terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A Garota Desconhecida


“A Garota Desconhecida”- “La Fille Inconnue”, Bélgica, França 2017
Direção: Jean-Pierre e Luc Dardenne
Já pensaram como a profissão de médico é parecida com a de um detetive? Para se fazer um bom diagnóstico é preciso levantar hipóteses, recolher dados, perguntar e ouvir mais do que falar. Usar a intuição mas ser rigoroso em não deixar nada de lado. Ter paciência.
A dra Jenny Davin (Adèle Hanel, excelente) é jovem, bonita mas sem grandes vaidades, séria mas dona de uma delicadeza amorosa que faz com que seus pacientes confiem nela. Não tem vida social, namorado, amigos. Não sabemos nada sobre sua família. Só a conhecemos no consultório, onde substitui um médico que vai se aposentar.
Julien, seu estagiário, conduz um exame clínico com a dra Davin. Ela faz perguntas sobre os achados e ele responde. Parece que ela o aprova.
Mas, de repente, ouvem-se gritos na sala de espera. Uma criança caída ao solo com uma convulsão. Ela acode rapidamente e pede um travesseiro a Julien que, estranhamente, está parado, sem iniciativa. Parece que não ouve o pedido da doutora.
Ela acomoda a cabeça da criança sobre um casaco e espera que ela desperte.
Por que Julien teve essa reação estranha? É o que a dra Jenny pergunta a ele:
“- Não consegui me controlar.”
“- Se você quer ser médico tem que aprender a controlar suas emoções.”
A campainha da porta soa. Julien prepara-se para descer a escada e abrir mas a doutora diz que não:
“- Mas e se for uma emergência?”retruca Julien.
“ - Se fosse, tocaria duas vezes. Já passou uma hora do horário do término dos atendimentos.”
Julien sai aborrecido, sem falar com ela.
No dia seguinte, a médica vai se desculpar com o estagiário. Porque ele estava certo. Ela também queria abrir a porta mas preferiu se impor. Sente-se culpada, porque quem tocou a campainha foi uma garota negra que foi encontrada morta na construção do outro lado da rua. Fratura de crânio.
A câmara de segurança mostra seu rosto assustado, tocando a campainha do consultório.
O que aconteceu? Foi acidente? Assassinato?
A culpa que a dra Davin sente vai levá-la a desempenhar a função de um detetive. Ela vai fazer tudo que puder para investigar quem foi essa mocinha. Sem celular, sem documentos, ninguém veio reconhecer o corpo e ela é enterrada como indigente.
Ninguém culpa a doutora pelo acontecido. E a polícia não vê com bons olhos suas investigações. Mas a médica vai tratar do caso como faz com seus pacientes.
Dedicada, sente-se culpada porque sabe que se tivesse deixado Julien abrir a porta, a moça não estaria morta. Mas ela vai por a culpa a serviço da vítima e se empenha em descobrir quem ela é. E um paciente da dra Jenny é o fio da meada que a leva à solução do caso.
A dra Jenny Davin é uma pessoa rara. Generosa com seus pacientes e doce, maternal com eles. Por que não seria assim com a garota morta?
E a pergunta que fazemos é a seguinte: ainda existe alguém assim num mundo egoísta como o nosso?
E os diretores, os premiados irmãos Dardenne respondem:
“Nosso cinema reflete um pensamento, uma sensibilidade. Pode parecer piegas mas fazemos cinema para abraçar o mundo.”
Ainda bem. “A Garota Desconhecida” trata justamente dessa sensibilidade tão necessária em tempos de individualismo exacerbado.





