domingo, 31 de julho de 2016

Julieta


“Julieta”- Idem, Espanha, 2016
Direção: Pedro Almodóvar

A visão de um tecido vermelho que enche a tela, com suas dobras que pulsam, lembra o íntimo de um corpo feminino. Imagem intrigante.
Aos poucos, a câmara se afasta e nós, que sempre estamos à procura de entender o que vemos, descobrimos que é um vestido cobrindo um corpo de mulher. Debaixo do vermelho, que segredos se escondem naquele coração?
De pergunta em pergunta, Almodóvar vai construindo seu vigésimo filme em torno a Julieta (a belíssima Adriana Ugarte na juventude e Emma Suárez, quando mais velha, ambas talentosas).
Aos 50 anos, elegante, cabelo louro curto, ela se prepara para partir de Madrid com Lorenzo (o argentino Dario Grandinetti de “Fale com Ela”).
“- Não consigo decidir que livros levar...” diz ela.
Ele responde docemente que Portugal não é um deserto e lá existem livrarias.
“- Me recuso a comprar livros que já li.” Alusão inconsciente a um passado do qual não quer se lembrar?
Ele a beija quando ela sai para um passeio e diz:
“- Obrigado por não me deixar envelhecer sozinho.”
Na rua, um encontro por acaso. Esbarra numa mulher jovem.
“- Julieta! Encontrei com sua filha. Mas você está igual! Ela já tem três filhos!”
A moça está apressada e um pouco estranha.
“- Você tem filhos ?”
“- Não. Nem me casei.”
“- E o que mais te falou Antía?”
“- Nada... Estava de cara lavada, mais magra, muito bonita.”
“- Onde você mora?”
Julieta se agarra a essas poucas palavras, quer saber mais mas a moça se vai com amigos que a esperam.
E o acaso muda tudo na vida de Julieta. Começamos a ver um pouco mais por debaixo dos panos. Ela tem uma filha que não vê há muito tempo. É avó e não sabia.
“- Mas você está agindo como uma louca”, exclama Lorenzo quando Julieta diz que não vai mais para Portugal com ele.
“- Preciso ficar em Madrid, sozinha.”
“- Sempre soube que havia um segredo em sua vida mas respeitei isso...”
“- Gostaria que continuasse respeitando”, responde uma Julieta estranhamente fechada.
Quando ele se vai, ela procura algo no cesto de lixo. Recupera pedaços de uma foto rasgada. É a filha, claro.
Senta-se, abre um caderno e começa a escrever para Antía. Mas mais parece que é para si mesma que escreve, querendo compreender o que foi que aconteceu.
O passado sepultado ressurge vivo, em cores fortes e tudo recomeça. Num grande “flashback”, Julieta volta para aquela noite no trem quando um homem se matou e outro fez uma filha.
Baseado nos contos curtos “Chance”, “Soon” e “Silence” do livro “A Fugitiva” da canadense Alice Munro, prêmio Nobel de Literatura em 2013, Almodóvar faz seu filme mais comovente, no qual o humor quase não tem lugar. Só aparece de passagem e negro, com Rossy de Palma, atriz fetiche do diretor.
Para alguns um filme menor, para outros uma nova elaboração, “Julieta” é sobre segredos íntimos. Sem perder seu toque, aqui melodramático, Pedro Almodóvar disse da escritora que o inspirou para fazer “Julieta”:
“- Quando termino de ler Alice Munro, parece que sei menos que antes.”
Traduzindo para “Julieta”, não será que os segredos dela, envolvendo perdas, traições, culpa e enganos, não devem, nem podem ser inteiramente desvendados?

Os segredos que envolvem a vida e a morte não são para ser desvendados mas sim para ser vividos. Não é o que parece mostrar o sempre genial Pedro Almodóvar? 

sábado, 23 de julho de 2016

A Comunidade


“A Comunidade”- “Kollektivet”, Dinamarca, Suécia, Holanda, 2015
Direção: Thomas Vinterberg

