma transição importante na vida de Nathalie, uma professora de filosofia.
Quando o filme começa, a família dela, marido e dois filhos, faz uma visita à ilha de Grand Bé na Bretanha, para conhecer o lugar do túmulo do grande escritor francês Chateaubriand. Em uma placa está escrito que ele escolheu a ilha porque queria ouvir a música do mar e do vento. Já se apresenta aqui o fim de todo ser humano, mas no qual pensamos pouco. A morte é sempre a dos outros.
Passam-se anos e Nathalie acorda, no meio da noite, com o telefone tocando. É a mãe dela (Edith Scob), ex-modelo, que não está envelhecendo bem. Grita pela filha, pedindo socorro. Está tendo outro dos seus ataques de pânico. Se ela não vier, vai chamar os bombeiros.
Mas Nathalie enfrenta a mãe e sua velhice da mesma forma que se recusa a ser barrada na porta da escola onde leciona, por estudantes que protestam contra o governo. Com coragem e determinação.
“- Não vim aqui para fazer política. Vim para ensinar crianças a pensar.”
E, apesar de marido e mulher serem ambos professores de filosofia, não há citações maçantes ou discussões filosóficas. Há a vida quotidiana, num apartamento ensolarado, onde os livros ocupam várias estantes.
A vida intelectual vai mostrar, entretanto, seu valor, na maneira como Nathalie vai enfrentar o que o futuro próximo lhe reserva. Ela não faz tragédia. Há um controle sadio das emoções, mesmo quando o marido (André Marcon) anuncia que tem outra e vai sair de casa.
Ela, apesar de acusar o baque dizendo “eu pensei que você fosse me amar para sempre”, não hesita em despachar o marido e jogar no lixo os buquês de flores que ele insiste em mandar para ela. Com uma raiva delicada.
Para Nathalie tinha chegado o momento da liberdade. Filhos saindo de casa e nenhum marido para compartilhar a vida.
Entra num cinema onde passa o maravilhoso filme de Abbas Kiarostami, “Cópia Fiel”, que trata da vida de um casal. E, para sua surpresa, um homem a assedia e ela sai do cinema com ele atrás.
“- Não estou interessada”, diz ela e dispensa o homem com tranquilidade.
Com o ex-aluno preferido, Fabien (Roman Kolinka), há um flerte e a sensação de que poderiam começar algo, mas Nathalie percebe que tudo com que ele e seu grupo anarquista se preocupam, não faz mais sentido para ela:
“- Não compartilho mais radicalismos...”
Mostra sua fragilidade só para a gata Pandora, que relutantemente herdou de sua mãe. Chora na cama acariciando a bichana, procura por ela quando some no bosque perto da casa de Fabien e agarra-se a ela quando a gata volta com um ratinho como presente.
Nathalie é Isabelle Huppert, divina aos 63 anos, cabelos semilongos soltos, olhos de avelã e porte de adolescente. Interpreta a personagem com tanta sinceridade, que impressiona e comove. Os anos não passam para ela mas seu trabalho interior é visível em seu olhar e rosto expressivo.

E quando “Unchained Melody” toca no final, ficamos com pena de deixar Nathalie, mas sabemos que , tanto para ela, como para todos nós, a vida continua. E vai sempre valer a pena.  

domingo, 25 de dezembro de 2016

Capitão Fantástico


“Capitão Fantástico”- “Captain Fantastic”, Estados Unidos, 2016
Direção: Matt Ross