A Tartaruga Vermelha


“A Tartaruga Vermelha”- “La Tortue Rouge”, Japão, França, Bélgica, 2016
Direção: Michael Dudok de Wit
O primeiro som, que vem antes da imagem, é o do mar. E, quando aparece em sua grandiosidade na fúria das ondas cinzentas e imensas, tememos por aquele ser humano que luta pela sobrevivência, em meio a um inimigo hostil.
E, quando o náufrago encontra sua casquinha de noz, um barquinho emborcado e se agarra a ele, a famosa “tábua de salvação”nos anima.
“A Tartaruga Vermelha”é assim: imagens poderosas delineadas em poucos traços mas com a força dos símbolos que todos conhecemos. Não há diálogos. A fala não é necessária quando se trata de temas centrais na vida de qualquer pessoa, em qualquer cultura e qualquer lugar desse planeta em que habitamos.
A luta pela sobrevivência naquela ilha de praias brancas, mar turquesa e límpido, florestas verdes, poços e lagos de água clara, rochas lisas e altas à beira mar e no centro daquele microuniverso, é a mesma de sempre. Procurar comida, abrigo, conhecer os perigos, durante o dia e à noite dormir e sonhar olhando estrelas.
O humor tempera o desespero do náufrago, na figura de animados siris que, como bichinhos de estimação, seguem nosso homem e se aproveitam de seus restos.
Mas a vontade de partir, de fugir, de viver em outro lugar, a ânsia por companhia, assaltam aquele homem jovem, perseverante e inteligente. Constrói jangadas, muitas, mas, a cada vez, é estranhamente atacado por uma força que vem debaixo e que esfacela aquelas construções frágeis.
Quem atrapalha dessa forma irritante os planos de fuga do jovem?
É aqui que a história passa para um outro nível de vivências no registro do sonho, da metáfora e da lenda.
A grande tartaruga vermelha são os impedimentos da vida, os acontecimentos que não podemos controlar, o desconhecido. E, ao mesmo tempo, a chance de vida nova para aquele ser tão solitário.
A vida na ilha, antes uma prisão, torna-se o viver nos jardins do paraíso. Adão conhece sua Eva e realiza o grande destino do homem, que é manter viva a humanidade.
No roteiro do próprio diretor Michael Dudok de Wit, nascido nos Países Baixos e Pascale Ferran de “Lady Chaterley”e “Bird People”, fala-se da vida e de como os laços afetivos da família são essenciais para a plenitude do ser humano.
As imagens simples e poderosas do diretor, em seu primeiro longa de animação, encantam nosso olhar e completam sua sedução embalados que somos por uma trilha sonora do compositor Laurent Perez Del Mar, que encaixa como uma luva com tudo que vemos.
Animação é um gênero no qual franceses, belgas e japoneses são mestres. De Wit inscreve-se nessa lista privilegiada de magos das imagens que fazem sonhar e nos convidam para uma reflexão sobre a beleza e a criatividade.
“A Tartaruga Vermelha” foi indicada na lista das melhores animações do Oscar 2017.
Bela e comovente.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Terra de Minas


“Terra de Minas”- “Land of Mine”, Dinamarca, 2015
Direção: Martin Zandvliet

O horror da explosão de uma mina terrestre é algo que só conhece quem vive num país em guerra. Artefato mortal e escondido, basta um passo e a morte acontece.
“Terra de Minas”passa-se na Dinamarca depois da vitória dos aliados na Segunda Guerra. Durante a ocupação alemã, o litoral oeste havia sido preparado para o desembarque das tropas inglesas inimigas, com 2 milhões de minas terrestres.
Acabada a guerra e tendo acontecido o desembarque dos aliados na França, os dinamarqueses tinham que limpar sua costa do perigo das minas.
E por que não empregar os prisioneiros alemães nessa tarefa? Eles, que as colocaram, deveriam ser mestres em torná-las inofensivas, libertando a costa dinamarquesa desse medo.
E o mal-estar que esse filme provoca no espectador começa por aí. Um sargento irado, num jipe, grita ordens e palavrões para uma fila de prisioneiros alemães. Mas quando a câmara se aproxima de seus rostos, vemos rapazes imberbes, meninos assustados.
É fato sabido que os últimos a ser convocados para o exército alemão semi-destruído foram os rapazes de 14 a 16 anos.
E lá estavam esses meninos alemães, odiados como só um inimigo de guerra pode ser odiado, sendo levados para a tarefa que escondia a morte, numa linda praia branca e mar azul.
Com suas mãos nuas esses adolescentes são obrigados a rastejar na areia, tateando o solo à procura das minas mortais. São os filhos pagando pelo pecado dos pais.
Assustados, famintos, cansados, esses soldados tão jovens e mal preparados para o que vão enfrentar, logo mexem com a plateia, que se compadece quando a primeira mina explode sem avisar, matando um deles. O suplício vai acontecer dia após dia, até que algo terrível acontece.
O diretor Martin Zandvliet, numa entrevista, disse que seu filme fala de um episódio obscuro da Segunda Guerra. Algo que quer ser esquecido mas que, ao contrário, deve e precisa ser lembrado para que todos nós possamos refletir sobre uma história de ódio e vingança, de perdão e reconciliação.
E continua:
“- Todos sabemos que evoluir do ódio para o perdão é o passo mais difícil de ser dado.”
“Terra de Minas”que fala sobre um passado não tão distante, ensina uma lição de humanidade que precisa ser aprendida pelo nosso mundo contemporâneo, onde o ódio ainda faz tantas vítimas, seja na guerra, seja em atentados terroristas, no mundo todo.