Um professor de arquitetura (Ulrich Thomsen), Erik, herda do pai um casarão perto do mar, em Copenhague. Ele pensa em vender o imóvel, dado o alto custo de manutenção. Mas sua filha adolescente Freja (Martha Sofie Wallstrom Hansen) adorou a casa e sua mulher, a apresentadora de televisão, Anna (Trine Dyrholm, fantástica), convence o marido a convidar pessoas interessantes para viver com eles em comunidade e assim dividir as despesas.
Ela não esconde uma certa monotonia na vida do casal e pensa que o convívio com novas ideias iria oxigenar o ambiente familiar.
Dito e feito. E os convidados começam a chegar. Cada um tem um motivo para querer mudar para a casa aprazível.
Estamos nos anos 70 e há uma atmosfera “hippie” no ar, “faça o amor não a guerra” e um gosto por roupas diferentes das tradicionais. Todo mundo quer ser jovem e feliz.
No começo, a convivência na comunidade é alegre e festiva. Canta-se muito, há banhos em pelo no mar gelado, muita bebida, comida e cigarros.
O primeiro sinal de que algo não vai bem ou que a vida é cheia de surpresas mesmo, atinge o habitante mais jovem da casa, um menino de 6 anos, que tem um problema cardíaco e desfalece em plena noite de Natal.
Todos sabiam dessa doença da criança mas, o próprio pai brincava dizendo que ele contava essa coisa de que não ia viver muito para atrair e interessar as meninas.
Havia algo de errado naquelas pessoas da comunidade. Uma alegria forçada que não combinava com a realidade.
O roteiro escrito pelo diretor e por Tobias Lindholm (os mesmos de “A Caça”, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro), inspira-se nas experiências do próprio Thomas Vinterberg, que cresceu numa comunidade “hippie”.
Talvez, por isso, a personagem da menina adolescente pode ser um alter-ego do diretor e personifique mesmo a peça fundamental de toda a história, já que ela descobre o amor justamente quando vê o casamento de seus pais desmoronar. Ela observa os adultos e começa a vida amorosa com medo de sofrer.
Os atores principais, excelentes, protagonizaram o filme mais famoso de Thomas Vinterberg, do movimento Dogma, “Festa em Família” de 1998 e são o principal foco do filme.
Anna, que era a que mais queria viver a ideia de comunidade, é a que é mais prejudicada, já que o marido não embarca como ela nessa aventura. De repente, sua vida foge do seu controle e ela tem que enfrentar o fato do passar dos anos.
“A Comunidade” passa uma reflexão de que a vida não é o que se sonha e que quanto maior for a idealização, maior o sofrimento e a decepção.

Um filme menor de Thomas Vinterberg mas digno de nossa atenção.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Life - Um Retrato de James Dean


“Life – Um Retrato de James Dean”- “Life”, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Austrália, 2015
Direção: Anton Corbijn

Ele é uma lenda do cinema.
Morreu jovem (1931-1955), com 24 anos. Não sabemos se o acidente de carro foi um suicídio ou pura fatalidade. Envolveu-se com mulheres mas não viveu nenhum romance duradouro. Houve boatos sobre sua sexualidade.
Na época, ele era a imagem de um rebelde, um jovem desajustado, como o personagem de seu filme “Rebelde sem Causa” de 1955, ano em que morreu e em que foi lançado também “Vidas Amargas”, adaptação do livro de John Steinbeck.
Seu terceiro filme, “Assim Caminha a Humanidade - Giant”, lançado em 1956, depois de sua morte, tornou-o o único ator de sua época a ganhar uma indicação ao Oscar depois de morto.
“Life” não procura saber mais do que já conhecemos um pouco. É um filme que tenta mostrar um episódio de sua vida, antes da fama, quase de bastidores, mas que teve enorme importância na construção do mito em torno de James Dean. E aconteceu por causa da teimosia de outro jovem.
Quando o fotógrafo “freelance” Dennis Stock (Robert Pattinson) oferece à revista “Life”, famosa e respeitada por suas fotos originais e reveladoras da personalidade do fotografado, um ensaio sobre James Dean, estamos testemunhando o começo da lenda em torno ao ator.
Stock, que tinha família para alimentar, não desiste desse projeto, nem quando o mais interessado nele, o próprio James Dean, pouco se importa com as fotos.
Dane DeHaan, é um James Dean que soa mais como um personagem sombrio construído pelo ator, com uma fala extremamente arrastada e hesitante. Sem o charme infantil de Jimmy, como era chamado.
Ben Kingsley, sempre um ator notável, é o único que passa algo vivo e real como Jack Warner, o poderoso dono do estúdio que contrata James Dean, relapso em suas obrigações contratuais.
Há algo muito destrutivo nessa não colaboração com quem dá a ele a oportunidade de tornar-se o ídolo que ele queria ser. Ou não queria?
E o filme do diretor holandês Anton Corbijn parece que não tem, ou não conseguiu, mostrar nada que acrescentasse algo à história de um ator famoso mas que hoje em dia mereceria um filme que destrinchasse mais sua ambiguidade e conflitos.
Talvez os fãs que se lembram de James Dean, que viram seus filmes, gostem de ver esse porque sabem como vai evoluir aquela história