A primeira cena é assustadora. Um cervo pasta tranquilo na floresta. Mal sabe o que o espera. Escondida na folhagem, uma cara pintada de preto, espreita. E, sem alarde, corta o pescoço do animal com uma faca.
Não se assuste como eu. Trata-se de uma família que vive à maneira de uma tribo de selvagens. Caçam a própria comida, plantam e colhem legumes e frutas, dormem sob as estrelas e não tem laços com a sociedade de consumo.
Mas, longe de ser ignorantes, sabem muito mais do que os meninos e as meninas que vão a escolas tradicionais. As crianças dessa família aprendem com o pai e com a mãe, professores instruídos em filosofia, matemática, física, política, história, poesia e literatura. Tem acesso a uma biblioteca eclética e sabem quem é Noam Chonsky, além de falar diversas línguas.
Ben Cash (Viggo Mortensen, ótimo) zela pela saúde e treinamento de seus filhos, verdadeiros atletas, tanto os três meninos quanto as três meninas, assim como cultiva o intelecto deles.
Com a mãe, Leslie, afastada da família por uma grave doença, o pai lidera e é obedecido cegamente, porque as crianças sabem que existe amor em tudo que o pai faz com eles. São felizes.
Quando algo triste acontece, aquelas crianças vão conhecer o mundo onde os outros americanos vivem e vão se espantar em como são gordos e como colecionam coisas de que não precisam.
Na casa dos avós maternos vão entrar em contato com o jeito americano de viver e até gostar de algumas coisas.
E aí emerge um conflito entre o modo de vida que sempre conheceram e as novidades que a avó e o avô (Frank Langella, sempre perfeito) proporcionam.
O filme é divertido, original, inteligente e tem roteiro e direção de Matt Ross, que disse ter se inspirado em sua própria infância e no fato de ter se tornado pai, para fazer esse filme.
Quando recebeu o sim de Viggo Mortensem (já indicado ao Globo de Ouro), que considerava o ator ideal para interpretar o pai, tudo estava a postos para rodar seu segundo longa, que ganhou o prêmio de direção na mostra “Um Certain Régard” no Festival de Cannes.
Com uma história simples e uma boa direção, “Capitão Fantástico” levanta questões sobre o papel de pai e mãe, faz críticas aos valores de nossa sociedade de consumo, muito dependente de tecnologia e certamente condena o modo raso como estamos educando nossas crianças, sem dar a elas a capacidade de fazer escolhas diferentes em seu modo de vida.
É um filme que mostra o valor da liberdade na escolha informada do modo de viver de cada um. E que não obriga à unanimidade. Ao contrário, acolhe o que pode parecer excêntrico para alguns mas a escolha certa para outros.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Sully - O Herói do Rio Hudson

 
“Sully – O Herói do Rio Hudson”- “Sully”, Estados Unidos, 2016
Direção: Clint Eastwood

Quando o filme começa vemos na tela um piloto falando com a torre de controle. O avião sobrevoa a cidade de Nova York. Só que baixo demais. Todos gritam. O avião bate num prédio e explode. Horror. Tudo isso em cenas em meio aos créditos iniciais.
Ficamos atrapalhados. Mas não tanto quanto o piloto Chesley “Sully” Sullenberger (Tom Hanks, perfeito), que acorda de um pesadelo no quarto de hotel, onde espera a investigação oficial sobre o que aconteceu na manhã daquele 15 de janeiro de 2009 com o Airbus A320, que levava 155 pessoas, pilotado por ele, em direção a Charlotte.
A TV está ligada e, como todo mundo no país, ele vê de novo seu avião, que pousou no rio Hudson, com os passageiros ilesos sendo retirados por barcas da Guarda Costeira. Chamado por todos de herói, ele está preocupado. Parece que algo o atormenta.
Sai do quarto para correr pela pista que margeia o rio Hudson, na noite fria e, quando vai atravessar a rua, um taxi quase o atropela. A mente de Sully está em outro lugar. Refaz mentalmente, mil vezes, tudo que aconteceu entre a decolagem do aeroporto de La Guardia e a decisão que ele tomou de tentar uma arriscada manobra: pousar no rio.
A inesperada colisão com uma revoada de pássaros, causara estragos fatais nas turbinas do avião, logo depois da decolagem do La Guardia. Ele perde altura.
Há uma tensão que cresce na cabine de comando do voo 1549 e o comandante Sully pede ao co-piloto Jeff Shiles (Aaron Eckhart), 35 segundos para tomar uma decisão, depois da torre de controle dizer que haveria pistas disponíveis para a aterrissagem tanto em La Guardia quanto em Teterboro, em Nova Jersey.
Conduzindo aeronaves há mais de 30 anos, há em Sully uma experiência adquirida que ele vai usar nessa situação de trágica emergência. Seguirá sua intuição. Mas o que o atormenta agora? É a pergunta que o repórter da televisão faz:
“- Sabemos agora que a escolha foi errada. Novas informações mudam tudo. Sully Sulenberg, você é um herói ou uma fraude?”
Mas ele acorda. É um novo pesadelo.
Clint Eastwood, 86 anos, quatro Oscars, dirige com maestria esse filme e confessa que se interessou pelo “milagre” do rio Hudson desde o começo. Por isso leu atentamente o roteiro de Todd Komarnicki, baseado no livro escrito pelo próprio Sully, onde ele conta como foi difícil acreditar que tinha acertado em sua decisão, quando uma equipe começa uma investigação no dia seguinte, para avaliar se o piloto perdera o avião por negligência, sem obedecer à torre de controle que mandara voltar a La Guardia, ou pousar em Teterboro, pondo em risco a vida de 155 pessoas.
O ritmo do filme cria suspense e as cenas do pouso na água alternam-se com conversas angustiadas do piloto com sua mulher, repórteres cercando o hotel onde ele está e a casa da família.
É a dúvida, do homem que é chamado de herói, mas que se martiriza, que é o centro do filme. A verdade pode consagrá-lo ou colocá-lo no ostracismo.
“Sully” é um filme que nos sobressalta e faz pensar na imensa responsabilidade de qualquer pessoa que esteja numa situação de comando e que tenha que decidir o que fazer, sabendo que vidas serão salvas ou perdidas.
Ótimo filme.



sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Neruda


“Neruda”- Idem, Chile, Argentina, França, Espanha, 2016
Direção: Pablo Larrain

Pablo Neruda (1904-1973) poeta e político chileno, foi o personagem escolhido por Pablo Larrain, como assunto de seu novo filme.
Mas não pensem que vão ver uma biografia na tela. Porque Pablo Larrain, diretor de “No” e “O Clube”está longe de ser um diretor conservador. Quando fala do Chile, seu país natal, usa um modo ao mesmo tempo crítico e criativo de fazer cinema.
Assim, em “Neruda”vamos ver cenas da vida do poeta, algumas verdadeiras, outras de pura ficção, em um filme “nerudiano”, como explicou Larrain para a imprensa no Festival de Cannes 2016. E o que ele quer dizer com isso? Que vamos ver um filme poético, político, com toques de um humor nada reverente e até mesmo a criação de um personagem inventado,  que faz o contraponto ao grande Neruda.
O filme começa ao som de Edwad Grieg (Suite Peer Gynt) e vemos o poeta e senador, interpretado por Luis Gnecco, em 1948, discursando e acusando o presidente Gabriel Gonzales Videla (Alfredo Castro) de ser um traidor. Diz que Videla esquecera de suas raízes de esquerda para se aliar aos Estados Unidos.
Videla declara guerra ao Partido Comunista e seu mais famoso membro é obrigado a fugir para não ir para a prisão.
Esse é o período de vida de Neruda que Larrain escolheu como referência histórica para acompanhar com sua câmara. Essa fuga vai inspirar o diretor e seu roteirista Guilhermo Calderron a mostrar um Neruda mais imaginado do que real. O mito.
Como realçar uma fuga? Fazendo dela uma perseguição.
Porque no filme vemos o poeta dizer:
“- Mas essa tem que ser uma caçada selvagem!”
E inventando o detetive interpretado por Gael Garcia Bernal, supostamente convocado por Videla para seguir Neruda e prendê-lo, Larrain nos faz pensar na função de imaginação do poeta. O diretor inventa um personagem, que seria invenção do poeta para que a fuga fosse mais estimulante.
Gael Garcia Bernal faz o detetive Oscar Peluchenneau, um tipo apagado que quer a todo custo prender Neruda e alçar sua figura às alturas de seu pai, famoso chefe de polícia que o renega. Sendo a mãe uma prostituta, Oscar precisa de um feito heroico para ser alguém.
Larrain coloca o detetive como o narrador em “off” e sua voz aparece bem antes de o ver na tela. Há tiradas engraçadas envolvendo uma perseguição de gato e rato. Neruda se diverte deixando como pistas pelo caminho, as novelas policiais que ele adora ler e que deixa autografadas e bem colocadas, para que o pobre detetive encontre. Ele está sempre um passo atrás.
A fuga, inicialmente imaginada pelo mar, transforma-se numa aventura maior pois há que atravessar os Andes, mostrado em belas cenas na neve e entrar na Argentina, para de lá ganhar a Europa.
O filme agrada a quem gosta de literatura, de imaginação e de toques surrealistas. Não há a intenção de diminuir o poeta, mas de mostrá-lo como ele era: amante da boa vida, das mulheres e do bom humor. O que não o impediu de ser admirado por sua voz que defendia as liberdades e o povo humilde do Chile.
E, relembrando o Prêmio Nobel de Literatura chileno e sua personalidade carismática, Pablo Larrain mostra o seu talento e assina um novo sucesso em sua carreira brilhante.



sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Ninguém Deseja a Noite


“Ninguém Deseja a Noite”- “Nadie Quiere la Noche”, Espanha, França, Bélgica, 2016
Direção: Isabel Coixet