Com muita justiça, “Terra de Minas” está entre os indicados ao 

Oscar de melhor filme estrangeiro do ano. Imperdível.


O Silêncio


“O Silêncio”- “The Silence”, Estados Unidos, 2016
Direção: Martin Scorsese
A abertura é cruel. Pessoas são torturadas numa paisagem rochosa e vulcânica, encoberta por neblina.
Distinguimos um rosto conhecido entre os japoneses. É Liam Neeson que interpreta o jesuíta português, padre Cristovão Ferreira. Ele também é torturado e parece assustado com o sofrimento ao seu redor.
Estamos no Japão no século XVII. Cristãos são perseguidos pelos homens do shogunato Tokugawa. A religião pregada pelos jesuítas é ilegal e punida com a morte.
“O Silêncio”é adaptado do livro do escritor católico Shusaku Endo de 1966, que narra as perseguições cruéis aos cristãos, nos anos 1600 no Japão. Martin Scorsese, o grande diretor de cinema americano, descobriu esse livro em 1989 e desde então teve o desejo de adaptá-lo para o cinema. Numa recente edição do livro, ele escreveu no prefácio:
“O Silêncio é a história de um homem que aprende - com muita dor – que o amor de Deus é mais misterioso do que ele pensa. Que Ele deixa muita coisa para que os homens decidam do que podem conceber e que Ele está sempre presente...mesmo em Seu silêncio.”
Não é uma história fácil de ser contada. E o filme não é fácil de ser assistido.
Tudo começa em Macao, quando os jovens jesuítas Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) chegam de Portugal para sua missão de ajudar os cristãos perseguidos. Ficam sabendo que seu mentor, padre Ferreira, está desaparecido e correm boatos que teria abjurado sua fé sob tortura. Eles não acreditam nisso mas partem à procura dele.
E o que os espera é assustador. Dão-se conta de que os camponeses japoneses pobres vivem como animais, mas professam sua fé em segredo. Os jesuítas são recebidos por esses seres famintos e sujos como se fossem deuses. Essas pobres criaturas ignorantes e miseráveis querem ir para o paraíso, onde não há miséria nem sofrimento. Cedo, o padre Rodrigues percebe que o modo dos japoneses serem cristãos é pouquíssimo espiritualizado e que eles se apegam a cruzes e outros símbolos religiosos como se fossem amuletos.
Eles estão dispostos a morrer por sua fé para proteger os jesuítas, que seriam os facilitadores da ida ao paraíso, com seus sacramentos e a Missa.
Mas e os jesuítas? Estarão dispostos a dar sua vida certamente, mas e quanto a abjurar sua fé para salvar aqueles pobres japoneses tratados tão cruelmente?
“O Silêncio” trata da fé e da dúvida, sua companheira inseparável.
A fotografia de Rodrigo Prieto e a produção de arte de Dante Ferretti criam belas cenas que parecem pinturas, que são um alívio ao peso do sofrimento que permeia todo o filme.
“O Silêncio” tem uma mensagem bem atual. Querer dominar povos com culturas diferentes através da imposição de outra, alheia a eles, nunca dá certo. E a verdade é que, infelizmente, em nome da religião, muitas injustiças e crueldades foram e ainda são cometidas mundo afora.



terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Um Homem Chamado Ove


“Um Homem Chamado Ove”- “En Man Som Heter Ove”, Suécia, 2015
Direção: Hanes Holm

Ele viveu um tempo de delicadeza com sua amada e, agora que faz seis meses que ela se foi, nada mais tem sentido nesse mundo.
Ove (Rolf Lassgard, ator convincente), um sisudo sueco aposentado à força aos 59 anos, todo dia vai levar rosas no túmulo de sua mulher, a professora Sonja (Ida Engvoll). Conversa com ela em voz alta, acaricia a pedra e um dia chega a se deitar ao lado dela, em sua morada no cemitério:
“- Quero que saiba. Sinto falta de você.”
Em “flashbacks” vemos cenas da infância de Ove, que perde a mãe muito cedo e não sabe o que fazer para agradar ao pai, muito tímido, que ama seu filho mas não é de demonstrações de afeto. Falam sobretudo sobre carros, o sueco SAAB, pelo qual o pai é apaixonado. Ele trabalha nos trens e Ove herda seu posto quando o pai sofre uma tragédia.
Apesar do jeito caladão quando jovem, Ove sente falta da companhia do pai e, enlutado, sofre dentro de um vagão de trem. Mas, quando vê sentada à sua frente  uma moça de sapatos vermelhos e olhos muito azuis, seu mundo cinzento ganha cores. Ele vive para satisfazer seus desejos e ela, que é professora, estimula Ove a formar-se em engenharia.
Enfrentam juntos as dificuldades que aparecem e estão felizes.
Mas a felicidade um dia acaba quando uma doença fatal leva Ida. E Ove tranca-se numa cara fechada, olhar frio, jeito implicante e resmungão.
Ele é chefe da associação de moradores do condomínio onde mora e todo dia faz uma inspeção rigorosa de tudo, anotando as coisas erradas com especial mau humor.
Uma gatinha de olhos muito azuis teima em aparecer para ele mas, apesar de salvá-la de um apedrejamento, bate o pé e faz a bichana fugir:
“- Suma!”
Só que gatos não desistem com facilidade e veem o que os outros vizinhos de Ove não querem ver. Ele é um solitário, em busca de companhia.
Para resolver essa situação de vida vazia, sem Sonja, Ove resolve tomar uma decisão drástica. Quer morrer.
E quando chegam novos vizinhos, uma iraniana grávida (Bahar Pars), com duas filhas e um marido desajeitado, sua primeira reação é expulsá-los de sua vida como fez com a gatinha. Mas, mesmo mergulhado em sua raiva gelada, num luto fechado, Ove vai ter uma experiência que poderá tirar de sua vida aquele amargor que sente desde muito tempo, quando sua mãe se foi.
Gata no colo, visita o cemitério para contar seus planos para aquela que ele amou com todas as suas forças. Abre-se para a vida.
Ove, vivido pelo grande ator Ralf Lassgard, conquista o público com seu jeito bravo tragicômico. Torcemos para que ele não se mate e viva a ternura que ele tem para dar e receber de volta.
O filme foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e maquiagem/penteado. É de praxe nessa categoria premiar uma maquiagem realista: o envelhecimento de Ove, que aliás parece bem mais velho que os 59 do subtítulo. O roteiro foi adaptado de um bestseller que vendeu 700.000 exemplares no mundo todo, de Fredrick Backman.

Um filme que trata de assuntos sérios com bom humor. 