Os outros vão achar o filme lento e ficar com uma impressão errada ou vaga sobre o ator.

terça-feira, 19 de julho de 2016

O Bom Gigante Amigo



“O Bom Gigante Amigo”- “The BFG”, Estados Unidos, 2016
Direção: Steven Spielberg

“- Todas as coisas ruins saem de seus esconderijos e o mundo é delas”, diz às 3 da manhã a pequena Sophie (Ruby Bamhill), a órfã insone, que zanza pelo orfanato
embrulhada em sua colcha de retalhos e seu gato e aproveita sua insônia para ler um livro de Dickens com uma lanterna. De óculos vermelhos, ela acredita que é às 3 da madrugada que é a hora das bruxas e não meia noite como todo mundo pensa.
E, curiosa, abre a janela e olha a rua escura londrina, onde bêbados fazem algazarra. Sophie ameaça chamar a polícia e eles correm. Ela tem autoridade.
Mas o que é aquela sombra enorme que se aproxima?
Sophie volta para a cama correndo.
Mal sabe ela que aquilo que se aproxima de sua janela vai levá-la para viver grandes aventuras.
Com sua enorme mão, o gigante carrega a menina apavorada em sua colcha, para uma terra misteriosa, escondida nas nuvens.
Nós, na plateia, vemos, maravilhados, todos os detalhes daquela enorme criatura, de pés gigantescos e orelhas imensas (que ouvem todos os sussurros da noite), o Grande Gigante Amigo (na voz e alguns traços de Mark Rylance, Oscar por “Ponte dos Espiões”, também de Spielberg), que é a alma do filme.
Primeiro assustada mas logo encantada, Sophie e BFG ficam amigos. No fundo, os dois solitários adoram ter a companhia um do outro. E Sophie, que pensava que todos os gigantes do mundo comiam crianças, aliviada percebe que BFG, ao contrário dos outros, adora crianças.
Emocionada, escuta seu novo amigo contar a história do menino que morava naquela casa e que teve um triste fim por causa dos outros gigantes, muito maiores do que ele, que habitam a Terra dos Gigantes e dormem debaixo da grama.
BFG, ao contrário dos outros, é vegetariano e gentil e sua profissão é caçar sonhos e colocá-los em garrafas onde cintilam em cores variadas. Guardados em prateleiras no seu laboratório, depois são soprados por BFG nas crianças que dormem.
Steven Spielberg, o mágico diretor de filmes para crianças, que os adultos adoram, mistura pessoas de verdade com figuras animadas por tecnologia e cria um mundo de fantasia e beleza em seu novo longa.
Há o medo e o horror na figura dos gigantes maus mas há também delicadeza, espiritualidade e encantamento, especialmente quando visitamos a grande árvore e o lago dos sonhos, com Sophie e o gigante.
O humor aparece nas piadas sobre, digamos, os efeitos da digestão e no final do filme, quando Sophie leva seu amigo grandão para falar com ninguém menos que a Rainha Elizabeth II (Penelope Wilton de “Downton Abbey”).
O filme é dedicado a Melissa Mathison que faleceu depois de escrever o roteiro, adaptado do livro de Roal Dahl de 1982, com a mesma poesia que havia no seu roteiro para “E.T.”
John Williams, responsável pela música do filme, como sempre, um mestre do som que comanda emoções.
Saimos do cinema ainda em transe, com as imagens fascinantes que acabamos de ver. Tudo funciona às mil maravilhas, principalmente o tema da amizade que une Sophie e o BFG, criaturas tão diferentes no tamanho mas tão parecidas no amor que sentem em seus corações.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O Botão de Pérola


“O Botão de Pérola”- “El Botón de Nácar”, Chile, França, Espanha, 2015
Direção: Patricio Guzmán

