sábado, 31 de outubro de 2015

Deephan - O Refúgio


“Deephan – O Refúgio”- “Dheepan”, França 2015
Direção: Jacques Audiard

Horror. Corpos sendo queimados, empilhados numa fogueira. Homens armados, lenços cobrindo seus rostos, vestidos com farrapos, cercam o local. A fumaça negra e espessa sobe para o alto, escurecendo a copa das muitas palmeiras que existem ali.
Depois, um campo de refugiados, com gente em tendas. Miséria. Uma mulher jovem procura uma menina que não tenha família. Tem pressa e arrasta uma pela mão.
Aos poucos, vamos compreendendo que, aquele homem, Deephan (Jesuthasan Anthonytasan), que vimos antes entre os homens armados que queimavam os corpos, tem um passaporte que o obriga a ter mulher e filha. Por isso a jovem traz a menina.
Uma família falsa é a esperança de sair dali, poder ir para longe. A jovem, Yalini (Kalieaswari Srinivasan), quer ir para a Inglaterra onde tem parentes mas todos acabam na França, nos arredores de Paris.
E recomeçam nova vida naquele conjunto habitacional, com vários prédios modestos, que parece ser tão melhor que o Sri Lanka natal, cenário de conflitos sangrentos que eles querem esquecer. Deephan perdera tudo. Família e aldeia. Todos mortos.
Mas agora havia a esperança de paz no subúrbio parisiense. Finalmente uma casa para aqueles três desconhecidos, que iam viver como uma família qualquer, entre outros imigrantes.
Há um vislumbre de uma vida melhor, trabalho para os adultos e escola para a menina de nove anos, Illayaal (Claudine Vinasithamby).
Apesar das dificuldades, assistimos a uma esforçada tentativa de adaptação aos novos costumes, à lingua estranha, gente nova e até mesmo hostil.
Deephan torna-se zelador, Yalini consegue trabalho como empregada na casa de um homem doente e a menina adapta-se aos poucos na escola, apesar da má vontade das coleguinhas que, no início, não querem brincar com ela.
Não era um paraíso mas havia paz.
Yalini ganha bem e agrada ao patrão porque é boa cozinheira, cuidadosa com a casa e no trato com o homem aleijado. Com seu salário faz cortinas para a casa, uma bata de seda para si mesma e começa a ser mais maternal com a menina, que já fala um francês razoável. Até mesmo com Deephan, homem arredio e calado, Yalini começa a ser carinhosa. Mais e mais, eles parecem ser uma família como as outras.
Mas Deephan é o primeiro a notar que, no prédio em frente, homens mal encarados lidam com armas e drogas.
Yalini, que começa a conviver mais de perto com os que frequentam a casa onde trabalha, também não gosta do que vê e ouve.
Quando ecos do Sri Lanka voltam a atormentar o guerreiro tâmil, a tensão cresce até que há a grande explosão.
A cabeça de um elefante que aparece na tela algumas vezes, tanto é o deus Ganesha, protetor, quanto o animal que nunca esquece dos traumas do passado.
Deephan vai surtar e se esquecer de onde está. Yalini vai se assustar mas sabe acalmá-lo.
No final, o sonho faz esquecer o pesadelo.
A imigração assusta a Europa. Mas não haverá uma maneira de encontrar uma possibilidade de convivência?
Jacques Audiard, 63 anos (“O Profeta”2009, “Ferrugem e Osso”2012), diretor e roteirista de “Deephan”, ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em fevereiro desse ano.
A crítica não foi unânime em aplaudir o filme. Audiard não poupou a França. Mostrou as mazelas perigosas do tráfico e das gangues que fazem o inferno onde existem. Mas não há como negar nele a tentativa de busca de um caminho para o problema da imigração, que só homens de boa vontade vão poder encontrar.  

