segunda-feira, 30 de março de 2020

Scarface



“Scarface”- Idem, Estados Unidos, 1983
Direção: Brian De Palma

Como numa tragédia grega, “Scarface” comenta sobre o perigo da não existência de limites em certos personagens. É em torno a eles que se desenrolam os dramas e seu destino final será fruto de uma avidez nunca saciada.
Tony Montana (Al Pacino, admirável) vai ser o centro dessa história infeliz porque ele não só a promove, como será fatalmente o principal atingido.
Ele já era assim quando chega aos Estados Unidos no início dos nos 80, num barco que traz refugiados cubanos para a Flórida, muitos saídos das prisões e malquistos em Cuba. Assim Fidel Castro se vinga dos americanos colocando criminosos entre os imigrantes.
Montana é um desses e executa friamente um político de Cuba, que estava entre os outros cubanos que esperavam documentos para entrar nos Estados Unidos. Ele era um matador profissional e gostava do que fazia.
Mas o começo foi difícil. Com seu amigo Manny Ribera (Steven Bauer) vão lavar pratos num restaurante mambembe em frente a uma famosa discoteca, onde toda noite desfilavam belas mulheres saídas de carros de luxo. Tony imediatamente se seduz pela noite glamurosa, ainda longe dele.
Mas logo os dois amigos largam os pratos e passam a cometer assassinatos por encomenda e traficar drogas. Tony é impetuoso e cruel. Quando fica conhecendo o dono da quadrilha local, já era famoso pelo assassinato do político cubano. Frank Lopez (Robert Loggia) toca no assunto e Tony responde:
“- Foi divertido.”
E percebemos o fascínio que ele sente quando vê uma bela loura (Michelle Pfeiffer) num provocante vestido verde descer as escadas da casa de Lopez. É a namorada do chefe mas isso não era empecilho para Tony que começa a cercá-la com olhares e elogios.
Quando ele promete para ela casamento e filhos, Elvira já tinha caído na teia de sedução de Tony que não mede os riscos de conquistar tudo que cobiça.
Ele vai abrir seu caminho para o topo pisando no sangue de quem se colocar em seu caminho. Está cego pela ambição e pela sensação inebriante do poder, turbinado por quilos de cocaína, que o ajudam a não pensar no que faz. Não percebe que destrói tudo que conquista. A ganância nunca satisfeita traz o tédio e a impressão de nada valer nessa vida que ele leva.
E ele se engana confundindo proteção com o sentimento de posse, quase incesto, que envolve sua relação com a irmã Gina (Mary Elizabeth Mastrantonio).
Brian De Palma dirigiu e Oliver Stone escreveu o roteiro desse filme que é mais do que um remake do dirigido por Howard Hawks com roteiro de Bem Hecht, em 1932, a quem o diretor dedica seu filme. Era baseado na história de Al Capone e se chamava “Scarface - A Vergonha de uma Nação”, mal visto pelos censores da época e proibido em alguns estados americanos, acusado de incitar à violência.
Já o filme de 1983 é mais do que um filme de gangster. É um retrato de um homem dirigido pelo seu egoísmo, avidez, enorme poder de autodestruição, agressividade exaltada e um tremendo sentimento de solidão.
“Scarface” não pode ser confundido com elogio à violência. E merece ser assistido pela atuação de Al Pacino, fantástica e comovente.


quinta-feira, 26 de março de 2020



"Self Made -A Vida e a História de Madame C. J. Walker”- “Self Made: Inspired by the Life of Madam C. J. Walker”, Estados Unidos, 2020
Direção: De Mand Davies e Kasi Lemmons