Quando termina seu belo documentário de 2010 “Nostalgia da Luz”, rodado no deserto do Atacama, o diretor chileno Patricio Guzmán se pergunta onde mais poderiam estar os corpos de vítimas da ditadura Pinochet, os desaparecidos que as famílias procuram em vão no deserto.
Encontrados vestígios de covas coletivas de onde teriam sido removidos os corpos assassinados pela ditadura que durou 16 anos, onde estariam?
Parece que um botão de madrepérola encontrado no oceano é um elo que fala de dois crimes contra a humanidade ocorridos no Chile. Um no século XX, outro no século XIX.
Mas para contar essa história, Patricio Guzmán começa sua narrativa falando das estrelas, vasculhadas pelos telescópios do deserto do Atacama, o lugar mais seco do planeta.
Isso o leva a pensar no cometa que teria trazido a água para a Terra, que toma grande parte do espaço onde vivemos. Essencial para a vida, a água é mostrada em imagens que vão do micro ao macro. Gotas de água de chuva, geleiras, mar e rios.
E aproveita então para falar dos povos aborígenes e nômades que viviam no sul do Chile há já 10.000 anos atrás. Foram os espanhóis que deram o nome de Patagônia a esse lugar onde encontraram indivíduos de pés grandes, os “patagônicos”.
Antes do homem branco lá chegar, esses povos que tinham cinco tribos, viviam da água. Em canoas pequenas moviam-se entre os fiordes, de ilha em ilha e singravam os mares, muitas vezes bravio daquelas paragens.
“Conheciam o idioma das águas”, diz Guzmán. Foram os primeiros navegadores do Chile e tinham uma intimidade com a água, depois perdida pelos chilenos.
Pintavam seus corpos de forma criativa, ilustrando em si mesmos, sua crença de que seus mortos viravam estrelas.
Quando o capitão inglês Fitzroy, no começo do século XIX chegou à Patagônia com a incumbência de mapear a região, levou para a Inglaterra Jemmy Botton, um homem que pertencia ao povo das águas, seduzindo-o com um botão de madrepérola para que o seguisse.
Guzmán diz que ele “navegou da Idade da Pedra para a Revolução industrial” e, depois, fez o percurso inverso.
Quando voltou para os seus, havia perdido sua identidade e não era mais o mesmo que partira.
Em 1883, os mapas de Fitzroy abriram as portas da Patagônia para os fazendeiros de gado e missionários católicos. “Foi a eclipse do mundo dos indígenas”,narra  tristemente Guzmán. Hoje restam apenas vinte descendentes que ainda falam a língua fadada ao desaparecimento.
Guzmán diz então que foi Salvador Allende que libertou vozes que nunca tinham sido escutadas. Foi ele, como presidente do Chile, que começou a devolução das terras dos povos indígenas.
Mas durou pouco essa liberdade, destruída por um golpe militar que torturou e matou milhares de pessoas.
Quando a corrente Humboldt devolveu à praia um corpo de mulher, começaram a suspeitar que o oceano era um cemitério. E Guzmán narra então a triste história dos mortos sem sepultura, outros desaparecidos.
“Não há limite para a crueldade”, resume o poeta Raul Zurita.
“O Botão de Pérola” ganhou o Urso de Prata de melhor roteiro no Festival de Berlim de 2015.

Imagens de sonho e lirismo nas frases ditas em “off” pelo próprio diretor, tornam esse documentário algo precioso para aqueles que prezam a verdade e a beleza.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