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

45 Anos


“45 Anos”- “45 Years”, Reino Unido, 2015
Direção: Andrew Haigh

Um estranho ruído chama a atenção do mais atentos, antes de começarem as imagens na tela... Seria um projetor de slides?
Mas, esquecemos esse detalhe quando aparece a paisagem inglesa com tons de aquarela. Uma casa frente a um campo e bosques de folhas verde claro, em meio à neblina da manhã. Pássaros cantam e uma mulher enérgica (Charlotte Rampling, sempre diva) caminha com seu cão, um belo pastor alemão.
Ela volta para casa e, no jardim, encontra o jovem carteiro:
“- Bom dia, Sra Mercer!”
“- Acordou cedo hoje?”, diz ela sorrindo com a boca e com os olhos, o rosto mostrando as rugas da idade mas também a beleza que ali permaneceu.
“- São os gêmeos. Não me deixam dormir... E a festa é sábado, Sra Mercer?”
“- Chame-me Kate. Não estamos mais na escola. Estou felicíssima por vocês dois!”, diz com simpatia para o pai recente.
Entra em casa, tira o casaco, passa a mão nos cabelos curtos e vai para a cozinha. Na mesa, de óculos, cabelos brancos, o marido lê (Tom Courtenay). Parece preocupado, mas ela não nota:
“- Que tal aquela música dos The Platters? Nossa primeira dança? Acha bom?”
Eles vão celebrar 45 de casados, com uma festa. Kate está tão entretida pensando nisso que, de início, não percebe o clima que envolve o espírito do marido, Geoff.
“- O que é isso?” pergunta ela, olhando um papel que ele tem nas mãos.
Aquela carta vai ser responsável pela enxurrada de emoções qque vai invadir aquele casal. Na semana da festa de 45 anos, eles vão questionar o vínculo harmonioso, amigável e amoroso que os unia até então.
Kate vai ter que lutar contra o ciúme, a suspeita, a dor de se sentir menos amada do que outra mulher e o pesar de se ver no espelho como ela é agora. O tempo pesa, de repente, sobre aquela que parecia tão segura de si.
E Geoff entra de cabeça numa volta ao passado, relembrando Katya, a moça morta nas montanhas, num acidente há 50 anos atrás, quando ele nem conhecia Kate.
“- A carta diz que, como a neve derreteu, dá pra ver o corpo dela dentro do gelo...” comenta ele.
À noite, no sótão da casa, primeiro Geoff às escondidas, depois Kate, vão procurar as fotos e os slides daquela viagem. Ele está atrás de sua juventude enquanto Kate se depara com uma amargura que lhe é estranha.
E então, ela começa a se questionar. Onde está o seu marido? Quem é aquele que visita a geleira e, em pensamento, olha o corpo de uma jovem que ele amou, quem sabe mais do que jamais amou a ela?
As vidas paralelas, que poderiam ter sido vividas, assombram aqueles dois.
Baseado num conto de David Constantine, o filme “45 Anos” tem roteiro e direção de Andrew Haigh, 42 anos. Apresentado no Festival de Berlim desse ano, recebeu críticas elogiosas e o Urso de Ouro de melhor atriz e ator foi para a dupla que representa o casal, Charlotte Rampling, que dispensa adjetivos e Tom Courtenay que consegue fazer uma boa parceria com ela e tira lágrimas do público com seu Geoff.
Um filme comovente, simples e complexo, como a vida.


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Ponte dos Espiões



“Ponte dos Espiões” - “Bridge of Spies”, Estados Unidos, 2015
Direção: Steven Spielberg