Ela era negra, gorda, mãe adolescente e seu cabelo estava caindo. Era lavadeira na pequena cidade de Saint Louis, no começo do século XX. Olhava-se no espelho e chorava.
E esse sofrimento foi o começo de uma história inacreditável que conta a vida da primeira negra americana a tornar-se milionária por causa do seu talento e esforço, aliados a uma personalidade marcante. E não herdou nada de ninguém.
Foi Addie Monroe (Carmen Egogo), uma negra de pele clara e cabelo mais liso, que primeiro cuidou do cabelo de Sarah Breedlove, em troca de roupa lavada. Mas quando deu resultado e Sarah sugeriu uma sociedade, para aumentar o negócio, ela a despreza, achando que sua figura baixa, obesa e com pele escura, nada glamorosa, não iria ser vantajosa para vender o seu produto.
Apesar de ser uma história real, levou muito tempo para que se tornasse um filme porque achavam que o assunto não iria interessar ao público internacional.
No entanto, ela era bem conhecida e admirada por mulheres negras americanas. Porque foi a partir de seu próprio sofrimento que ela pensou nas outras como ela e resolveu vender muito barato, nas ruas, o produto que tinha ajudado a fazer crescer o seu cabelo novamente.
Ela sabia como a boa aparência influencia a autoestima das pessoas. Foi isso que guiou os passos de Sarah, nascida pouco depois da lei que considerava livres as crianças nascidas depois daquela data.
Octavia Spencer, 48 anos, é quem interpreta Sarah com um talento já reconhecido pela indicação ao Oscar de atriz coadjuvante em 2016 no filme “Estrelas Além do Tempo”.
Lutando contra vários obstáculos mostrados na minissérie de quatro capítulos, Sarah aprimorou a fórmula e, em pouco tempo ampliou o negócio, mudando-se para Indianópolis e abrindo salões onde uma mulher negra podia cuidar do cabelo e confraternizar com outras que tinham vida caseira e poucos horizontes. O exemplo de Madame C. J. Walker, como ela gostava de ser chamada, foi uma inspiração para que muitas delas tivessem a coragem de abrir seus próprios negócios.
Bem produzida, a minissérie tem momentos onde Sarah vê a si mesma no centro de uma apresentação teatral com música e dança. Alguns críticos não gostaram da ideia mas eu achei interessante.
Dirigido por duas mulheres negras, De Mand Davies e Kasi Lemmons, a produção NETFLIX presta homenagem merecida a essa figura da história americana.


sábado, 21 de março de 2020

Onde Está Segunda?


“Onde está Segunda ? ” – “What Happened to
Monday? ”, Reino Unido, França, Bélgica, 2017
Direção: Tommy Wirkola

Quando o mundo em que vivemos ficar superpovoado, o filme diz que essa fábula poderia acontecer. É ficção científica mas sempre tem alguma coisa para ensinar.
Então, com uma população de 10 bilhões de pessoas, o planeta começa a ficar um lugar inóspito. Falta comida. Os cientistas desenvolvem técnicas de modificação genética dos alimentos. E dá errado. Começam a nascer bebês com más formações e muitos partos múltiplos.
Assim, para preservar a humanidade, o governo edita uma lei chamada “Alocação Infantil”. Ninguém pode ter mais do que um filho. Aconteceu na China no século passado.
A grande diferença é o jeito como tratam os irmãos que vieram depois do primeiro filho ou mesmo os gêmeos do primeiro. Vão atrás deles com soldados armados e levam para o prédio onde está Glenn Close com cara de megera. Ela é ativista política e bióloga. E promete que essas crianças serão bem cuidadas, colocadas em “vida criogênica”, congeladas, para que quando acordem no mundo perfeito que vai vir, elas possam ter uma vida boa.
Mas William Dafoe, fazendo o pai de uma moça que morre ao dar a luz a sete meninas, vai cair na ilegalidade. Consegue tirar as bebês do hospital e vai cria-las em segredo para que possam sobreviver. Só uma se salvaria de acordo com a lei. O avô dá a elas os nomes dos dias da semana. A primeira a nascer é Segunda e assim por diante.
Passam-se 30 anos e vemos as sete mocinhas, idênticas nas feições mas diferentes. Porque as cores de cabelo não são as mesmas, o jeito de se vestir, a personalidade e outros atributos, cada uma tem o seu.
Só podem sair de casa no dia da semana do seu nome, personificando Harriet Settman, a mãe delas. Aos olhos do mundo só Harriet existia.
Mas acontece o pior. Segunda sai e não volta para casa. O que aconteceu?
Noomi Rapace faz com talento as sete irmãs, dando a cada uma delas nuances e expressões diferentes, além da maneira de se vestir e se comportar. Um belo trabalho da atriz sueca, que além do mais participa de perseguições e lutas que exigem grande capacidade atlética. Para que essas cenas sejam tensas e pareçam perigosas dependeu bastante do diretor Tommy Wirkola, que respondeu à altura.
Há torcida e suspense para que as ilegais se saiam bem na luta contra os agentes da Cayman que querem prendê-las.
Uma boa Produção da NETFLIX, apesar do roteiro ser simplório.