Juliette Binoche, 52 anos, talentosa e carismática, é daquelas atrizes que gostam de escolher figuras femininas fortes, ou que impressionem por algo dramático, para interpretá-las no cinema.
Isabel Coixet, catalã, 56 anos, é uma das mais importantes diretoras de cinema da Espanha. Foi ela que apresentou Binoche a Josephine Peary (1863-1955), uma dama da alta burguesia de Washington, casada com o famoso explorador do Ártico, Robert Peary (1856- 1920).
“Ninguém Deseja a Noite” inspira-se na figura da mulher do homem que disse ter chegado em primeiro lugar ao Polo Norte em 1909, fato depois contestado por Frederick Cook que afirmava ter chegado antes, em 1908. Até hoje há controvérsias. Mas parece que Peary foi realmente o primeiro a chegar ao Polo Norte.
Josephine acompanhou o marido em seis de suas expedições e foi a primeira mulher a fazer isso. Era chamada de a ”Primeira Dama” do Ártico. Deu a luz à sua filha, que nasceu em plena paisagem de gelo, muito próxima ao Polo Norte. A bebê era chamada de “Snow Baby - O bebê da Neve” e serviu de tema para um livro escrito por sua mãe em 1901, com esse título. Além desse, Josephine escreveu mais dois livros: “My Artic Journal”1893 e “Children of the North”em 1903.
O filme de Isabel Coixet inspirou-se nessa figura de mulher mas se valeu de uma liberdade poética. Transformou a esposa do explorador em companheira de 18 semanas de inverno polar da innuit Allaka (Rinko Kikuchi), que Josephine não sabia, mas era a amante de seu marido, de quem esperava um filho.
Vemos na tela uma mudança radical de postura em Josephine Peary. De uma mulher segura de si, arrogante mesmo, que pensa ter força suficiente para enfrentar o inverno de seis meses sem sol e propõe-se a esperar o marido sozinha em um acampamento precário até sua volta do Polo norte, ela vira outra pessoa.
No início, vestida de veludo vermelho, gola de raposa prateada, chapéu de astracã preto e coberta de peles, lá vai Josephine em seu trenó puxado por cães, com o guia Bram (Gabriel Byrne). Em outros dois trenós seguiam esquimós, um deles a moça Allaka.
A natureza selvagem e de extremos que Josephine pensa que vai conseguir enfrentar, mostra-se muito mais terrível do que ela imaginava. A mocinha esquimó, no começo desprezada pela americana, vai desempenhar um papel importante na convivência das duas, que marca uma humanização de Josephine, que vai precisar da simplicidade de Allaka e de seu coração solidário. Mais que tudo, vai precisar dos conhecimentos de sobrevivência que Allaka conhece.
Imagens belíssimas da paisagem desértica e escura do inverno polar mostram a pequenez do ser humano naquele cenário sem luz, só sombras. Tanto fora quanto dentro da pequena cabana ou do iglú de Allaka, o clima é de claustrofobia, já que a natureza as capturou numa armadilha, impedindo que possam sair de lá.
Só a solidariedade pode salvá-las e, acreditando estar perto da morte, Josephine descobre a própria humanidade e a de Allaka, igualadas no sofrimento e medo.
O filme é difícil de ver por essa angústia de morte próxima num deserto gelado. Mas vale a pena pela atuação magnífica de Binoche e de Kikuchi e pela beleza terrível de uma natureza que raros humanos conhecem. Algo assustador mas também de uma tal grandiosidade que fascina.
Um filme raro.



domingo, 4 de dezembro de 2016

Sangue do Meu Sangue


“Sangue do Meu Sangue”- “Sangre del Mio Sangre”, Itália, França, Suiça, 2015
Direção: Marco Bellocchio