Um texto na telona explica que vamos assistir a fatos ocorridos no auge da chamada “Guerra Fria”, entre Estados Unidos e a União Soviética (hoje Rússia), em 1957, quando ambos os lados tem espiões que são caçados.
O filme é uma aula de história magistral, sobre um episódio ocorrido no século XX, dada por Steven Spielberg, que, com seu talento para a narração em belas imagens, prende nossa atenção com cenas iniciais onde aparecem ruas na chuva, homens de sobretudo e chapéu, guarda-chuvas e carros negros com agentes do FBI e da CIA.
Um homem acaba de ser surpreendido em seu apartamento. Vimos, na cena anterior, que ele lia com um lupa um papelzinho escondido numa moeda que ele recolhera debaixo de um banco, frente ao rio. Parecia ser somente um pintor de certa idade, talentoso. Mas o FBI prende Rudolf Abel (interpretado com brilho e simpatia pelo inglês Mark Rylance) como suspeito de ser um espião soviético.
Tom Hanks (um dos atores preferidos de Spielberg) é um advogado de uma seguradora, conhecido por suas estratégias de defesa bem articuladas. Mas até ele se surpreende quando é chamado para defender o suposto espião soviético perante um tribunal americano.
“- É uma honra ser escolhido, mas não faço isso há anos”, responde Jim Donovan para o representante do governo que faz o convite.
O advogado é o protótipo do americano patriota que acredita na Constituição. O lema de que todos tem direito a um julgamento justo, o conduziu a vida toda. Então, não soa bem a seus ouvidos que até o juiz desse caso espera que ele defenda Rudolf Abel, mas apenas para mostrar que há justiça no país.
“- Você vai defendê-lo, mas todos sabemos que ele será condenado”, diz o juiz.
Da noite para o dia, Donovan passa a ser mal visto por onde passa e, até a polícia, que vem investigar um atentado a tiros em sua casa, acha que ele é um traidor da pátria por defender o soviético.
Era uma época em que os Estados Unidos eram sinônimo de anticomunismo. As crianças prestavam juramento à bandeira na escola e eram ensinados a como sobreviver, em caso de ataque nuclear. Havia histeria no ar.
Quando questiona a sentença do juiz, que quer ver o soviético na cadeira elétrica, Jim Donovan parece prever o futuro. Ele argumenta que, vivo, Abel poderia ser moeda de troca, se um espião americano caísse nas mãos do inimigo.
Foi o que aconteceu em 1962, quando o piloto americano Gary Powers caiu com seu U2, que fotografava território inimigo. É Donovan que vai negociar a troca dos espiões.
Complicação extra acontece quando um estudante americano é preso em Berlim Oriental.
Todo o suspense e tensão é gerado por impasses nas conversas entre o advogado e as outras autoridades envolvidas. Vai e vem angustiantes, num lugar perigoso, gelado e infestado de ameaças.
Essa história, contada através de um roteiro brilhante, escrito por Matt Charman e pelos famosos irmãos Cohen, tem até bastante humor, principalmente nas conversas de Donovan e seu cliente soviético.
“Ponte dos Espiões” é um filme para quem conhece e, principalmente, para que não conhece esse período da história do século XX.
Aprender com Spielberg é um privilégio.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A Travessia


“A Travessia” - “The Walk”, Estados Unidos, 2015
Direção: Robert Zemeckis

Todos sabemos como foi. Saiu em todos os jornais do mundo a notícia de que, um francês, atravessara o espaço entre as Torres do World Trade Center, em Nova York, a 400 m do solo, num cabo de aço, sem nenhuma proteção.
E, no entanto, como é atraente ver no cinema, em IMAX e 3D, essa história sobre Philippe Petit que, em 7 de agosto de 1974, com 25 anos, realizou um sonho que todos julgavam se não impossível, para lá de temerário.
Segui-lo na construção da estratégia de execução do plano, pela câmera de Robert Zemeckis (“Forrest Gump”, “Back to the Future”), 64 anos, coloca-nos na “cena do crime”. A travessia era ilegal e tudo foi feito em segredo, por Petit (Joseph Gordon- Levitt) e seus cúmplices, que queriam ver e participar dessa aventura maluca.
Mas, na primeira parte do filme, alguns anos antes do feito, Petit era um artista de rua, malabarista, equilibrista e ganhava aplausos e vinténs.
Ninguém diria que um dia ele viraria um nome internacional.
Visionário? Onipotente? Louco? Foi preciso um pouco de tudo isso e mais um persistência e paciência raras.
Ele soube da construção das Torres em Nova York e encantou-se com a ideia de passear nesse espaço ainda não existente e para isso dedicou todos os minutos de sua vida, daí em diante.
Foi atrás do melhor professor, daquele que saberia instrui-lo não só na arte da “corda-bamba”, mas em como fazê-la segura e firme, lá no alto entre as Torres. Ben Kingsley, de chapéu e piteira, compõe com talento a personalidade do amedrontador Papa Rudy, um homem famoso do circo, que, contra tudo que acreditava, também se apaixonou pela aventura que Petit inventou.
E o aventureiro foi angariando simpatias de pessoas que ele precisa que o ajudem a concretizar o plano. Assim, Annie (Charlotte Le Bon) vai aumentar a auto-estima do namorado, o fotógrafo Jean-Louis (Clément Sibony) acredita no sucesso da maluquice e ainda traz para o grupo o professor de matemática, apavorado com alturas, Jean-François (César Domboy). Todos seguem com Petit para Nova York, meses antes do término de construção das Torres.
E é então que o filme de Zemeckis captura nossa total adesão. Ficamos hipnotizados. Torcemos por algo que já sabemos que deu certo. Mas é como se estivéssemos no ar com Petit. Cada passo no cabo, prende nossa respiração. Tal é a veracidade capturada pelos efeitos especiais, usados com inteligência e arte, que fazemos a travessia, que nunca foi filmada.
“A Travessia” captura um momento mágico. Mas também contraditório. Porque as Torres brilham ao sol e todos na plateia pensam no depois, quando o show foi de horror.
Mas, certamente, a façanha de Petit, recriada por Zemeckis, devolve o brilho às Torres que já não existem mais.
Porque assim é a vida. Momentos de êxtase e de pavor, coexistindo no mesmo espaço em tempos diferentes.
 

