domingo, 30 de setembro de 2018

Um Pequeno Favor



“Um Pequeno Favor”- “A Simple Favour”, Estados Unidos, 2018
Direção: Paul Feig

Já nos créditos iniciais, ao som de uma música francesa que diz “Elle est jolie comme une poupée” ou seja, “Ela é bonita como uma boneca”, “Um Pequeno Favor” é um filme feminino. Na tela, desfilam como fundo, detalhes de rostos, copos de Dry Martini, bolsas e sapatos num closet e uma faca elétrica.
Anna Kendrick e Blake Lively, tão diferentes uma da outra, vão se tornar melhores amigas depois de se encontrar na escola dos filhos delas. Uma coisa leva a outra e assim, acontece uma tarde regada a Gin Martinis e confissões, na bela casa contemporânea de Emily, que é Blake Lively, loura e linda, corpo perfeito, cabelão, alta e ácida mas principalmente sedutora e manipuladora.
Já Stephanie Smothers é Kendrick, suburbana, baixinha e bonitinha. Viúva, mãe exemplar, baixa autoestima, fica embasbacada com Emily, ex modelo e seu quadro enorme retratando sua “Origem do Mundo” ou seja, o que está entre suas pernas, pendurado bem à vista, naquela casa refinada.
Emily é casada com um escritor bonitão (Henry Golding) e é executiva de uma empresa que lida com moda, em Nova York. Pega o metrô todo dia de Connecticut para o trabalho. Não conseguiu uma babá e por isso pede a Stephanie, sempre prestativa, um pequeno favor. Vai ter que fazer uma viagem curta e, já que seu filho Nicky estuda na mesma escola que Miles, filho de Stephanie, será que ela poderia ficar com ele até a sua volta? O pai está em Londres cuidando da mãe que teve um acidente.
A “grande” amiga, louca para ganhar pontos e não perder tudo que Emily traz para sua vida, até então um marasmo, aceita prontamente a incumbência. E, em seu vídeo diário de receitas e dicas para mães, Emily começa a aparecer como personagem principal. Principalmente depois que some, sem deixar vestígios.
“Um Pequeno Favor” não se leva a sério e mesmo quando vira “thriller” continua comédia, agora com tintas “noir”, trazendo à tona o passado de pecados das duas protagonistas. Mas sempre sem perder o toque divertido.
Paul Feig dirige com humor essa história de segredos bem guardados e suspense, dando espaço para as duas atrizes que formam um duo com ótima química.
Com figurinos que chamam a atenção e definem bem as personagens e cenários interessantes, o filme baseado no livro de Darcey Bell de 2017, faz a plateia seguir os passos das duas protagonistas, inclusive nos “flashbacks” esclarecedores do passado, mas só para os mais atentos. Os distraídos podem se perder nas reviravoltas do filme.
Brigitte Bardot e Serge Gainsbourg na trilha sonora são referência do “chic” almejado.
Sem ser profundo nem raso, “Um Pequeno Favor” quer divertir e consegue.

sábado, 29 de setembro de 2018

Sem Data, Sem Assinatura



“Sem Data, Sem Assinatura”- “Bedoune Tarik, Bedoune Emza”, Irã, 2017
Direção: Vahid Jalilvand