Na pequena Bobbio, no século XVII, o convento de Santa Clara, no alto da colina, ostenta uma bela ponte de pedra sobre o rio, que é atravessada por um visitante. É Federico Mai (Pier Giorgio Bellocchio, filho do diretor), irmão gêmeo de Fabrizio Mai, um religioso morto recentemente.
Ele é um militar e é recebido pelo frei encarregado pela Inquisição de resolver o caso. Fabrizio teria se suicidado por amor à freira Benedetta (a bela Lydia Liberman) de quem era confessor. Se isso fosse verdade, não poderia ser enterrado em campo santo. Aos suicidas era reservado o cemitério dos assassinos, ladrões e animais. Seria a desgraça de sua família aristocrata.
Frei Cacciapuoti (Fausto Russo Alesi) espera que a freira confesse um pacto com o demônio. Fabrizio teria sido enfeitiçado por ela para que se matasse e fosse condenado ao inferno.
Naquele lugar bucólico, onde roseiras se misturam a pessegueiros e heras, o jardim é também cemitério e lá a bela Benedetta sofre o teste da água, o das lágrimas e o do fogo. Federico está envolvido no clima de sensualidade que paira sobre aquele lugar ambíguo, no qual os gritos da freira são abafados pelo canto das noviças. Ele parece atraído por aquela que veio condenar.
Houve uma história verdadeira na qual Marco Bellocchio se inspirou: a monja de Monza, Marianna de Leyva, que foi emparedada em seu convento por anos.
Mas há também um humor erótico, nessa primeira parte do filme, na relação de Federico Mai com as aparentemente piedosas irmãs Perletti (Alba Rohrwacher e Federica Fracassi).
O mesmo convento, agora no século XXI, é visitado por um agente do governo, Federico Mai (o mesmo ator que interpretou o militar), que leva um bilionário russo (Ivan Franek) para visitar o convento, transformado em prisão e aparentemente abandonado. O russo quer transformá-lo em um hotel de luxo.
Mas lá vive escondido do mundo e da mulher, o Conde Basta (Roberto Herlitzka, ótimo), que dizem ser um vampiro e que só sai à noite.
Cercado de mistério parece que o Conde manda na cidade e pertence a uma Fundação. Máfia?
Nessa segunda parte do filme, Bellocchio traz à tona os “pecados”da gente de Bobbio que não teme mais a censura e a condenação da religião mas o fisco e a segurança social. Muitos recebem pensões indevidas e são cegos que enxergam, vivos dados como mortos e mortos dados como vivos.
Marco Bellocchio, que sempre passa os verões em Bobbio, sua cidade natal, faz uma crítica aos tempos atuais que serve para os italianos mas também para grande parte da humanidade.
A única coisa bela ainda é a mulher e a jovem Elena (Elena Bellocchio, também parente do diretor) encanta até o velho Conde.

“Sangue do meu Sangue”ganhou o Prêmio da Crítica no Festival de Veneza 2015.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Elis


“Elis”- Brasil, 2015
Direção: Hugo Prata

Acho que todos os que viveram a época que o filme “Elis” retrata, dos anos 60 a começo dos anos 80, lembram-se bem da primeira vez que ouviram a voz de Elis Regina.
Eu estava fazendo a lição do colégio e ouvindo o programa “Pick-Up do Picapau”no rádio:
“- Menina, você vai ser a maior cantora do Brasil!”, vaticinou ele, que tocava no seu programa à tarde o que de melhor havia na música brasileira.
Elis (1945-1982), veio do sul, Porto Alegre, e chegou ao Rio com seu pai, no dia depois do golpe militar de 1964. Com o dinheiro contado, ganho em shows desde os 13 anos de idade, aquela menina viera ao Rio tentar a sorte e mostrar a voz que tinha.
E o filme dirigido por Hugo Prata conta a trajetória dela, desde o Beco das Garrafas, passando pela TV, maridos e filhos, alegrias e tristezas, até o final, aos 36 anos de idade, misturando muita cocaína com álcool.
Como não se emocionar com a recriação do festival da TV Excelsior em 1965 quando ela cantou “Arrastão”de Vinicius de Moraes e Edu Lobo?
Quem era jovem não perdia o “Fino da Bossa”, comandado por ela e Jair Rodrigues. A gesticulação com os braços, o sorriso grande e aquela voz que ninguém esquece.
Depois, veio o casamento com Ronaldo Bôscoli em 1967, o primeiro filho, shows em Paris e o sucesso.
Há quem ache o filme superficial e o acusam de não ir fundo nos conflitos que ela viveu. Pode ser mas quem viveu o tempo dela não estranha o filme, ao contrário, se emociona lembrando dela e de nós mesmos naquela época.
Andreia Horta, que vive a personagem, o faz com tal talento, que a impressão é ver Elis rediviva. Dubla com perfeição e não imita o mito, traz Elis de novo para nossos olhos e ouvidos.
Há uma reconstituição de época primorosa e o elenco que traz à frente Lucio Mauro Filho como Miéle e Gustavo Machado como o “Velho”, apelido de Ronaldo Bôscoli, é excelente.
Com o segundo marido, César Camargo Mariano (Caco Ciocler) que durou de 1972 a 1981, há momentos de grande beleza e descobertas musicais que fazem juntos e que são de grande qualidade cênica e muito bem exploradas pela câmara, como na cena perto dos rostos dos dois no piano.
Lenny Dale (Julio Andrade) não dança mas convence na figura daquele que ensinou Elis a mexer o corpo e criar sua marca registrada, o movimento dos braços. É ele que ela visita na prisão da ditadura, que a envolveu num dos piores momentos da vida dela e que levou a vaias durante shows e a pecha de colaborar com os militares.
O repertório escolhido traz quase todos os sucessos dela, a começar por “Como nossos pais”que Andreia Horta dubla em silhueta, à inesquecível interpretação de “Atrás da Porta”de Chico Buarque e “O Bêbado e o Equilibrista”de João Bosco e Aldir Blanc que virou um hino contra a ditadura militar.
Certamente aquela que muitos consideram a maior cantora do Brasil merece outros filmes, porque há muito o que contar sobre ela e o Brasil onde ela viveu.
Mas esse “Elis”de Hugo Prata já é um bom começo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A Chegada