sábado, 17 de outubro de 2015

Viver é fácil com os olhos fechados



“Viver é Fácil com os Olhos Fechados”- “Vivir És Fácil con los Ojos Cerrados”, Espanha, 2013
Direção: David Trueba

Os anos 60 foram extraordinários. Toda uma geração cantou, dançou e amou ao som dos Beatles. Os quatro rapazes de Liverpool eram revolucionários, não só na nova estética que propunham mas principalmente no sentido de não aceitar as regras da sociedade de seus pais e pedir mais liberdade para os jovens.
Na Espanha, a ditadura do General Francisco Franco (1892-1975), que durou de 1936 até sua morte em 1975, conservadora, reacionária e brutal, espalhava um clima de terror entre  povo. A juventude espanhola estava com medo do futuro.
Pois foi em 1966 que John Lennon foi fazer um filme na Espanha, na cidade de Almeria. Os Beatles já haviam se apresentado em shows no país, mas dessa vez John  Lennon veio só, para filmar com Richard Lester “Oh! Que Delícia de Guerra”, uma comédia pacifista.
Foi então que um professor de inglês e latim de uma pequena escola pública, numa cidadezinha do interior, que usava as letras das músicas dos Beatles em suas aulas, sonhou algo impensável. Ele iria até Almeria para tentar se encontrar com John Lennon e convencê-lo a colocar a letra das músicas em seus discos. Ele achava que conhecer a mensagem desses rapazes seria muito importante, não só para os seus alunos mas  para todos os fãs dos Beatles.
A história é verdadeira e foi de onde partiu David Trueba para escrever e realizar seu filme “Viver é fácil com os olhos fechados”, que vem a ser a frase inicial de uma canção de John Lennon, “Strawberry Fields”, que ele realmente compôs durante a filmagem em Almeria, local de campos de morangos.
E lá se vai Antonio (o talentoso Javier Cámara, o enfermeiro de “Fale com Ela” de Almodóvar), gordinho, calvo, solteiro, trinta e tantos anos e ardoroso fã dos Beatles, em seu carrinho velho, ao encontro de seu sonho. O personagem, inspirado no professor que existiu, tem uma personalidade alegre, cativante, mas seu bom humor mescla-se com um quê de melancolia, num homem solitário.
E, no seu caminho, vai abrigar e dar carona à jovem e bela Belén (Natalia de Molina), que fugiu de uma casa onde abrigam mães solteiras que pensam em dar para adoção seus bebês e o adolescente Juanjo (Francesc Colomer) de 16 anos que também fugiu de casa porque seu pai, um policial autoritário, não quer vê-lo de cabelo comprido.
Os três desenvolvem uma sintonia perfeita ao longo do caminho e fazem nascer em nós uma torcida por eles, principalmente por Antonio, para que realize seu sonho quase impossível.
Uma Espanha pobre mas bela e solidária, choca-se com os representantes rudes dos camponeses de Almeria, que implicam com os cabelos de Juanjo. Claro que eles representam a Espanha que apoia Franco no poder. Ainda haveria anos negros naquele país. Mas o grito já fora lançado. Inevitavelmente, a Espanha mudaria seu percurso.
O filme com roteiro e direção de David Trueba (irmão menor de Francisco Trueba, 60 anos, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro por “Belle Époque – Sedução”de 1993), ganhou 6 Goyas, o Oscar espanhol, inclusive o de melhor filme, diretor e ator para Cámara.
Um filme agradável, bem feito, no formato tradicional dos anos 60 mas anunciando a semente do que viria.
Muito bom.