Um Limite Entre Nós


“Um Limite Entre Nós”- “Fences”, Estados Unidos, 2016
Direção: Denzel Washington
Depois do Oscar 2016 ter sido criticado como “sowhite”, tão branco, deu-se uma reviravolta em 2017 com dois filmes de elenco inteiramente negro e outro com mulheres negras como as estrelas principais. Todos os 3 indicados a melhor filme.
“Um Limite entre Nós”é também dirigido por um negro, o ator Denzel Washington, que é o personagem principal. O roteiro é uma adaptação da peça teatral “Fences”, premiada com o Pulitzer, escrita em 1983 pelo teatrólogo August Wilson (1945-2005), que não chegou a finalizar a adaptação, retomada por Tony Kushner.
Todo o elenco adulto do filme participou do “revival” da peça teatral na Broadway em 2010. Ganharam o prêmio “Tony”de melhor “revival”, ator para Washington e atriz para Viola Davis. E esse é o grande acerto do filme. O elenco trabalha muito bem, com grande conhecimento do texto. E isso ajudou também na direção. Mas a impressão da plateia é a de estar vendo teatro filmado.
A história passa-se em Pittsburg, final dos anos 50. Tony Maxton é um lixeiro quase na idade da aposentadoria, que quer ser motorista de caminhão de lixo e não coletor. Ele, que se viu frustrado em seu desejo de jogar beisebol como profissional, culpa o racismo por esse fracasso que o levou à prisão por roubo. Depois casou-se com Rose e estão juntos há 18 anos.
Tony diz ao amigo e companheiro de trabalho que seu casamento é muito feliz. Mas Bono (Stephen Henderson) vê que ele anda atrás de uma mocinha. E, nas entrelinhas  e nos olhares de Rose (grande Viola Davis), lemos coisa diferente do que Tony diz.
E o cerne dos acontecimentos se revela na dificuldade que Tony tem de ser um bom pai para seus filhos. O mais velho quer ser músico e tem a desaprovação do pai. O mais novo sonha em jogar beisebol, a grande frustação da vida de Tony, que tenta dissuadi-lo de todos os modos, chegando até a violência.
A famosa cerca que dá nome à peça teatral é uma metáfora bem imaginada. Há uma frase lapidar do amigo Bono, que ajuda Tony a construir a cerca a pedido de Rose:
“- Tem gente que constrói cercas para se isolar do mundo. Manter as pessoas fora. Outros, para ninguém sair. Para manter unidos aqueles que ama.” E diz que Rose é uma pessoa da segunda espécie.
Mas o fato é que o casamento não vai bem.Tony bebe muito e fala o tempo todo. Gosta de ser o centro das atenções mas não se move um milímetro de suas posições duras.
Temos a impressão de que Tony culpa a todos por suas frustações, cobrando no presente pelo passado que já aconteceu e não pode ser mudado.
O final é surpreendente. E Viola Davis mostra seu imenso talento.
“Um Limite entre Nós”, mesmo sendo teatro filmado e muito longo, é um filme com grandes interpretações.

O filme foi indicado ao Oscar nas categorias de melhor filme, ator para Denzel Washington, atriz coadjuvante para Viola Davis e roteiro adaptado.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Moonlight - À Luz do Luar


“Moonlight: à Luz do Luar”- “Moonlight”, Estados Unidos, 2016
Direção: Barry Jenkins
Ele é negro, pequeno e assustado. Todos o chamam Little. Mas seu nome é Chiron (Alex Hibbert). Vive com a mãe drogada, Paula (Naomi Harris)
Se não fosse aquele homem negro, grandão, todo enfeitado de ouro, que passeia num Cadillac azul antigo e salva Little dos garotos da escola que, sentindo sua fragilidade, se aproveitam para maltratá-lo, não saberíamos o que seria daquele menino. Calado, ombros caídos, ele é a imagem da necessidade de sustentação.
E Juan (Mahershala Ali, magnífico), o grandão de dentes com capa de ouro, brincos e um lenço negro amarrado na cabeça e que vende drogas, põe Little sob sua proteção. Conversa com ele, faz perguntas e como Little não responde, leva ele para comer na casa da namorada Teresa (Janelle Monaé):
“- Você não fala nada, mas come muito, ein?”diz rindo Juan.
E, finalmente o garoto se abre:
“- Meu nome é Chiron mas as pessoas me chamam de Little.”
“- Vive onde?”
“- Miami, Liberty City.”
“- Com sua mãe? “
Little acena com a cabeça. “- E seu pai? “
Silêncio. E ele vai dormir ali pela primeira de muitas vezes. Teresa sempre será um abrigo para Chiron, quando sua mãe não o quer por perto.
E Juan, que veio de Cuba, faz o que aquele menino sem pai nunca tinha feito. Leva ele para aprender a nadar no mar.
“- Eu te seguro. Você relaxa.”
 Assim, com a câmara boiando a seu lado, numa bela cena, começa o resgate de Chiron. Juan tinha tido uma vida parecida. Mãe drogada. Em seu peito amplo, Chiron podia se sustentar.
Mas os meninos do colégio continuam a perseguir Chiron. Ele não reage. Mas sentimos que a raiva está se acumulando naquele corpo magro.
Kevin, o único colega que se aproxima dele, dá uma força e ensina a lutar:
“Você precisa ser mais duro.”
E é com Kevin que Chiron (Ashton Sanders) vai ter uma experiência afetiva, fumando maconha, quando já é um adolescente. Não se trata simplesmente de sexo. Vemos uma carência enorme que começa a poder ser preenchida. Depois de Juan, que funcionou como um pai, Kevin é seu primeiro amigo.
E, quando tudo que foi acumulado de desgosto e raiva explode com fúria, Chiron vai ter que passar por uma prova difícil e vai se tornar Black.
Juan foi o Blue porque uma mulher disse que ele ficava azul ao luar. Chiron vai ser Black (Trevante Rhodes) até poder abrir seu coração.
Numa estrada ao luar, num Cadillac preto, ao som de “Paloma”, cantada por Caetano, Chiron nos convence que fez a passagem de sua vida miserável quando criança para uma auto-confiança saudável. Ele também é Blue ao luar. Não sómente Black. E ser triste não é uma doença fatal.
Saímos do cinema comovidos e encantados com a sensibilidade do diretor Barry Jenkins, 37 anos, em seu segundo filme, inspirado na peça teatral “À luz do luar garotos negros ficam azuis”de Taren Alvin McCraney.
“Moonlight”ganhou o Globo de Ouro de melhor filme drama e 8 indicações para o Oscar: melhor filme, diretor, atriz coadjuvante (Naomi Harris), ator coadjuvante (Mahershala Ali), fotografia, roteiro adaptado, edição e trilha sonora.