A Lenda de Tarzan


“A Lenda de Tarzan”- “The Legend of Tarzan”, Alemanha, 2016
Direção: David Yates

Desde sua criação como personagem em 1912, para uma revista, Tarzan encantou a todos os adolescentes e adultos que leram qualquer dos 24 livros escritos pelo americano Edgar Rice Burroughs, desde 1914.
Quando foi para a tela na pele do campeão de natação, Johnny Weissmuller, o primeiro Tarzan do cinema sonoro, emocionou as plateias com o famoso “Me Tarzan, You Jane” e principalmente por seu físico perfeito. Era a primeira vez que isso acontecia. Um corpo masculino mostrado com uma tanga, enorme na telona.
Mais. Personificava a força da natureza humana, o homem animal, aliada à inteligência e sentimentos puros que o tornavam um herói idealizado.
Desde então, outros atores apareceram como Tarzan, que quer dizer “Pele Branca” na língua inventada pelo criador do personagem.
O filme, dirigido por David Yates que adaptou para o cinema os últimos quatro volumes de “Harry Potter”, adota uma linguagem visual que mistura a tecnologia digital com filmagens em locação no Parque Nacional do Gabão, na África e nas montanhas Dolomitas da Itália.
As florestas são escuras e as imensas árvores servem ora como caminhos com seus largos galhos, ora seus cipós são a ocasião para os famosos voos de Tarzan que levam a gente junto, numa divertida e precisa coreografia.
A história do menino inglês órfão que foi criado por uma gorila e aceito como um igual por todo o bando de gigantes peludos e olhos quase humanos, é contada em “flashbacks”.
Quando no filme Tarzan aparece, ele é John Clayton, em seu castelo, na Inglaterra, lar dos nobres Greystokes, casado com Jane (Margot Robie, muito bonita e com uma boa química com seu par).
Ele parece estressado, caminhando pelos salões de sua mansão como um animal preso numa jaula. Quando vem o convite do rei Leopold da Bélgica, para visitar o Congo, ele não pergunta muito e vai. Jane atrás.
Mas quem os convence a ir para o lugar onde Tarzan passou grande parte de sua vida, foi o pesquisador americano negro George Washington Williams, (Samuel L. Jackson), que quer a ajuda de Tarzan para desmascarar a escravidão que acorrenta o povo do Congo com crueldade.
Na verdade, quem faz o convite é o vilão Leon Ron (Christoph Waltz, sempre maravilhoso) que é o representante do rei da Bélgica, que quer trocar Tarzan por diamantes da tribo africana que odeia o rei das selvas, por algo que aconteceu no passado.
Dessa forma, o personagem de Alexander Skarsgard tem uma complexidade que o afasta da ideia de um herói sem jaça como era o personagem no princípio.
Aliás o ator surpreende, não apenas pelo corpo esculpido e o visual louro de olhos verdes, mas pelo que transmite em seu olhar melancólico. Tarzan não pertence nem à selva, nem à cidade. É quase como se só se sentisse bem com Jane, aquela que teve um destino parecido com o dele e pode entender o que se passa em sua mente.
E temos, afinal, um filme onde o herói é levado por um negro (que realmente existiu e foi o maior inimigo do rei Leopold da Bélgica (1835-1909), que explorou a África sem dó nem piedade), a libertar um país de negros do jugo inominável da escravidão. Há uma crítica severa ao colonialismo.
Um filme que vai achar seu público, com certeza.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Chocolate