A Colina Escarlate


“A Colina Escarlate”- “Crimson Peak”, Estados Unidos, 2015
Direção: Guillermo del Toro

Uma mocinha loira, muito pálida (Mia Wasikowska), olha a câmera e diz:
“- Fantasmas são reais. Disso tenho certeza. A primeira vez que vi um, tinha 10 anos. Foi o de minha mãe. Ela morreu de cólera. Caixão fechado. Sem adeuses. Não a vi até que ela voltou...”
“- Quando chegar a hora, tenha cuidado com a Colina Escarlate... Ela disse isso para mim, numa noite de pesadelo. Levei muito tempo para entender esse aviso, mas então, era tarde demais.”
Esse monólogo é o prólogo de uma história que envolve ambição, vingança, amores proibidos e assassinatos. Maldade e loucura vão engendrar atos cruéis numa mansão secular, onde os fantasmas sobrevivem alimentando-se de desejos do passado.
Todo um jogo de emoções fortes acontece em cenários majestosos, de uma beleza arrepiante.
Os personagens, interpretados com ardor por atores que aceitaram o convite do diretor e escritor mexicano Guillermo del Toro (“O Labirinto do Fauno”2006), 51 anos, são arquétipos góticos em uma história que todos que leram Mary Sheley e Edgard Allan Poe conhecemos.
Mas não é a surpresa que Guillermo del Toro quer alimentar. Ele não quer assustar o público com monstros canibais. Seu desejo é mostrar a beleza exótica e sedutora, cenários que existem em sonhos e personagens movidos por alucinações.
“A Colina Escarlate” é um pesadelo sofisticado. As emoções fortes estão no centro de tudo. Fantasmas são só veículos de lembranças. Ou de avisos.
A heroína Edith, sem mãe e com o pai morto em circunstâncias misteriosas, é um brinquedo nas mãos dos irmãos Lucille (Jessica Chastain, morena e fatal) e Thomas Sharpe (Tom Hiddleton), aristocratas ingleses falidos e sem escrúpulos.
A produção de arte é excepcional e nenhum detalhe passa desapercebido. A iluminação à luz de candelabros adensa o clima de mistério. Os figurinos de Kate Hawley são uma lição do uso de tecidos para realçar a beleza dos corpos e chamam tanto a atenção, que eu, às vezes me distraia da trama.
Destaque para a cena da valsa com a vela, em que Mia Wasikowska usa um vestido de seda champanhe, ornado com fios de pérolas, cabelos num coque sedutor. Ou ainda, o vermelho escuro com gola de tule bordada que veste Jessica Chastain ao piano. Inesquecível a blusa de organza plissada de Mia e o azul marinho de veludo, deslumbrante, que acompanha Jessica Chastain na escada monumental de Alerdalle Hall.
E os insetos sempre presentes, obsessão de del Toro, são metáforas das duas personagens femininas. Assim, Edith é a borboleta colorida e diurna, enquanto Lucille é a mariposa negra, apavorante e noturna, que são multidão na mansão que afunda no barro sanguíneo.
“A Colina Escarlate”, cercada pela neve tingida de sangue, é um filme saído da imaginação e da fantasia extraordinárias de um dos mais originais diretores do cinema contemporâneo. Eu recomendo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Lulu, Nua e Crua