Excelente. “Moonlight” tem um brilho sublime.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Até o Último Homem


“Até o Último Homem”- “Hacksaw Hidge”, Estados Unidos, 2016
Direção: Mel Gibson
A abertura, em câmara lenta e com som abafado, nos joga brutalmente no filme, um inferno de explosões que faz corpos voar, soldados correndo em chamas, tiros. Mortos pavimentam o solo sangrento. Horror.
Ouve-se em “off” a voz, que depois vamos saber que é do soldado Desmond Doss (Andrew Garfield):
“...aqueles que esperam no Senhor
renovam suas forças...”
E alguém diz:
“- Desmond, aguenta mais um pouco. Nós vamos tirá-lo daqui!”
E um “flashback”nos tira da guerra e nos leva para 16 anos antes, com os irmãos Doss brincando nos campos e rochedos da Virginia.
O pai deles (Hugo Weaving) é um sujeito que bebe e é violento e não se esquece dos amigos mortos na Segunda Guerra a seu lado. Faz visitas frequentes ao cemitério.
Quando Desmond atinge seu irmão Hal numa briga e pensa que ele morreu, vemos a que ponto a culpa se entranha no coração do garoto.
O pai tira o cinto mas a mãe (Rachel Griffts) acode:
“-Pare! Desmond, Hal vai ficar bem!”
“- Ele poderia ter morrido...” balbucia Desmond.
“- Sim e não há maior pecado do que tirar a vida de alguém”, diz a mãe.
O pai grita com a mãe.
“- Por que ele nos odeia tanto?” pergunta Desmond à mãe.
“- Ele odeia a si mesmo. Queria que vocês tivessem conhecido ele antes da guerra...”
E, por causa dessa infância, começamos a ter uma ideia do caráter de Desmond que, apesar de se alistar no exército depois do ataque a Pearl Harbour, como o irmão, recusa-se a pegar num rifle no treinamento do exército.
“- Vou ser médico e salvar vidas, Dorothy. Não vou matar”, diz à noiva enfermeira (Teresa Palmer).
Essa postura ética e religiosa (ele é adventista), que ele defende com perseverança, vai custar muito sofrimento a Desmond. Chamam ele de covarde, louco, idiota. Mas nada disso o abala. Mesmo quando os companheiros de dormitório passam a surrá-lo à noite.
Enfrenta uma corte marcial e é o primeiro “Opositor Consciente”que parte para a guerra sem uma arma. Na mão leva a Bíblia, com a foto de Dorothy.
A história é verídica e no fim do filme vemos o próprio Desmond Doss dar seu depoimento, antes de morrer aos 87 anos. Outros companheiros de seu batalhão, inclusive o sargento, falam sobre sua atuação heroica na batalha de Okinawa, no Japão em 1945, quando salvou 75 vidas. Foi condecorado com a Medalha de Honra do Congresso.
Mel Gibson dirige o filme, indicado para 6 Oscars, inclusive melhor filme e diretor. Parece que ele resgata a inspiração de “Coração Valente” de 1995, depois de um tempo eclipsado, por causa de sua reputação de anti-semita e homofóbico.
Há no filme de Gibson muito dele mesmo. Crueza e quase que um mau gosto em mostrar cenas desnecessárias no campo de guerra, com um sadismo que cansa, porque é repetitivo. Mais do mesmo.