Tudo acontece muito rápido. Uma moto é atingida pelo espelho do carro que teve de desviar de outro e está caída ao lado da avenida escura.
Imediatamente, o homem que causou o acidente estaciona e vai ajudar a família que estava na moto. Um bebê chora no colo da mãe e um menino de uns 8 anos está ao lado do pai que conduzia a moto.
“- O meu filho bateu a cabeça”, diz o pai aflito.
O homem do carro se ajoelha para examinar o menino:
“- Está com náuseas? Sua cabeça está doendo? Eu sou médico. ”
Acrescenta que pagará os estragos na moto e o hospital para o menino. O médico parece preocupado. Não deixou chamar a polícia porque sabia que seu seguro não estava em dia.
“- Vou dar uma carona até o hospital e pago o conserto da moto. ”
Tira a carteira do bolso e diz para o pai da família:
“- Pegue o quanto quiser para o conserto. Tem um hospital aqui perto. ”
Mas o homem põe a moto em pé e diz que vai sair dali com a família. O carro do médico segue atrás e ele buzina sinalizando a entrada do hospital. Mas a moto segue em frente.
Mal sabia o dr Nariman (Amir Aghaee), médico legista respeitado que ali começaria um drama. Tanto para a família de Moose (Navid Mohammadzadeh), quanto para ele próprio.
Perplexo, ele vê no dia seguinte, o corpo do menino no necrotério. Tinha chegado pela manhã cedo e ia ser autopsiado para determinar a causa da morte.
Atordoado, ele ouve falar que o exame laboratorial indicava intoxicação alimentar e botulismo. Mas ele não consegue se convencer. Para ele o menino tivera uma concussão cerebral por causa do acidente. Os sintomas são os mesmos nos dois casos.
A família do menino é avisada e vemos a mãe (Zakiyeh Behbahani) culpar o marido pela morte do filho.
Ele fica louco de dor e raiva e corre ao abatedouro onde comprara barato carcaças de galinha.
Outro drama acontece.
O filme, dirigido e com roteiro do iraniano Vahid Jalilvand, 42 anos, mostra o conflito interno em que a culpa arrasta tanto o médico como o pai do menino, de modos diferentes, mas igualmente terrível, para um inferno.
De quem é a culpa pela morte da criança?
Mesmo depois da justiça ser acionada, não importa a decisão do juiz. Fica claro que cada um dos homens envolvidos nunca vão se livrar dessa culpa que os perseguirá para sempre.
O filme tem cores desbotadas, quase cinza, combinando com a situação de dor e luto que toca a todos.
“Sem Data, Sem Assinatura” mostra o Irã e seus problemas sociais mas também ultrapassa fronteiras e fala do humano, sob o peso e o jugo da culpa, sempre na sombra e da qual não nos livramos quando ela cai em cima de nós e é acolhida. Se somos éticos, claro.
O filme foi premiado no 74º Festival de Veneza, na mostra Orizzonti, como melhor direção e melhor ator para Navid Mahammadzadeh.
Seco, envolvente e trágico.


quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Encontro Marcado



“Encontro Marcado”- “5 to 7”, Estados Unidos, 2014
Direção: Victor Levin

Aposto que vocês não sabem. Eu também não sabia mas o narrador do filme, o candidato a escritor Brian Bloom (Anto Yelchin), conta que os bancos do Central Park são doados à cidade de Nova York com direito a uma placa com uma inscrição. Tem de tudo, sugerem muitas histórias, mas uma em particular vai ensinar muita coisa ao jovem de 24 anos que, por mais que tente, não consegue publicar nada que escreve.
“I Would Hold Your Heart More Tenderly Than My Own”, ou algo como “Eu vou cuidar do seu coração com mais ternura do que cuido o meu”. A câmera mostra longamente essa inscrição mais intensa do que as outras. Alguém tem que se esquecer de tanto que ama o outro. Isso vai dar certo?
Bem, aí entra nosso jovem que, andando pelas ruas da cidade, cansado de não conseguir a inspiração desejada, bate o olho numa morena que fuma na calçada de um restaurante. Uma sereia.
“- Foi a primeira vez que eu atravessei a rua por causa de alguém", confessa ele.
Arielle tem um sorriso que ilumina tudo em volta dela (Bérenice Marlohe) e Brian, que precisa tanto de uma musa, parece que encontrou a sua.
Só que Arielle é bem casada, com o consul francês em Nova York, Valéry Pierpoint (Lambert Wilson) e tem dois filhos. E os “5 às 7” do título original é o que resta para os dois. Refere-se a algo que é uma expressão que significa um encontro amoroso com regras.
“- Ninguém vai perguntar o que uma pessoa faz das 5 às 7”, explica Arielle para um Brian decepcionado mas que entende o que o objeto de seu desejo quer dizer. Trata-se de um terreno privado da pessoa que é casada com outra, que também tem um espaço privado. Valéry ama Arielle mas também se distrai com Jane (Olivia Thirlby), uma jovem editora.
E vemos todos juntos num jantar na casa dos franceses. Tudo muito civilizado, dentro das regras aceitas por todos os participantes.
Mas Brian Bloom vai amar perdidamente, fazer juras e levar Arielle para conhecer seus pais, interpretados deliciosamente por Glenn Close e Frank Langella.
A mãe judia de Glenn Close diz para o marido escandalizado com a namorada casada do filho:
“- Como podemos não amar alguém que ama o nosso filho? ”
O roteiro escrito pelo diretor Victor Levin sugere que existem várias formas de amar e ser amado. E que um amor especial nunca é esquecido, aquecendo o coração com uma lembrança doce. E também que o importante é ter coragem para enfrentar as dores de amores, que sempre acontecem.
Agora, quem quiser tranquilidade, céu sem nuvens, melhor evitar o “5 às 7”.


segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Orgulho e Preconceito



“Orgulho e Preconceito”- “Pride and Prejudice”, Inglaterra, 2005
Direção: Joe Wright

Um dos romances mais famosos da literatura inglesa, “Orgulho e Preconceito” já foi tema de vários filmes para o cinema e a televisão. Publicado em 1813, foi escrito por Jane Austen (1775-1817) que nasceu em Hampshire, Inglaterra, caçula de oito filhos de uma família tradicional.
Dessa vez, o diretor estreante no cinema, Joe Wright, conduz com elegância a história de Elizabeth Bennet, a Lizzie e seu romance complicado com o Sr Darcy, um nobre e rico cavalheiro, além de tudo bem apessoado. Mas que, aliás, começa mal, por conta da arrogância dele que rejeita num baile o convite de Lizzie para dançar. Ela fica furiosa e, mais ainda, ao escutar por acaso que Darcy não a considera atraente e julga mal sua família sem requintes.
Os Bennet (Donald Shutherland, ótimo e Brenda Blethin, divertida) realmente não tem posses suficientes para dar uma educação aristocrática às cinco filhas. Assim, a preocupação em casar bem as meninas movimenta a trama das garotas e sua mãe, sempre de olho nas oportunidades de conhecer bons partidos.
Essa era a maneira com que se educavam as mulheres no fim do século XVIII, quando se passa a história. Se uma moça não se casasse, ela seria um fardo para a família e teria uma vida bem triste.
Mas Lizzie (Keira Knightley), a segunda filha dos Bennet sonha com um casamento por amor e não por interesse. Porém duvida que isso aconteça com ela, apesar de ser inteligente, independente e bonita. Não tanto porém como a irmã mais velha, Jane (Rosamund Pike), que logo atrai a atenção do nobre recém chegado no condado, dono da mansão mais bonita do lugar, o Sr Bingley (Simon Woods), amigo do Sr Darcy (Mattew Macfadyen).
Claro que Lizzie e Darcy vão acabar juntos mas as reviravoltas que eles vivem movimentam a história e prendem o espectador.
Keira Knightley foi indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro e faz o papel com graça, humor e uma irreverência polida, além de estar particularmente bela, iluminada pelo magnífico cenário do campo inglês.
A direção de arte é detalhista e recria os ambientes do século XVIII como só os ingleses sabem fazer. A trilha sonora de Dario Marianelli usa com inspiração o piano para pontuar e realçar os sentimentos dos personagens.
“Orgulho e Preconceito” é um filme delicioso e romântico na medida certa, sem os exageros adocicados que poriam tudo a perder.


quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Uma Questão Pessoal




“Uma Questão Pessoal”- “Una Questione Privata”, Itália, França, 2017
Direção: Paolo Taviani