“ Chocolate”- “Chocolat”, França, 2016
Direção: Rodschdy Zem

É uma vergonha para a humanidade que existam pessoas, no século XXI, comportando-se do mesmo modo que outras que viveram dois séculos atrás.
A atual onda de intolerância, preconceito e racismo que vemos acontecer, é algo que não podemos deixar de denunciar.
Por isso o filme do ator-diretor Rodschdy Zem, “Chocolate”, adaptado pelo diretor, Cyrill Gely e Olivier Gorce, do livro “Chocolat Clown Nègre – L’histoire oubliée du premier artiste noir de la scène française” escrito por Gérard Noiriel, é bem-vindo para colaborar na reflexão sobre esse assunto.
Rafael Padilha, o verdadeiro nome de Chocolat, nasceu em Cuba, em 1865, de uma família escravizada. Ele também foi vendido como escravo para a Espanha mas conseguiu fugir e sobreviveu como pôde, até conseguir um lugar no Circo Delvaux.
Lá fazia “Kalanka, o rei canibal”, que assustava crianças e adultos ingênuos, que nunca tinham visto um negro de verdade. Dividia o picadeiro com uma chimpanzé, grunhia e fazia caretas, do alto de seus quase dois metros de altura. A plateia gritava entre o susto e a surpresa.
Foi quando George Footit, um antigo palhaço, tem a ideia de inovar e incluir o negro em seu número. Ele seria o palhaço branco autoritário e Chocolat o perseguido, que apanhava e levava pontapés.
O número usava o preconceito que via o negro como alguém que só podia ser ridicularizado pelo branco, já que não impunha nenhum respeito.
Deu certo e a fama deles como uma dupla original chega aos ouvidos do diretor do “Circo de Inverno de Paris”, que contrata os dois.
Chocolat adora Paris. A visão do novo espaço de trabalho, para quem só tinha visto picadeiros de circos pobres, o encanta. Passar da pobreza à riqueza e à fama não demorou muito. E Chocolat, mulherengo e generoso, gastava mais do que podia, jogava, bebia e contraia dívidas. Seu parceiro ganhava o dobro do que ele ganhava mas gastava pouco e censurava Chocolat.
Os dois fazem tanto sucesso que são escolhidos para serem filmados pelos irmãos Lumière. O filme passa em preto e branco no final, antes dos créditos.
A dupla figura em cartazes de propaganda de produtos. Toulouse Lautrec pintou Chocolat muitas vezes. A fama dele estava no auge.
Até que Chocolat é preso por dívidas de jogo e fica conhecendo um haitiano que acorda nele o que estava adormecido. Tarde demais.
Omar Sy está excelente como o palhaço grandão, ingênuo e simpático, adorado pelo público. Faz, com talento, um Chocolat que não percebe que só é aceito enquanto interpreta o papel que o público quer para ele.
É comovente sua decepção quando, querendo fazer teatro sério, seu Otelo é vaiado.
O ator que faz seu parceiro, James Thierré é mais conhecido na França como artista de teatro. Neto de Charles Chaplin, ele herdou o talento do avô para compor um palhaço patético.
“Chocolate”, apesar de não ser um filme excepcional, agrada bastante ao contar uma história exemplar.
E Omar Sy mostra, mais uma vez, porque é o queridinho do cinema francês. Ele é um ator com muito carisma e encanto. Vale a pena vê-lo interpretando Chocolat, um artista pioneiro, esquecido e dramático.

sábado, 2 de julho de 2016

Agnus Dei


“Agnus Dei”- “Les Innocents”, França, Polônia, 2015
Direção: Anne Fontaine

As maiores vítimas de uma guerra são sempre as mulheres e as crianças. Em qualquer guerra, em qualquer lugar, os inocentes são os que mais sofrem.
Esse filme de Anne Fontaine, diretora francesa que escolhe retratar figuras femininas em seus trabalhos (“Coco antes de Chanel” 2009, “Gema Bovery”2014) inspirou-se aqui numa história real, a vida de Madeleine Pauliac (1912-1946), que lutou na resistência na Segunda Guerra e foi médica-chefe do Hospital Francês em Varsóvia. “Agnus Dei” é dedicado a ela.
Estamos na Polônia, em dezembro de 1945 e a Segunda Guerra acabou. Mas os exércitos vencedores e desertores perambulavam pela Europa, saqueando e matando. Instintos agressivos foram liberados e os homens perdem o controle de seus atos, principalmente quando estão em grupos e a culpa repartida torna-se inexistente.
Mas uma cena quase celestial abre o filme. Estamos num convento e as freiras católicas com seus hábitos negros e véus brancos das noviças, entoam cantos gregorianos, na capela.
Olhos azuis assustados em “close”. Ouve-se um grito. Apressadamente, a freira retira as tábuas que cobrem uma abertura numa das paredes meio desmoronadas e sai.
Ela se apressa ao atravessar o bosque em meio à neve, passa por órfãos de guerra na rua esmolando e vai ao ambulatório da Cruz Vermelha. Lá pede ajuda em polonês, única língua que fala.
“- Aqui só franceses. Poloneses não”, diz um médico.
Mas ela não desiste.
“- Ela vai morrer. Me ajude!” pede a uma jovem enfermeira que se prepara para uma operação.
O local pequeno está repleto de macas com feridos.
A enfermeira fuma um cigarro na janela, terminada a operação, quando vê, surpresa, a freira ajoelhada na neve, rezando.
Na próxima cena, a enfermeira acompanhada da freira, dirige a ambulância da Cruz Vermelha.
Mathilde (Lou de Laage, perfeita), a enfermeira francesa que não conseguiu terminar seus estudos de medicina, não sabe o que vai encontrar.
Apesar da severidade com que olham para aquela que foi pedir ajuda, as outras freiras não impedem que Mathilde se aproxime de uma cama onde grita e geme uma mulher jovem, em evidente trabalho de parto. Apesar de suas tentativas de cobrir-se, a enfermeira sabe que uma cesariana terá que ser realizada.
À luz de um lampião e com a ajuda da única freira que fala francês, Maria (Agata Buzek), Mathilde consegue trazer o bebê ao mundo.
Exausta, ela volta ao ambulatório mas retorna ao convento, depois de dormir algumas horas para ver o estado da paciente e do bebê. Tudo isso porque ela ameaçou contar às autoridades, se não lhe fosse permitido acompanhar sua paciente.
Mas não consegue ver nenhum dos dois.
“- A família a rejeitou. O bebê está sendo cuidado por uma tia. Não está mais aqui...”
Mas quando uma outra freira desmaia diante dela, a superiora (Agata Kuleska, ótima) chama Mathilde para uma conversa a sós. E muito constrangida, conta que o convento fora invadido pelos russos que tinham violentado todas as freiras. Daí o bebê da noite passada.
“- Quantas estão nesse estado?”
“- Seis”, responde a superiora.
“- Vou indicar uma parteira para vir ao convento.”
Mas, frente à negativa fechada da superiora, Mathilde vai ter que se render e enfrentar o que foi posto no seu caminho. Será ela e ninguém mais. O segredo tem que ser protegido pela honra do convento. A superiora teme que seja fechado se soubessem do acontecido e promete adoção para todos os bebês.
Essa situação terrível vai envolver várias questões sérias. Problemas éticos vão demandar respostas nem sempre evidentes. A fé cega de todas as freiras vai ser abalada em maior ou menor grau. A gravidez vai mexer com elas de forma  também diferente para cada uma.
E Mathilde conquista a confiança de todas, quando consegue evitar que soldados poloneses entrassem no convento, graças à sua presença de espírito.
Ela mesma, quase é vítima de um estupro coletivo por soldados russos. Esse acontecimento aproxima Mathilde ainda mais daquelas pobres mulheres desamparadas e as ajuda como pode.
Imagens de Caroline Champetier fazem um filme dramático ter momentos de pura beleza, em tons quase monocromáticos
Anne Fontaine, que co-escreve um roteiro de ritmo perfeito, assina um filme comovente que não julga suas personagens. Ao contrário, coloca-nos no lugar das vítimas frente a situações impossíveis, cercadas de medo, trauma e vergonha. Um filme excelente.