Mas o filme envolve o espectador porque o personagem principal, interpretado com grandeza e humildade por Andrew Garfield, é um homem fascinante, só agora conhecido do grande público.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Lion - Uma Jornada para Casa


“Lion – Uma Jornada para Casa”- “Lion”, Estados Unidos, Austrália, Reino unido, 2016
Direção: Garth Davis

Sobrevoamos montanhas, desertos e praias. O mundo de paisagens diferentes em que vivemos. Estamos em 1986 e o contato entre lugares distantes é difícil. Ainda não havia a ideia de globalização que hoje vivemos com naturalidade, com nossos IPhones e computadores dotados de um poder de comunicação desconhecido nessa época.
Logo somos apresentados a dois meninos indianos. Guddu, o maior (Abhishek Bkarate) e o menor, Saroo, (Sunny Pawar, a melhor surpresa do elenco), que se divertem juntos. Moram com a mãe (Privanka Bose) e a irmãzinha ainda bebê, numa casa pobre, em uma aldeia minúscula na India rural. Mas há riqueza de afeto naquele lugar.
Desce a noite e a mãe e o filho maior saem para sua segunda jornada de trabalho numa pedreira. E Saroo, que deveria ficar em casa cuidando da irmã, implora tanto a Guddu que o leve junto com eles, que o irmão cede.
Mas não dura muito o fôlego do pequeno e Guddu tem que levar ele nas costas. Arrepende-se de ter concordado em trazer o irmãozinho e coloca-o para dormir num banco do depósito da estação de trem:
“- Não saia daqui até eu voltar”, diz para Saroo que, adormecido, mal ouve o que o irmão fala.
Quando acorda, horas depois, está assustado e sozinho. Vaga pelo lugar deserto chamando pelo irmão e acaba entrando num vagão de trem, onde adormece de novo.
No dia seguinte, o trem em movimento leva Saroo para o desconhecido.
O longo percurso levará o menino para o sul da India, Calcutá, uma cidade grande, densamente povoada e perigosa para aquele pequeno de 5 anos.
A India é um país de dimensões continentais, com mais de um bilhão de habitantes que falam diferentes línguas e seguem religiões diversas. Em Calcutá a maioria é hinduísta e fala o bengali. Saroo veio do norte onde se fala hindi e a religião é a muçulmana. Além de não entender o que falam, o menino não sabe o nome da mãe e usa uma palavra que ninguém conhece para dizer de onde veio. Ele vai passar por maus bocados.
O filme “Lion” baseia-se na biografia de Saroo Brierley, “A Long Way Home”. E tem dois capítulos: a vida de Saroo aos 5 anos e depois aos 20, na pele de Dev Patel.
A história real é extraordinária e, num lugar onde 80.000 crianças desaparecem por ano, Saroo vai ter a sorte de encontrar as pessoas certas que o adotam como filho na longínqua Tasmânia (Nicole Kidman, numa interpretação comovente e David Wenham).
Tudo parecia correr às mil maravilhas. Saroo conhece Lucy (Rooney Mara) e apesar da relação difícil com seu irmão adotivo, ele é a alegria da família australiana.
Porém, o núcleo afetivo primitivo de Saroo não o abandona. Reaparece em sonhos e visões, com um forte apelo para ele voltar para casa.
Essa jornada de volta vai ser mais difícil que a da vinda. E nós acompanhamos Saroo com o coração apertado.
“Lion” é um filme comovente, com ótimas interpretações e uma história inacreditável. É o primeiro longa de Garth Davis que consegue acertar em quase tudo, ajudado pela bela fotografia de Greig Fraser, que cria imagens poderosas, traduzindo estados de espírito que são difíceis de ser expressos em palavras.
Quem é sensível vai derramar lágrimas.