quarta-feira, 18 de março de 2020

Uma Saída de Mestre



“Uma Saída de Mestre”- “The Italian Job”, Estados Unidos, 2003
Direção: F. Gary Gray

Veneza é uma cidade deslumbrante E esse filme aproveita bem de suas belezas. Durante os créditos iniciais vemos as pequenas pontes arqueadas, as gôndolas nos canais estreitos, degraus de pedras seculares e a Ponte dos Suspiros.
É uma das boas ideias desse remake de um filme inglês de 1960, passado em Turim, vir para Veneza. O que muda quase tudo.
Na Praça São Marcos, Donald Shutherland fala no celular com uma lânguida Charlize Theron, na cama com uma camisola de seda:
“- Mandei um presente para você ”, diz ele.
“- Cheira bem? ”, responde ela.
“- Não. Mas brilha. Estou em Veneza. ”
“- Seu agente da condicional não vai gostar, pai. Você me disse que ia parar...”
“- É a última vez. Volte a dormir. ”
Dia seguinte vemos o estojo de couro característico da Bulgari nas mãos dela.
Voltamos para Veneza e John Bridger, o pai de Stella, o ladrão que está para se aposentar, imaginou um último golpe e colocou Charlie Crocker (Mark Wahlberg) no papel de líder de um pequeno grupo que vai roubar 35 milhões de dólares em barras de ouro, guardadas num cofre por uma quadrilha italiana.
Nesse grupo estão Jason Statham (Hansome Rob), que é o motorista, Seth Green (Napster) que é o hacker, Mos Def (Left Ear) que é mestre em explosivos e Edward Norton (Steve, com um bigodinho cafajeste). Entre eles está aquele que vai dar o golpe nos colegas e ficar com todo o ouro.
Em cenas nas belas montanhas de neve dourada da Áustria, ao pôr do sol, vai acontecer um confronto inesperado.
Passa-se um tempo e o grupo está em Los Angeles para vingar-se do traidor que causou a morte do decano John Bridger.
Para isso vão procurar Stella, a belíssima Charlize Theron, muito jovem, sempre sexy, vestida de couro e roupas colantes em seu corpo perfeito. Ela sabe abrir qualquer cofre em poucos minutos, talento que herdou do pai, mas trabalha para a polícia.
Quando o grupo a procura ela faz uma exceção e vai participar do golpe para também vingar o pai.
Ação é o que não falta no filme. Os Mini Cooper são os astros principais, realizando mil e uma estripulias, um helicóptero faz loucuras, motos voam e carros de luxo desfilam. Todos em perseguições de tirar o folego. Sem esquecer que em Veneza as lanchas entram em corridas malucas nos canais estreitos.
O filme é diversão bem feita. Bela fotografia que aproveita os cenários de Veneza, Áustria e Los Angeles. O elenco está entrosado e Charlize Theron jovem arrasa.
Veja em casa na Netflix e se distraia nesses tempos difíceis que estamos vivendo.