“Lulu, Nua e Crua”- “Lulu Femme Nue”, França, 2013
Direção: Sólveig Anspach

Atrapalhada, ela ajeita-se no espelho do banheiro, sem na realidade mudar em nada sua aparência comum. Um batonzinho, cabelos num coque, franja e um olhar baixo.
“ - A senhora está no banheiro dos homens”, informa um deles, achando graça na cara que ela faz. Murmura desculpas mas, desajeitada, leva tempo para recolher suas coisas. Outro homem entra e ela se adianta:
“- Já sei. Me enganei...”diz tímida.
A cena mostra que ela está nervosa porque tem uma entrevista para um emprego de secretária. E vê-se que, beirando os 40 anos e sem nenhuma experiência, ela não está segura de si mesma.
Frente ao dono da empresa, que dá pouca atenção a ela,  repete frases entrecortadas, já que o telefone toca sem parar e o homem atende a todos, negligente quanto à presença dela.
“- Mas ajudar seu marido na oficina mecânica não lhe basta?”
A pobre dá-se conta de que não vai haver emprego nenhum por ali. Mas o homem acrescenta:
“-Quer um conselho? Da próxima vez, cuide mais de sua aparência. Isso é importante numa entrevista de emprego.”
E lá se vai ela, cabisbaixa, dar a notícia ao marido, que já deixou três mensagens zangadas no celular dela.
Lucie (Karin Viard, excelente) que todo mundo chama de Lulu, parece ser uma mulher que cuida dos filhos e do marido mas não consegue sentir-se valorizada.
Quando ela perde o último trem para Angers, onde mora, a 50 km dali, hospeda-se num hotelzinho barato. E essas parecem ser as primeiras horas de sua vida, como ela mesma.
Tira a aliança para passar um creme nas mãos e inebria-se com o perfume. Não está acostumada a luxo nenhum. E quando seu olhar cruza com sua figura no espelho dá a impressão de que ela se vê pela primeira vez. Enrolada na toalha, adormece saboreando o espaço só dela, algo que não sabe o que é, mas que lhe dá prazer.
Pela janela, no dia seguinte, vê o mar e vai andar pelos rochedos onde o mar se quebra.
Ela ainda não sabe, mas encontros inesperados vão fazer Lulu mudar de atitude frente à vida. Ela vai descobrir qualidades em si mesma que estavam adormecidas.
Nua? Sim, ela vai mostrar seu corpo que enfrentou o frio da água do mar, sem pudores bobos. Um homem (Buli Lanners) vai apreciá-la e cuidar dela.
Mais além, uma senhora de 90 anos (Claude Gensac) gosta de sua presença e uma mocinha (Nina Meurisse) vai precisar de um empurrão para realizar seus sonhos.
O mais importante para Lulu é desvencilhar-se dos papéis de mulher e mãe mal amada, desnudando-se do que já não lhe servia e adotando uma atitude mais segura de si mesma. Finalmente, ela sabe o que não quer.
A diretora islandesa, 54 anos, Sólveig Anspach, ganhou o César de melhor roteiro adaptado de 2015 por “Lulu, Nua e Crua”, baseado numa história em quadrinhos de Étienne Davodeau. O filme teve 500.000 espectadores na França.
A diretora tinha um câncer contra o qual lutava há tempos e, infelizmente, faleceu em agosto de 2015, em sua casa no sudeste da França. Montava seu último filme, “L’effet Aquatique” que estreia em 2016.
“Lulu, Nua e Crua” é um filme doce, feminino que acompanha o desabrochar da personagem principal com um olhar simpático e sensível.

sábado, 10 de outubro de 2015

Peter Pan


“Peter Pan” – “Pan”, Inglaterra, Estados Unidos, Austrália, 2015
Direção: Joe Wright

Peter Pan é um personagem que sempre me encantou. Corajoso, galante, brincalhão. Chapeuzinho verde com uma pena, túnica meio esfarrapada, cinto e espada de madeira. Eu vestia a fantasia e fingia voar, como ele.
Para a menina que eu era, imaginativa e ávida por aventuras, o mundo da minha casa se ampliava quando eu brincava que era Peter Pan.
E é esse o ângulo que Joe Wright escolheu para fazer seu filme, uma homenagem à imaginação e ao sonho, que nos faz escapar de um mundo de realidade muito estreito.
O escritor que criou Peter Pan em 1904, o escocês J.M. Barrie (1860-1937), ajudou muitas crianças que viviam vidas sem graça, ou mesmo infelizes, a viajar com o menino voador para a Terra do Nunca, onde existiam fadas luminosas, belas sereias, crocodilos gigantes, florestas encantadas, piratas e índios.
Mas faltava uma coisa nessa ilha encantada: uma mãe.
O inglês Joe Wright, 43 anos, quer contar de onde veio Peter Pan, como nasceu o menino que não sabia que podia voar. Como todo órfão, o que mais fazia falta em sua vida, no lar de crianças abandonadas, era o carinho de sua mãe.
Nas primeiras cenas, vemos quando ela (Amanda Seyfried), abandona o bebê na porta do orfanato e coloca em seu pescoço a correntinha com a flauta e uma carta.
Doze anos depois, durante a Segunda Guerra, bombas caem sobre Londres e Peter sofre nas garras de uma freira que parece bruxa. Para uma criança sem mãe, todas as mulheres são inferiores e más, porque com sua presença denunciam a ausência daquela única que poderia amá-la de verdade.
E Peter sonha. E em sonhos vai para a Terra do Nunca, lugar da Mãe. Ele tem a certeza de que vai encontrá-la.
Na carta que ela deixou está escrito: “Não duvide de si mesmo. Você é extraordinário. Mais do que imagina.”
Escolhendo um registro psicológico, Joe Wright faz das angústias de Peter e de sua fuga da realidade através do sonho e da imaginação, o material para construir a Terra do Nunca, para onde se vai num navio que voa, porque ela está no meio das nuvens do céu. E lá Peter Pan vai descobrir quem é seu amigo e seu inimigo (Gancho e Barba Negra, substitutos paternos), conhecer sua verdadeira história e descobrir quão extraordinário ele realmente é. Uma mensagem que toda criança precisa ouvir.
Joe Wright valeu-se do 3D de forma criativa, os cenários com as cores do arco-íris inventam um lugar de fantasia, maravilhas e perigos, ameaças e descobertas.
O elenco é ótimo, destacando-se o australiano Levi Miller que interpreta Peter Pan com valentia e ingenuidade, Hugh Jackman que faz o Barba Negra, vilão com toque de alta costura e o Gancho de Garret Hedlund, simpático e malandro. Sem esquecer da princesa Tiger Lily ou Tigrinha, valente e encantadora (Rooney Mara).
Joe Wright, de “Desejo e Reparação”2007 e do luxuoso “Anna Karenina”2012, mostra novamente que o cinema, quando bem feito, mexe com nossas memórias mais antigas, funcionando como uma “máquina do tempo”que desperta a criança eterna lá dentro de nós.
Por tudo isso, “Peter Pan” vai agradar pais e filhos.