“Lion” foi indicado a melhor filme, melhor atriz coadjuvante  (Nicole Kidman), melhor fotografia, melhor roteiro adaptado e melhor trilha sonora no Oscar 2017.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A Qualquer Custo


“A Qualquer Custo”- “Hell or High Water”, Estados Unidos, 2016
Direção: David Mackenzie

O cenário rude e crestado pelo sol inclemente do Velho Oeste é o mesmo desde que o mundo é mundo. É uma geografia de planícies, mesas e um solo que, ao invés de produzir comida, fornece petróleo e gás, riquezas descobertas pelos brancos que dominam o Texas há tempos.
Antes eram os comanches, índios aguerridos, que eram os donos da terra, até 1875, quando o exército acabou com a supremacia dos “Senhores das Planícies” que se retiraram para uma reserva em Oklahoma. Ainda restam alguns deles no Texas, cheios de um ódio calado contra os usurpadores de sua morada ancestral.
“A Qualquer Custo” passa-se nesse cenário onde tantos faroestes foram filmados. Mas este filme é um neo- faroeste. E agora são os bisnetos dos colonos brancos que perdem suas terras para os bancos. O novo inimigo deles é o sistema financeiro que rouba as terras dos brancos pobres.
Dois irmãos, em tudo diferentes, se unem para conseguir dinheiro e resgatar o rancho de sua recém falecida mãe, da ganância do Texas Midland Bank. Devem uma fortuna em juros da hipoteca e não tem um tostão. Toby Howard (Chris Pine), o mais moço, além disso deve dinheiro da pensão à sua mulher. Tanner Howard (Ben Foster), o irmão mais velho, ex-presidiário, é alguém com quem Toby pode contar para a execução de um plano amalucado: roubar as agências do Texas Midland Bank e pagar a dívida que eles tem com o banco com esse dinheiro roubado.
Aos olhos dos irmãos isso é a justiça que tem que ser executada. Se alguém morrer na empreitada, será por causa de Tanner, o mais velho que tem um temperamento agressivo e parece definitivamente perdido para o crime.
Mas Toby é bem intencionado. Não vai ficar com o rancho para ele. Quer deixar algo para seus dois filhos: a fazendinha que foi da avó deles. Mesmo que tenha sido um pai adolescente e ausente, algo nele quer mais para os filhos do que ele mesmo teve. Seria a quebra de uma maldição de pobreza por gerações.
Só que não estava no programa o aparecimento de uma dupla de Texas Rangers, a polícia armada que investiga o roubo aos bancos.
Jeff Bridges, excelente, garantindo sua sétima indicação ao Oscar, faz Marcus Hamilton, entrado em anos mas forte bastante e experiente, tentando seu “canto do cisne”, última glória antes da aposentadoria.
Seu parceiro Alberto Parker (Gil Birmingham) é mestiço de comanche e mexicano e, por isso, alvo de piadas racistas do branco Hamilton. O que expõe outra ferida da mentalidade americana que considera inferiores todos que não são brancos.
Mas ninguém é de todo mau, nem de todo bom. E o roteiro de Taylor Sheridan mostra a complexidade dos personagens e faz o filme ter um peso de crítica social bem evidente, através do uso certeiro da ironia. Mais, de certa forma explica os motivos que os levaram a ser quem são. Não há para eles outra saída. São homens de tudo ou nada.
A direção do escocês David Mackenzie cria cenas atraentes e bem interpretadas e a fotografia de Giles Nuttgens mostra a miséria e a desesperança em tons terrosos.
Depois dos créditos finais, o diretor colocou uma homenagem. Ofereceu este filme aos pais dele, David e Ursula Mackenzie, com a data do nascimento e morte dos dois. Estranhamente, morreram no mesmo ano, apesar da grande diferença de idade e no ano que precede a filmagem de “A Qualquer Custo”. Não consegui saber o porquê mas certamente dá ao filme um sabor pessoal.
“A Qualquer Custo” foi indicado ao Oscar de melhor filme, roteiro original, edição e ator coadjuvante. Merecido.