“A Chegada”- “The Arrival”, Estados Unidos 2016
Direção: Denis Villeneuve

“- Eu pensava que esse era o começo da história...”
Essa frase misteriosa é dita por Amy Adams com um bebê no colo. Vemos cenas dela com uma menina que cresce.
“- Eu me lembro de momentos no meio...”
A menina torna-se uma adolescente e há uma conversa com um médico.
“- E este foi o fim. Volta para mim...”, diz a mãe que chora, vendo a filha morta no leito do hospital.
Intrigados com esse prólogo, quase que esquecemos o começo do filme que parece não ter nada a ver com o que se segue.
E vemos uma professora, com ar distante, entrar numa sala de aula, sem perceber que há poucos alunos que parecem assustados. Algo está acontecendo. Na lousa aparecem imagens de TV anunciando que 12 objetos não-identificados estão em 12 regiões diferentes do planeta. São alienígenas.
Mas o que vieram fazer aqui na Terra?
Congestionamentos enormes. População em pânico.
Mas a Dra Louise Banks ( Amy Adams) não parece assustada mas deprimida. Ela é professora de linguística, famosa autora e perita em traduções. Logo entra em seu escritório um coronel do exército (Forest Whitaker) pedindo sua ajuda. Põe um gravador sobre a mesa e faz ela escutar uma tentativa secreta de comunicação com os alienígenas. A gravação tem ruídos que parecem sons de baleias.
“- Desculpe mas não posso fazer isso assim... Eu teria que estar com eles.”
E, em plena noite, ela é acordada e levada num helicóptero, com outras pessoas, para Montana, o lugar onde está uma das naves.
Faz parte da equipe o matemático Dr Ian Connelly (Jeremy Renner) que diz conhecer o trabalho de Louise e admirá-la. Formarão uma dupla.
Nas tendas armadas pelo exército eles ficam sabendo que vão entrar em contato com os extra-terrestres.
A fantástica nave é uma figura oblonga, muito alta, como um ovo alongado. Flutua a alguns metros do solo. A cada 18 horas, um orifício se abre e a equipe poderá ser içada por um elevador e entrar na nave.
E aí começa uma aventura de descoberta e auto-descoberta que Louise vai experimentar. Ela precisa decifrar a comunicação dos alienígenas para entender o que querem e não há nada que faça sentido, até ela começar a ter visões de cenas com uma criança, sua filha.
O quebra-cabeça é tanto no espaço interior de Louise quanto no espaço exterior onde estão as naves.
Denis Villeneuve adaptou para o seu filme um conto de Ted Chiang, “The Story of Your Life”, que faz uma reflexão sobre a memória, o tempo e o luto. E o roteiro de Eric Heisserer é uma fábula sobre a comunicação com o desconhecido como uma alternativa ao medo e reflete sobre o destino e o amor.
Amy Adams está extraordinária no papel dessa mulher jovem e inteligente que, destemida, vai ao encontro de emoções transbordantes. Merece muitos prêmios.
Numa visão pessoal, que fez sentido para mim, baseei minha hipótese em duas frases de Louise, que ela fala em dois momentos, depois de entrar em contato com os seres, na volta à tenda do exército:
“- Penso que tudo que vemos lá dentro refere-se a nós dois”, diz para o Dr Ian. E mais:
“- Agora eu compreendo porque meu marido me deixou...”, que ela fala para si mesma.
E as cenas que a levam a intuir a comunicação com os alienígenas, que só se dirigem a ela, são sempre com a filha criança.
Pensando nisso, acho que tudo é um sonho de Louise. Uma elaboração de seu luto, numa viagem por seus espaços interiores, na qual enfrenta seus fantasmas, o sofrimento e a crise existencial que ela está vivendo pelas perdas que sofreu.
Mas deixo ao espectador a oportunidade de ver e entender esse belo filme a seu modo. Vai valer a pena.