sábado, 14 de março de 2020

O Jovem Ahmed



“O Jovem Ahmed”- “Le Jeune Ahmed”, Bélgica, França, 2019
Direção: Jean-Pierre e Luc Dardenne

Na escola de uma comunidade muçulmana numa cidade da Bélgica, tudo é igual às outras. Se não fosse um menino de uns 13 anos, que se opõe à professora. Ela não usa o véu, veste-se com roupas ocidentais e está propondo aos alunos um curso de árabe com músicas que ensinam palavras em árabe que não constam no Corão. Ela pensa que é necessário para que os alunos aumentem seu vocabulário e possam ler livros e mesmo conseguir empregos que peçam fluência no idioma. Além de aumentar a inserção num mundo árabe que não é só o da mesquita.
Mas Ahmed (Idir Ben Addi), de olhos baixos atrás dos óculos, rosto fechado, parecendo emburrado o tempo todo, acha que ela é uma apóstata e infiel. Entredentes a acusa de namorar um judeu. Ela manda ele repetir o que disse e ele se esquiva e sai da classe.
Aliás ele nem cumprimenta a professora (Myriem Akhaddiou) dando a mão como os outros alunos porque, para o muçulmano que ele é, um homem não pode tocar em uma mulher a não ser a mãe, a irmã e a esposa.
Em casa, a mãe também está preocupada e zangada com Ahmed, que mudou muito nos últimos meses. Sempre de olhos baixos, sua única resposta é censurar a mãe e a irmã porque não usam o véu e usam roupas indecentes.
Quando a mãe o questiona sobre o modo como trata a professora, lembrando a ele que ela vinha dar aulas gratuitas por causa de uma dislexia dele quando era pequeno, ele a chama de “bêbada” na frente dos outros irmãos, que se espantam e não concordam com ele e aquele jeito desrespeitoso.
Mal sabem que Ahmed tem um plano macabro na cabeça. Vai todo dia à mesquita rezar e falar mal da professora e da mãe com o imã.
O menino não tem pai e não sabemos o que aconteceu.
Mas Ahmed tem um primo com foto na internet, considerado mártir e cercado de luz. Ele idolatra esse primo e frequenta um site de um imã que prega o assassinato de muçulmanos que não sigam a religião como os fundamentalistas.
Embora também fanático, o imã da mesquita muito simples que Ahmed frequenta não concorda com isso, a não ser quando a “jihad” (guerra santa) for decretada.
Mas Ahmed não está brincando e ataca a professora com um estilete e vai parar num reformatório, onde é acolhido com cuidado e tem um educador que o leva para trabalhar na fazendinha.
A lambida de um cão em sua mão tem que ser lavada imediatamente. Ahmed finge estar mudado mas ele continua com a ideia fixa de matar a professora. E se há alguma mudança nele é o despertar da sexualidade por causa de Louise que trabalha com ele.
Mas ela olha ele com estranheza quando, depois de um beijo casto, ele propõe que ela se converta para poder casar com ele e assim diminuir seu pecado.
Quando ela se nega e se afasta dele, Ahmed fica ainda mais zangado e foge do reformatório para poder executar a professora.
A pergunta que os irmãos belgas fazem é complexa. Ahmed é um menino problemático, doente ou é um fundamentalista fanático que segue à risca uma religião que, em sua leitura, manda matar cristãos e apóstatas?
Ou essas duas condições ocorrem no menino? O que se esconde atrás do fanatismo de Ahmed?
Lembrando que a Europa cada vez mais tem que acolher refugiados muçulmanos o filme estaria condenando essa prática? Ou, ao contrário, busca explicar que só muçulmanos perturbados são uma ameaça aos outros e a si mesmo? Ou ainda, o que tem a religião a ver com tudo isso?
O filme foi premiado em Cannes pela melhor direção.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Letra e Música



“Letra e Música”- “Music and Lyrics”, Estados Unidos, 2007
Direção: Marc Lawrence