Esse foi o último filme que os irmãos Taviani assinaram, pois Vittorio morreu em abril de 2018, aos 88 anos, terminando uma parceria de mais de 60 anos de filmes premiadíssimos, feitos por ele e o irmão Paolo, 86 anos.
Alíás, estamos duplamente enlutados porque um dos produtores desse último filme, Ermanno Olmi, outro grande nome do cinema italiano, diretor de “Árvore dos Tamancos”, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, também faleceu esse ano.
“Uma Questão Pessoal” foi adaptado do romance de Beppe Fenoglio, publicado em 1963, que escreveu sobre a Resistência na Itália, durante a Segunda Guerra. Entretanto, no filme o foco do roteiro, assinado pelos irmãos Taviani, está em um triângulo amoroso e a guerra é um pano de fundo. Mostrada com realidade, sem dúvida e o filme é importante como testemunho da luta contra o fascismo. Mas é numa guerra íntima que o filme está mais interessado.
Milton (Luca Marinetti, excelente ator) fica conhecendo Fúlvia (Valentina Bellè) através do amigo Giorgio (Lorenzo Richelmy). Vemos os três juntos durante o verão de 1943, na bela casa de campo da família de Fúlvia. Milton está claramente apaixonado mas não se declara, por timidez e medo de ser rejeitado. Ela, por sua vez, troca longos olhares com Milton enquanto dança com Giorgio. Fúlvia é coquete e flerta com os dois.
Quando a guerra chega ao Piemonte em 1944, Milton e Giorgio entram na resistência. E o filme começa com Milton, armado, com um companheiro, imersos numa densa neblina. De repente, Milton larga tudo e começa a subir correndo a colina. Vemos o outro gritar seu nome mas ele não atende. E chega a seu destino.  A casa de Fúlvia, bela e fechada.
A caseira vem ver quem está ali e reconhece Milton. Ele pergunta sobre a moça, se mandou notícias. Mas não. E a mulher, entrando na casa com ele, sem querer, envenena o coração de Milton, contando dos encontros noturnos de Fúlvia e Giorgio, naquele verão passado.
Cego de ciúmes e raiva, Milton sai à procura de Giorgio.
O belo Giorgio, de família rica e Milton, de uma classe social inferior, eram amigos íntimos, apesar da diferença entre eles. E Milton se divide agora entre o ódio que sente do amigo e a vontade de não querer acreditar que ele o traiu.
Na verdade, Milton está enlouquecido pois não havia nada de sério entre ele e Fúlvia, além da paixão platônica, não declarada e longas cartas que ele enviava quando Fúlvia ia a Turim.
Não à toa, a música “Over The Rainbow”, cantada por Judy Garland ou só em notas interrompidas, é ouvida durante o filme. Magia e nostalgia.
E a neblina densa, que ora esconde a paisagem, ora dá lugar ao sol brilhante, é como se fosse uma metáfora para a paixão que cega Milton.
“Uma Questão Pessoal” é um filme poético, com sentimentos que eclodem vindos de uma parte autodestrutiva de Milton que quer matar e morrer.
Felizmente ele descobre a tempo que quer viver.
Bravo aos irmãos Taviani! Adeus a Vittorio..


terça-feira, 18 de setembro de 2018

Não olhe para Trás




“Não Olhe para Trás”- “Danny Collins”, Estados Unidos, 2015
Direção: Dan Fogelman

Al Pacino fazendo um “rock star” brega aos 75 anos (o filme é de 2015), com o cabelo pintado, cavanhaque, brinco e “foulard”, cantando canções bobas que agradam à plateia que tem a mesma idade dele, não parece ser um filme bom. No entanto, apesar dos clichês, é muito bom.
O filme é frouxamente baseado num fato real. O músico folk americano Steve Wilson recebeu uma carta de John Lennon, discordando do que ele tinha dito numa entrevista sobre o quanto o dinheiro pode prejudicar o talento de um compositor. Pois bem. Nesse filme o entrevistado é Danny Collins, que só vai receber a carta de John Lennon 40 anos depois que ela foi enviada.
No aniversário de Danny, sabendo que Lennon era seu ídolo, seu empresário Frank (Christopher Plummer, ótimo numa ponta) descobre a carta de Lennon para Danny e dá a ele como presente. Nunca Frank poderia imaginar o choque que provocaria. Não só pelo fato da carta ter sido escrita para ele, incentivando suas composições mas ainda por cima, ter mandado seu número de telefone oferecendo ajuda.
“- Como minha vida poderia ter sido diferente se eu houvesse recebido essa carta...” lamenta ele, entrando numa crise existencial daquelas.
E decide dar fim às drogas, à garota que era casada com ele e tinha idade para ser sua filha, aos shows e às canções bregas. À bebida não, porque ninguém é de ferro.
Frank tenta dissuadí-lo mas Danny está convencido de que as mudanças vão fazer bem a ele e, principalmente, ao filho que tinha e que nunca conhecera.
Prepara-se para esse encontro hospedando-se no Hilton mais próximo, a bordo de uma Mercedes vermelha com portas/asas de gaivota. E, para não perder o jeito, tenta seduzir a gerente do hotel, Mary (Annette Bening), linha dura, não tão jovem mas sempre sorrindo e, visivelmente encantada com o charme de Danny, apesar das negativas a seus convites para jantar.
Assistir ao filme é um programa delicioso. Além de Al Pacino vamos ver interpretações excelentes do filho (Bobby Cannavale), da nora (Jennifer Garner) e da netinha hiperativa.
Filmes que oferecem uma segunda chance a personagens decadentes são sempre sucesso se a emoção for dosada de maneira certa. É o caso de “Não Olhe para Trás”, um filme que agrada, eu diria, mesmo aos corações mais duros.