É Apenas o Fim do Mundo


“É Apenas o Fim do Mundo”- “Juste la Fin du Monde”, Canadá, França, 2016
Direção: Xavier Dolan

“Em algum lugar, já há algum tempo” é a frase que abre o sexto filme de Xavier Dolan, 27 anos, menino prodígio canadense. Parece aludir a algo que amadureceu nele, ao longo de seu curto e fascinante trajeto nas telas do cinema.
Aqui ele usa palavras de um outro talento precoce, adaptando a peça do escritor, diretor e ator teatral francês, Jean-Luc Lagarce, que aos 21 anos já tinha sua própria companhia de teatro e que escreveu 25 peças até sua morte em 1995, em consequência da AIDS. É o autor teatral contemporâneo mais representado atualmente na França.
No filme, Louis (Gaspard Ulliel) de 34 anos, é um bem sucedido escritor gay, que viaja num avião e o vemos tristonho. As mãos de uma criança que viaja atrás dele, cutucam e brincam de tapar seus olhos, com isso conseguindo um sorriso.
Mas compreendemos seu rosto ensombrecido pois ele mesmo diz em “off” que não vê a família há 12 anos e que agora volta para casa para contar que vai morrer. Adivinhamos nele uma esperança de consolo, de abrigo mas também medo, já que sabe das razões que o afastaram da família.
No taxi, ele observa pessoas pela janela. Desconhecidos. Logo ele vai ter que enfrentar os que conhece.
Entra na casa e lá está sua família: a mãe Martine (Natalie Baye, ótima), exagerada, unhas azuis, super “makeup”e “tailleur”de rosas vermelhas; Suzanne (Léa Seydoux), a irmã mais nova que ele mal viu crescer; Vincent Cassel que é Antoine, o irmão mais velho, bruto, complexado, invejoso e Catherine (Marion Cotillard, num papel difícil, excelente), a cunhada que Louis não conhece.
A recepção ao filho que volta à casa é de início calorosa e barulhenta. E depois, continua menos calorosa e mais briguenta. Louis é ora espectador, ora participante de poucas palavras. A câmara faz closes dos vários rostos e cada qual passa para a plateia o dito que esconde o não dito.
E como contar o que havia para contar?
O rosto grave de Louis parece transparecer a trágica notícia mas ninguém quer ouvir nada. Os closes mostram cada um com seus motivos. Querem falar, preencher o vazio evidente entre eles e Louis.
E, fazendo seu número teatral particular, tornar claro que estão bravos, que foram rejeitados, que ele os abandonou e não partilhou seu sucesso e que eles não o querem ali, 12 anos depois, tendo dele somente cartões postais impessoais, abertos, lidos pelos carteiros, guardados numa caixa debaixo da cama de Suzanne, a tatuadora rebelde da família.
Ninguém quer ouvir o que Louis tem a dizer. Com exceção talvez da cunhada tímida, confusa e balbuciante, com um rosto onde os olhos falam, revelando solidariedade. Mas ela não é da família.
E bem que a mãe tenta ser carinhosa e aproximar o filho dos irmãos...Mas o faz sem esperança de conseguir.
“É Apenas o Fim do Mundo” ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2016 e o prêmio do Júri Ecumênico.

Xavier Dolan, não é à toa o menino prodígio do cinema contemporâneo. Merece toda a admiração e os prêmios que já ganhou e que certamente vai ganhar ainda no futuro. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Pequeno Segredo


“Pequeno Segredo”- Brasil, Nova Zelândia  2016
Direção: David Schurmann

É difícil falar sobre um filme que foi tão discutido e que tanto dividiu opiniões. Eu vi o trailer antes da indicação para representar o Brasil no Oscar 2017 e a primeira impressão foi a que ficou.
“Pequeno Segredo” tem lindas imagens do mar, do rio Amazonas e belos pores do sol (fotografia do peruano Inti Brionis). Noites estreladas e o encanto de uma menina loura, dançando como a  borboleta que voa sobre o mar na primeira cena.
O clima é de um conto de fadas. A relação mãe e filha (Julia Lemmertz e Mariana Goulart) coloca as duas em estado de graça. As vozes são suaves e os rostos expressivos das atrizes inspiram amor e devoção. Só existem elas no mundo.
E isso, de tal maneira, que o resto dos personagens são secundários. O pai (Marcello Antony) é figura apagada. Os pais verdadeiros de Kat, a talentosa Maria Flor e o opaco Errol Shand, filho da bruxa neozelandesa, a avó Barbara (Fionnulla Flanagan,  a única que consegue se sobressair), mais os irmãos adotivos, são pessoas que entram e saem, sem qualquer composição mais aprofundada.
E o que é o foco central da história, a vida e a morte precoce da irmã adotiva, contada pelo diretor David Schurmann, 42 anos, está impregnado de idealização.
Aos menos ingênuos ressalta a vontade de emocionar, de usar a música para que a plateia chegue às lágrimas e até mesmo a escolha dos atores com o objetivo de enfeitar a cena com rostos e palavras de ternura. Tudo em exagero.
E não precisava nada disso porque a história de Kat é suficientemente triste e comovente para as pessoas se emocionarem com naturalidade, sem precisar ser empurradas por clichês melosos.
Não li o livro do mesmo nome do filme, escrito por Heloisa, a mãe adotiva de Kat, mas dizem que é “devastador”. O que aconteceu então? Algo ocorreu na adaptação para o roteiro, escrito principalmente por Marcos Bernstein (“Central do Brasil”) e pelo diretor, que diz que quis honrar a mãe e seu gesto de adotar a menina, com o filme “Pequeno Segredo”.
Mas se o filme ganhar o Oscar porque combina com “a cabeça dos velhinhos da Academia”, como disseram alguns para justificar a escolha pela comissão do Ministério da Cultura, será um insulto tanto para os votantes do Oscar quanto para David Schurmann, que teria feito um filme para agradar pessoas conservadoras.
E além de tudo, essa justificativa não passa de um grande equívoco porque, se pensarmos no último filme premiado como melhor estrangeiro, o húngaro “Filho de Saul”, ele é um dos mais cruéis retratos da natureza humana. Nada a ver com “velhinhos conservadores”.
É uma pena porque parece que, mais uma vez, o Brasil fica fora do Oscar. Mas não custa esperar pela primeira lista dos nove escolhidos que sai no começo de janeiro...