Desde o início, durante a apresentação dos créditos, já percebemos que essa comédia romântica é bem diferente das outras. Há ironia e inteligência nas cenas do videoclipe da banda PoP como se fosse dos anos 80, caricaturando as que tínhamos naquela época.
E Hugh Grant está em sua melhor forma fazendo o cantor decadente, Alex Fletcher que ganha dinheiro cantando velhos sucessos para suas fiéis fãs, em feiras e festas. Elas já são de uma certa idade e adoram ver ele dançando as coreografias do tempo da banda. E gritam alegres, como nos tempos em que eram garotas e iam aos shows dele.
Mas os convites para Alex se apresentar estão rareando e o agente dele (Brad Garrett) está preocupado.
É nesse momento que aparece uma oportunidade incrível. A cantora jovem mais famosa do momento, uma garota loura que exibe seu corpinho em danças rebolativas, Cora Corman (Haley Bennett), quer que ele escreva uma música nova para cantar com ela no show e depois gravar para o próximo álbum.
Ela é fã de Alex Fletcher, muito jovem e muito rica e só faz o que quer. A última mania dela é seguir uma religião oriental, usar imagens de budas tailandeses nos shows, com muitas luzes, lasers e fumaça colorida. E só canta musiquinhas repetitivas. O forte dela é mostrar o corpo em quase ”strpteases”, usando maiôs minúsculos.
O problema é que Alex nunca foi bom letrista. Só compositor. E mais, o tempo para fazer a canção para Cora é de uma semana.
Alex estava mergulhado na desolação quando aparece a substituta da moça que cuida das plantas dele. Sophie (Drew Barrymore) é atrapalhada, hipocondríaca e bonitinha.
Para surpresa de Alex e do agente dele, Sophie cantarola a música que o cantor dedilha no piano, inventando ali na hora uma boa proposta de letra para a música. Está feita a dupla?
O roteiro é bem óbvio e já sabemos como tudo vai acabar. Mas a diversão é boa. E Hugh Grant, com aquele jeito dele de fazer piadas a seu próprio respeito e olhar para a parceira como um menino querendo carinho, conquista quem ele quiser.
Se você é também fã do moço, não perca esse ”Letra e Música” de 2007, quando ele estava no auge.
O filme é bem simpático.