Marvin



“Marvin”- Marvin ou La Belle Éducation”, França, 2017
Direção: Anne Fontaine

O close inicial é o de um rosto jovem se preparando em frente ao espelho, que somos nós, a plateia. É um ator. Finnegan Oldfield é Martin Clément, que já foi Marvin Bijou. Vai contar a história de sua vida, num cenário onde vemos um espelho d’água cor de sangue, uma escada e uma cadeira.
Apenas dois personagens nessa peça escrita pelo próprio ator. Ele e ela, sua mãe, interpretada pelo ícone do cinema e do teatro francês, Isabelle Huppert, que faz ela mesma.
Mas o filme dirigido por Anne Fontaine (“Agnus Dei” e “Coco antes de Chanel”) se inspira no livro de Edouard Bellegueule e não tem uma narrativa linear. Nossa compreensão da vida e da personalidade de Marvin, desde quando era um garoto entrando na adolescência até a idade adulta, é criada com “flashbacks” muito bem montados.
Assim, no início vemos um Marvin solitário, perseguido por garotos mais velhos que batem nele e o obrigam a atos contra sua vontade, passam batom em sua boca e o chamam de “viadinho”.
Também vemos sua ingenuidade e a vida que leva numa família pobre e tosca. Pai bruto, mãe distante e ignorante. Um meio irmão mais velho e também brutal e um irmãozinho menor.
“- Pai? O que é “viado”? Li no cartaz do ponto de ônibus. Escreveram “Viados Sujos.”
“- Você sabe. Um degenerado. Um doente mental. ”
E Marvin, anos mais tarde, pensa alto:
“- E eu me lembro que pensei então que eu não era louco. Se ser “viado” é ser doente mental, então eu não era “viado”, porque não era louco. ”
E o mesmo menino eu sofria com o “bullying” dos mais velhos, na verdade era sensível, carente, alguém que não pertencia a esse ambiente brutal onde nascera e vivera até então.
E quando o desejo por um corpo masculino aparece nele na piscina da escola, olhando aqueles que o maltratavam, a mente de Marvin sofre com a incompreensão do que se passava com ele. Desejos contraditórios. Culpa.
Sua salvação vai ser as aulas de teatro e a nova diretora da escola que percebe o quanto aquele menino precisava de uma mão amiga.
Mas mais importante que tudo, Marvin precisava se conhecer e gostar de si mesmo. Aprender que ele não era o “errado”. Ele era apenas diferente dos outros meninos. Mas existiam os iguais a ele.
E Anne Fontaine dirige seu filme com inspiração e a dose certa de emoção, seguindo o caminhar de Marvin em direção a si mesmo.
A auto aceitação, mais difícil do que o papel de vítima, faz Marvin dar-se o nome de Martin e mudar de sobrenome. Bijou pra Clément, o nome da diretora que foi sua tutora e amiga.
E então, concluir em sua peça teatral autobiográfica que a realidade é subjetiva. E que, portanto, podia olhar também o seu passado e sua família com outros olhos.
Marvin conseguiu reinventar-se.