domingo, 4 de outubro de 2015


“Perdido em Marte”- “The Martian”, Estados Unidos, 2015
Direção: Ridley Scott

Um alvorecer banha o planeta de vermelho e descortina uma planície de solo amarelado e picos de pedra negra. Aqui e ali vemos homens trabalhando, vestidos em trajes espaciais, que se comunicam entre si, através de um sistema embutido em seus capacetes. Perto, uma base, onde há um laboratório onde se estudam as amostras colhidas.
De repente, soa um alarme. Sinal de tempestade.
“- Estaremos lá dentro antes disso”, diz um dos homens.
Mas parece que a tempestade é pior do que eles pensavam. E todos se apressam para subir na nave pousada perto. A missão em Marte terá que ser abortada. A luz quase desaparece e só distinguimos vultos batidos por uma pesada chuva de detritos.
Dentro da nave aprontam-se para decolar e alguém informa que Mark Watney (Matt Damon) está morto. Não há sinais vitais dele na tela de monitoramento. Depois de hesitar, a comandante (Jessica Chastain) dá a ordem para a decolagem.
A nave Ares III se lança no espaço, sem ninguém imaginar que Mark Watney (Matt Damon) está vivo e, de agora em diante, sozinho em Marte.
Ridley Scott, 77 anos, é o diretor de muitos filmes que marcaram época. Basta lembrar de "Alien”1979, “Blade Runner”1982, “Thelma e Louise”1991, “Gladiador”2000 e outros menos apreciados mas grandiosos, “Prometheus” 2012, que terá uma sequência e “Exodo: Deuses e Reis”2014.
Baseado no livro de Andy Weir, um programador de computador que escreveu e publicou “on line” e depois viu seu livro tornar-se um “bestseller”, o filme tem roteiro inteligente de Drew Goddard. O grande tema é a ciência e como ela consegue dar respostas às perguntas que Mark levanta para resolver os problemas ligados à sua sobrevivência em Marte.
Fiel ao livro, o filme coloca as questões científicas, que estão rigorosamente corretas, de forma mais acessível para o público entender, quando Mark faz anotações no seu diário digital.
Matt Damon interpreta o papel com perfeição e sua simpatia natural empresta encanto ao personagem que não se deixa derrotar por dificuldades que desanimariam qualquer um. Ele vai resolvendo com calma, humor e tenacidade, cada passo em direção à sua sobrevivência. Sobrepuja a solidão e o medo, fazendo a cabeça funcionar em prol de si mesmo. É um campeão da resiliência, que é a capacidade de retornar ao estado anterior, ainda mais fortalecido, depois de passar por adversidades.
E há a solidariedade na Terra, com os cientistas procurando resolver o problema de mandar uma missão de socorro para trazer Mark de volta. Por mais difícil e improvável que isso pudesse ser.
A trilha sonora de “Perdido em Marte” é um achado delicioso. Mark ouve música dos anos 70 o tempo todo, já que é a única disponível, deixada pela comandante da nave no meio de suas coisas na base. Gloria Gaynor encerra o filme com seu hino “I Will Survive” que nunca esteve tão bem aproveitado.
Ridley Scott, altamente inspirado, fez um filme que prende a atenção, cria paisagens belíssimas e exalta as boas qualidades da natureza humana.
Estamos muito precisados disso.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O Clube