A Bela Estação


“Um Belo Verão”- “La Belle Saison”, França, Bélgica, 2015
Direção: Catherine Corsini

A paixão é um sentimento que não escolhe hora, nem lugar. E assim, envolve duas pessoas, tão inteiramente, que elas criam um mundo à parte, pelo menos por algum tempo, fortificando-se com as dificuldades encontradas.
É o que acontece na história de Delphine (Izia Higelin) e Carole (Cécile de France).
As duas se encontram em Paris em 1971, um momento de grande ebulição de ideias e de novas maneiras de viver descobertas através do clima de liberdade que imperava.
Delphine, que vem do interior para a cidade grande, deixando a fazenda de seus pais, é uma jovem camponesa que aceita sua inclinação sexual, que surgiu nela muito pequena. Ela sente atração por mulheres. Mas, dado o conservadorismo reinante, ela preserva seus relacionamentos juvenís dos olhos críticos dos camponeses do local e da família.
Já Carole é uma mulher urbana, mora com o namorado e gosta justamente de enfrentar os preconceitos burgueses e de divertir-se com um grupo de outras mulheres politicamente envolvidas com a defesa dos direitos femininos. A vida delas é livre e agem até como adolescentes, longe da vista dos pais.
Delphine olha de longe esse tipo de ativismo mas não se envolve. Ela se encanta mesmo é por Carole e toma todas as iniciativas para seduzi-la.
A princípio surpreende a outra, que encara aquilo como um divertimento a mais. E uma oportunidade de escandalizar burgueses.
Mas a bela Carole, que pensava poder ser livre e levar a vida como bem entendesse, se vê envolvida por aquela menina saudável, que não se engana com o que sente e é mais livre do que Carole para aceitar essa atração, que logo se transforma em paixão.
Quando circunstâncias familiares obrigam Delphine a voltar para casa e tomar a liderança da fazenda em suas mãos, ela se mostra à altura dos acontecimentos e percebe que o trabalho com a terra e o trato com os animais é o que mais a deixa à vontade nesse mundo. Ela não é uma pessoa da cidade. Sente-se feliz no campo.
Carole aparece na fazenda, certa de poder recuperar a atenção e o amor de Delphine. Mas, apesar de sentir-se atraída pela ideia de largar tudo e seguir Carole, Delphine vai ter que refletir sobre as escolhas que vai fazer e que vão determinar o rumo de sua vida.
Belas imagens e excelentes atuações são o ponto forte de “Um Belo Verão”, que não hesita em mostrar os corpos femininos em seus mais íntimos detalhes. Mas será que isso ainda escandaliza alguém? Talvez os mais puritanos.
E certamente esse filme não é para pessoas que ainda não aceitam que o sexo é saudável e pode se expressar de diferentes maneiras.