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Ferrugem



“Ferrugem”- “Rust”, Brasil, 2017
Direção: Aly Muritiba

A adolescência é sempre difícil. Todos sabemos disso. Insegurança, sentimento de inadequação, estranheza envolvendo o corpo que se modifica e perda do mundo da infância. Idealizações são substituídas por realidades ainda assustadoras. É um período de sentimentos exacerbados e grande fragilidade.
Foi sempre assim, mesmo que os cenários tenham mudado.
“Ferrugem” começa com uma excursão dos adolescentes de uma escola a um aquário. Meninos e meninas tiram selfies, falam alto e riem.
As “sereias”, com seus rabos falsos nadando pelo aquário, chamam mais a atenção dos adolescentes do que os peixes da Amazônia, que deveriam ser observados para o trabalho da aula de Biologia.
O professor se esforça dando explicações que mal são ouvidas.
A câmera se aproxima do rosto de Tati (Tifanny Dopke), 16 anos, que troca olhares com Renet (Giovanni de Lorenzi).
Na frente deles, em meio às pedras do fundo do aquário, um peixe verde que mais parece uma cobra, assusta com a boca aberta:
“- Sabia que um choque desse peixe pode matar quando ele se sente ameaçado? ”, diz Tati meio que provocando Renet.
Eles ainda não sabem mas vai começar uma tragédia, contada por um excelente roteiro, escrito pelo também diretor Aly Muritiba a duas mãos com Jessica Candal.
Na primeira parte do filme, Tati, que brigou com o namorado Nando e perdeu o celular, é alvo de “bullying” na escola. Um vídeo íntimo dos ex namorados é do conhecimento geral. Caiu no whatsapp de um aluno e se espalhou.
No corredor que leva às salas de aula, Tati percebe que algo estranho aconteceu. É recebida com assovios e gritos de “Gostosa!” e “Tá famosa, ein?”
Ela vai sentir o golpe, deprimir e com medo da reação dos pais quando o vídeo aparece num site pornográfico, vai se desesperar. Entrega-se à sua própria auto- destruição e comete uma loucura.
Na segunda parte do filme observamos Renet e sua raiva de tudo e de todos. Sofre as consequências de um ato impulsivo. Está brigado com a mãe e não quer falar com ela. Ciúmes e uma reação de ataque machucaram todos os envolvidos.
Em “Ferrugem”, os adultos se comportam de uma maneira que não ajuda esses adolescentes. Tati tem pais ausentes e nenhum diálogo com eles. Por sua vez, Renet está com ciúmes e raiva da mãe (Clarissa Kiste) que se separou do pai dele e está grávida do segundo marido. Ela é a única que busca compreender o que se passou para ajudar o filho.
“Ferrugem” fala de algo que não é novidade mas que é sempre bom lembrar. Nessa nossa era de comunicação ao alcance de todos e que invade a vida privada, nunca é demais ter muita cautela e respeito pelos outros.
O título do filme lembra a característica corrosiva que pode atacar os vínculos interpessoais.
No Festival de Gramado “Ferrugem” levou o prêmio de melhor filme brasileiro, melhor roteiro e melhor desenho de som.
Um filme muito bem realizado, que surpreende e ajuda a pensar num problema que não tem respostas prontas.

domingo, 2 de setembro de 2018

As Herdeiras




“As Herdeiras”- “Las Herederas”, Paraguai, Alemanha, Brasil, Uruguai, Noruega, França, 2018
Direção: Marcelo Martinessi

A sutileza, a timidez, a dependência e a quase invisibilidade eram características do mundo de Chela (Ana Brun) que mantinha uma relação íntima com Chiquita (Margarita Irun), que é mais independente, mais segura e que tomava conta de tudo na casa onde Ana nascera e na qual viviam juntas há 30 anos.
As duas pertenciam a uma elite da cidade de Assunção, Paraguai e conheceram a riqueza. Mas agora era a decadência que lá se instalava.
“As Herdeiras” vai contar a história dessas duas mulheres naquela idade que não se sabe direito se são cinquenta e tantos ou sessenta e poucos. E nesse período da vida é difícil aceitar mudanças. Então elas são obrigadas a receber pessoas interessadas em comprar o que resta do fausto de uma época. Os cristais, a prataria, quadros e móveis, tudo está à venda.
Chela e Chiquita são ajudadas pela amiga Carmela (Alicia Guerra) a lidar com todo tipo de gente, que vasculha a casa e pechincha o preço.
A nova empregada Pati (Nilda Gonzalez) é analfabeta mas gentil com as patroas e firme com os possíveis compradores das riquezas que restaram.
Mas não adianta. As dívidas com o banco levam Chiquita à prisão. Chela vai ficar só.
E quando isso acontece, ela não consegue dormir. A ausência da companheira vai mexer com medos profundos. Parece uma criança perdida, tal a imobilidade perante o mundo. Só consegue pintar seus quadros e não sai de casa.
Visita Chiquita na prisão mas a balbúrdia e o vozerio das mulheres a atordoam.
E, contra todas as previsões, aos poucos, essa mulher vai mudar. Mas será algo que acontece dentro dela, no poço profundo de seus sentimentos, escondidos até de si mesma.
O tempo da prisão de Chiquita vai ser o de libertação para Chela, que aprende a dar passos no mundo, muito instigada a isso pela vizinha que pede que a leve ao jogo diário com as amigas. Conduzindo o velho Mercedes, leva as senhoras para casa.
Tímida e orgulhosa no início, depois aceita que paguem pelos seus serviços.
E a juventude de Angy (Ana Ivanova), uma moça que ele fica conhecendo, vai abrir outras portas trancadas em Chela. Seus olhos azuis se iluminam, o espelho mostra uma mulher ainda bela e o futuro dirá o que pode acontecer.
O filme ganhou o Urso de Prata de melhor atriz para Ana Brun e de melhor direção para Marcelo Martinessi no Festival de Berlim. Além disso, “As Herdeiras” ganhou 20
prêmios nos festivais pelo mundo e aqui em Gramado ganhou o prêmio de melhor filme do júri popular, melhor roteiro para Marcelo Martinessi e melhores atrizes para Ana Brun, Margarita Irun e Ana Ivanova.
Um filme delicado, que não quer polêmica mas mostrar que o mundo feminino tradicional está mudando em toda a parte.