“O Clube”- “El Club”, Chile, 2015
Direção: Pablo Larrain

Existem assuntos perigosos. Há que ter maturidade para mexer com eles. Foi o que aconteceu com o filme “O Clube”.
Pablo Larrain, diretor chileno, 39 anos, ganhou o Urso de Prata ou seja, o Grande Prêmio do Júri, no Festival de Berlim em fevereiro de 2015, com seu último filme. A crítica já tinha recebido bem o anterior “No”, que ganhou  em Cannes o prêmio da Quinzena dos Realizadores, o prêmio do público na Mostra de São Paulo e foi finalista no Oscar para filmes estrangeiros.
Mas, foi “O Clube” que alçou Pablo Larrain à seleta comunidade dos grandes cineastas contemporâneos, com excelentes críticas em Berlim.
A história, escrita por Larrain, Guillermo Calderón e Daniel Villalobos, se passa numa cidadezinha litorânea no Chile, “La Boca”, escura, pobre e destituída de encantos. O mar cinzento parece gelado e as areias da praia são negras. Mesmo quando o sol brilha, o vento cortante não deixa que ele aqueça aquele lugar esquecido do mundo.
Dentro da casa amarela, no alto da encosta próxima ao mar, é tão escuro, que mal identificamos os personagens que lá habitam. São quatro homens idosos, sentados à mesa do jantar. Comem silenciosos. Uma mulher mais jovem, está entre eles.
O mar ruge, lá embaixo na noite.
De dia, vemos esses homens (Alfredo Castro, Jaime Vadell, Alejandro Goic e Alexandro Sieveking) andando acompanhados de um galgo. A mulher (a excelente Antonia Zegers, mulher do diretor) desce a colina, com o cachorro pela coleira, e se aproxima de outras pessoas, também com cães. Vai haver uma corrida.
Da encosta, os quatro homens acompanham os acontecimentos com binóculos e comemoram sem alarido. O cão deles, Rayo, ganhou.
“- Com essa, já temos 400 mil. Vamos correr a regional e depois Santiago”, diz o homem que se ocupa com os treinos do galgo na praia negra.
Mas, um novo morador chega na casa:
“- Talvez alguns de vocês conheçam o padre Matias. De agora em diante, fará parte dessa comunidade”, diz o padre que trouxe o homem grande, de cabelos grisalhos revoltos e barba.
Aquela que se intitula irmã Monica, recebe o recém-chegado:
“- É uma casa de meditação. Muito importante para a Igreja”, fala ela, enquanto passa para o padre Matias Lazcano (José Sozo), as regras que ele deve obedecer. Não poderá ir ao povoado, a não ser em horários determinados e sozinho.
“- É absolutamente proibida a comunicação com alguém de fora.”
“- Não sei por que me submeter às mesmas regras que eles. Não cometi pecado. Não sou homossexual. Tive um probleminha...”
É só nesse momento que nos damos conta de que os personagens são padres excomungados da Igreja Católica, que praticaram delitos, tais como pedofilia, corrupção política e tráfico de bebês. Naquela casa a negação é regra, aliada à mentira e à falsidade. Entre eles, ninguém é culpado de nada.
E é justamente a chegada do padre Lazcano que vai deflagrar uma tragédia, lançando uma luz indesejável sobre aquelas pessoas escondidas do mundo.
Um jovem jesuíta virá com uma missão mas os acontecimentos se precipitarão e outro caminho terá que ser escolhido.
Larrain disse numa entrevista:
“- Fui educado em escolas católicas. Dos padres que eu conheci, alguns permaneceram homens honrados, respeitáveis. Outros estão na prisão ou tem problemas legais. E outros ainda, estão perdidos. O filme é sobre os que se perderam”. E acrescenta que “O Clube” é um filme sobre “amor, paixão e redenção”.
Quem gosta de acompanhar os grandes filmes, elogiados pela crítica séria, não pode perder esse último trabalho de Pablo Larrain, que ainda vai dar muito o que falar, por causa de seu talento.