Marguerite


“Marguerite”- Idem, França, Bélgica, 2015
Direção: Xavier Gianoli

A rica baronesa Marguerite Dumont vivia isolada mas dava festas e recitais disputados em sua casa palaciana, nos arredores de Paris. Sempre beneficentes e para o círculo “Amadeus” de amantes de óperas. E ela era, claro, a principal atração.
Estamos em 1920, os “anos loucos” e a Primeira Guerra deixara traços trágicos na Europa.
Quando começa o filme, Marguerite abre seus salões para um recital de novos talentos, entre eles uma bela e jovem soprano (Christa Theret), em benefício dos órfãos de guerra.
Pulando o muro, já que não tinham sido convidados, um crítico de música (Sylvain Dieuaide) e um artista de vanguarda (Aubrey Fenoy) vão presenciar a apresentação da baronesa, que se crê soprano coloratura e vai cantar a ária da Rainha da Noite, da “Flauta Mágica” de Mozart.
E, quando começa, os três, a jovem soprano e os dois rapazes, que nunca tinham escutado Marguerite cantar, se surpreendem. Ao invés do canto mágico e difícil, da garganta dela saiam grasnidos e notas erradas. Total e perdidamente desafinada.
Mas a plateia, apesar dos risinhos disfarçados, a aplaudia ao som de “Brava!”. Como era possível tanta loucura? Fácil. Marguerite era muito rica e patrocinava toda aquela gente que vinha aos seus recitais. Tudo ali era comprado. Inclusive o título de barão e baronesa.
O marido (André Marcon), o que mais se aproveitava da riqueza de Marguerite, conseguia chegar sempre no fim de suas apresentações, com mil desculpas, para evitar a vergonha. Ele e o mordomo fiel Madelbos (o ator do Congo, Denis Mpunga, ótimo), cuidavam para que Marguerite continuasse a acreditar em seu sucesso.
Aliás quem, em sã consciência, iria abrir mão de seus favores e contar a verdade trágica para Marguerite?
E o diretor, Xavier Gianoli, conduz com tanto talento essa história, baseada na vida da americana Florence Foster Jenkins (que será vivida por Meryl Streep no filme de Stephen Frears), que antes horrorizados, vamos nos afeiçoando a Marguerite, vivida com carisma pela atriz francesa Catherine Frot, premiada com o César, o Oscar francês.
A Marguerite de Catherine Frot convence na sua ingenuidade e carência afetiva. Ela acreditava piamente nas palmas dos hipócritas que a ouviam nos recitais em sua casa. Usando de uma forte negação, ela cantava para fugir da loucura, como confessa ao marido. Precisava dos holofotes, das roupas que tinham vestido famosas Carmens, Normas e Walkírias, que trajava nas fotos de Madelbos e que criavam uma falsa carreira para ela. Precisava ser vista e ouvida para existir nessa vida inventada, que a fazia esquecer de quem na verdade era e não queria ser.
Até o dia em que resolve apresentar-se ao grande público, nada mais, nada menos que na Opera Garnier, palco ilustre, vestida com asas brancas como um anjo.
O filme de Xavier Gianoli, quase uma fábula, mostra o poder de uma elite e o fato de que quase todo mundo tem um preço.
Nem comédia, nem tragédia, mas algo que mistura esses gêneros de forma harmoniosa, “Marguerite” comove e nos leva a torcer por ela. Ficamos divididos, por piedade e compaixão, entre a vontade de que ela pare de cantar e o medo de que isso faça com que ela sofra mortalmente.
“Marguerite”, sem dúvida, conquista a plateia.