sábado, 1 de setembro de 2018

Benzinho




“Benzinho”, Brasil, 2017
Direção: Gustavo Pizzi

Uma correria para a praia. Carregando boia, bola, comida e guarda sol, a família aproveita a casa de Araruama. Mas a cena seguinte, na casa em Petrópolis, mostra a triste realidade em que vive a classe média baixa brasileira.
A casa está caindo aos pedaços, literalmente, há rachaduras profundas, a torneira da cozinha emperra, a porta da frente não abre e o jeito é sair pela janela. Não cabem no orçamento os reparos necessários.
Metáfora da realidade maior do povo brasileiro? Claro. Mas “Benzinho” não tem como objetivo a crítica em si. Quer mais mostrar os afetos contraditórios que circulam no coração da gente.
E escolhe a figura de uma mãe superprotetora (Karina Telles, uma atriz que se expressa com os olhos, boca e alma) para demonstrar isso de maneira que soa espontânea e natural, sem maiores dramas.
É bem isso que seduz em “Benzinho”. O cotidiano agridoce de uma mãe, um padecer no paraiso mas também mostrando uma pessoa que quer colocar todos debaixo de sua asa, controladora, que quer consertar uma auto estima baixa, que no fundo esperava mais da vida e que quando se deprime parte para a mania, fazendo mil coisas ao mesmo tempo, falando muito, correndo para não ser atingida, finalmente, pela angústia que sente invadir seu ser.
Vivem com Irene naquela casa oito pessoas: o marido Klaus, os quatro filhos (Fernando, Rodrigo e os gêmeos pequenos), Sonia, a irmã e seu filho, fugidos de um pai e marido violento.
E com seus atores, assim como no roteiro a duas mãos pelo diretor Gustavo Pizzi e Karina Telles, que já foram casados, o filme mostra uma família de verdade nos filhos gêmeos dos dois, Francisco e Arthur, no sobrinho de Karina, Luan Telles, que faz o filho que toca tuba. E outra família de coração, nos amigos Adriana Esteves, a tia e o uruguaio Cesar Trancoso, os pais de Vicente Demori. Sem esquecer Otávio Muller, que é o pai e marido carente, um outro filho de Irene.
Quando Fernando (Kostantin Sarris, estreante talentoso), o mais velho, é convidado para uma bolsa de estudos na Alemanha porque é ótimo no handebol, o coração da mãe se divide. Feliz pela oportunidade que o filho tem na vida e chorosa porque ele vai partir e quem sabe não voltar.
Certamente é difícil deixar partir os filhos, a famosa síndrome do ninho vazio, mas há aí também uma primeira chamada para Irene olhar-se de perto E, com coragem, ver o que se passa com ela, além do espelho. E é nos olhos que Karina Telles mostra o que a boca não diz. O tempo passa e a vida também.
Na cena final, belamente conduzida pelo diretor, enquanto a banda passa, um close inesquecível de sua atriz principal expressa uma tomada de consciência nas lágrimas que escorrem e no sorriso que se desmancha, ao som de uma voz feminina que canta “Loveling”.
Assim, Irene lava a alma e vai enfrentar os inevitáveis sofrimentos que virão. Ela cresceu.