segunda-feira, 21 de novembro de 2016

As Confissões


“As Confissões”- “Le Confessioni”, Itália, 2015
Direção: Roberto Andò
Uma porta de vidro se abre e um cortejo de mulheres de véu, muçulmanas, aparece. Atrás delas, um monge de hábito claro e cabelos brancos. Estamos num aeroporto.
O monge chama nossa atenção. O que faz ele na lojinha? Compra um gravador.
Na saída, observa crianças que se distraem com um espetáculo de um mágico na calçada: levitação. Velhos truques que sempre funcionam.
Intrigante, o filme do siciliano Roberto Andò segue o carro que leva o monge. A câmara faz isso do alto. E esse ângulo será usado algumas vezes. Ora aludindo, talvez, à nossa pequenez, ora como que tentando um mergulho na cabeça de alguém, para descobrir seus pensamentos.
Um hotel magnífico, à beira mar, é o local onde vai ocorrer a reunião de representantes do G-8 com o presidente do FMI. Uma séria e contundente decisão deverá ser tomada e tudo indica que prejudicará os países mais pobres.
Ficamos sabendo disso através da famosa escritora de livros infantís, Claire (Connie Nielsen), que se apresenta ao monge Roberto Salus (Toni Servillo, excelente), que também é escritor. A eles se junta um músico de rock, meio esquecido. São convidados pessoais do próprio presidente do FMI. Dão a nota de humanidade à reunião daquelas pessoas frias.
E um acontecimento trágico vai mudar o rumo dos acontecimentos e colocar o monge em perigo. Pode ser que ele tenha ouvido, em confissão, segredos que, descobertos, colocariam o plano econômico em risco.
“As Confissões” é como se fosse um “Big Short - A Grande Aposta” metafísico. Faz também uma crítica ao sistema financeiro que se apoia em decisões tomadas sempre para o favorecimento do próprio sistema, sem nenhuma compaixão ou solidariedade com os que sofrem com essas decisões.
E pior ainda, mostra como esses representantes de países ricos, usam da crise, como a do desemprego, para tomar medidas severas, impostas ao povo como única saída para problemas criados pelo próprio sistema.
Mas é filosófico no sentido de lidar com uma crise de angústia do presidente do FMI (Daniel Auteil), que convida o monge porque sente a necessidade de ser escutado em confissão, na noite que precede à tomada da decisão que afetará um enorme número de pessoas.
Lambert Wilson aparece numa ponta e parece que ele tem a ver com a vida afetiva do presidente do FMI, homem frio e sereno mas que entra em crise existencial e solta seus demônios, trancafiados em seu peito não sabemos há quanto tempo.
“As Confissões” é um filme interessante, com cenários palacianos e atores bem escolhidos. A música de Nicola Piovani é forte e marcante.
Mas é Toni Servillo que é o centro das atenções. Grande ator, tem nos presenteado com interpretações inesquecíveis, com o próprio Andò que o dirigiu como os irmãos gêmeos em “Viva a Liberdade” de 2013 e com Paolo Sorrentino e dois filmes magníficos, “As Consequências do Amor”de 2004 e “A Grande Beleza”de 2013.

Vale vê-lo em “As Confissões”, como o monge que faz lembrar o Papa Francisco, que não esconde sua humanidade.