domingo, 8 de março de 2020

Uma Vida Oculta




“Uma Vida Oculta”- “A Hidden Life”, Estados Unidos, 2019
Direção: Terrence Malik

Ele vivia num paraíso escondido. Aquelas altas montanhas cercando o vale onde poucos habitavam teciam um elo com a natureza. Viviam rodeados de beleza natural intocada. As estações do ano regiam suas vidas na pequena aldeia de Radegund.
Franz Jagerstatter (August Dihel) é um homem desligado do mundo lá fora. Ele ama Fani (Valerie Pachner), docemente, sem arroubos. As filhas trouxeram mais carinho para sua casa simples mas bela e funcional.
Ali onde moram o trabalho é diário, intenso e silencioso. O trato com os animais é cercado de cuidados. O dia e a noite marcam afazeres e descanso.
Não há luxo. Apenas o essencial. Mas nada falta aos que não exigem o supérfluo. São felizes com aquilo que tem. Risos são frequentes em conversas de poucas falas.
Mas no mundo lá fora começa a guerra e, a princípio, parecia que era coisa dos outros, não deles.
Quanto se enganavam. Porque a Áustria caíra sob o domínio do nazismo. Como destoavam da simplicidade dos camponeses locais com seus gestos arrogantes, uniformes e botas brilhantes. Chegaram em Radegund porque precisavam de soldados. Cada vez que o rapaz do correio passava com a bicicleta era mais um homem que era retirado da companhia dos seus para ir lutar por ideias que não eram deles. Mas a obediência às convocações era fruto do medo das ameaças dos alemães. Todos colaboraram. Menos um.
Franz luta consigo mesmo. Sabe que a família sofrerá com o que vai acontecer. Mas não há outro caminho para ele.
Escutamos em “off”, marca registrada do diretor Terrence Malik, os monólogos internos do camponês. Ele vai se rebelar pacificamente. Não vai para a guerra, nem vai fazer a saudação nazista.
Franz Jagerstatter sofreu humilhação, tortura e fome mas não se dobrou ao nazismo. Fani e as crianças eram hostilizadas pelos outros aldeões que temiam a ira que se abateria sobre a aldeia por causa de um só homem.
Nada tirou Franz do caminho moral que escolhera. O Deus em que ele acreditava ditava essa posição frente à vida.
Hostilizado até pela Igreja Católica, Franz resistiu a todos os argumentos e tentações e manteve suas convicções.
Em 2007 ele foi reconhecido como mártir e beatificado pelo papa alemão Bento XVI.
Terrence Malik, 77 anos, Urso de Ouro em 1999 por “Além da Linha Vermelha” e Palma de Ouro em 2011 por “Árvore da Vida”, alguns dos prêmios de sua carreira, em “Uma Vida Oculta”, com imagens belíssimas, conta uma história real sobre um homem que não se deixa levar pelo medo e mantém suas convicções até o fim. Exemplo de correção moral, importante para ser pensada nos dias de hoje.
O filme tem 3 horas de duração, o que pode afastar quem não sabe que, com Terrence Malik, esse é um tempo muito bem aproveitado tanto para nossos olhos quanto para nossa alma.


quarta-feira, 4 de março de 2020

Por Lugares Incríveis



“Por Lugares Incríveis”-”All The Bright Places”, Estados Unidos, 2020
Direção: Brett Haley
NETFLIX

Era noite, ele vinha correndo pela rua deserta, ouvindo música com seus fones de ouvido. De repente, ele estanca. Ela estava de pé no parapeito da ponte e olhava para baixo. Iria pular? Mas aquela não era a sua colega de escola?
“- Violet Markey? “
E, sem pensar duas vezes, Theodore Finch salta também para o parapeito da ponte, lado a lado com Violet:
“- Puxa! É bem mais alto do que eu pensei! ”
Ela olha ele através dos óculos e quando ele faz uma gracinha e tenta ficar num pé só, ela se assusta. Qualquer pensamento de pular daquela altura sumiu da cabeça dela, se é que havia pensado mesmo seriamente nisso.
Ele puxa conversa com ela e, de mau humor, ela responde a tudo com monossílabos. Ele parece animado. Certamente pensa o que vai dizer depois, quando estiverem mais íntimos:
“- Salvei sua vida. ”
O fato é que os dois estão vivendo fases difíceis. Aos 17 anos, deveriam estar se formando e se preparando para a universidade. Mas o luto impede Violet (Elle Fanning, ótima) de viver plenamente. Sua irmã mais velha morrera num acidente de carro, onde estavam as duas e a irmã dirigia. Bateram na coluna da ponte. Daquela ponte onde Finch a encontrara. Violet sente-se culpada por estar viva e amarga uma tristeza e um afastamento da companhia dos amigos. Seus pais estão preocupados.
Já Theodore, que é considerado estranho pelos colegas da escola, falta muito nas aulas e não coopera nas sessões de aconselhamento que deveria assistir.
Esses dois vão se aproximar depois da noite da ponte por causa de um trabalho da escola. Vão se conhecer melhor e namorar. Ou melhor, Violet é que se engana ao pensar que Finch é um garoto como os outros. Afinal riem muito juntos e foi ele que tirou Violet da tristeza e do medo de andar de carro.
Mas ela está enganada. O luto necessita mesmo de um período de afastamento do mundo e reflexão sobre a perda. Violet tinha reações talvez um pouco exageradas mas perfeitamente aceitáveis. Aos poucos ela volta a sorrir e até a poder entrar no quarto da irmã, ver as fotos delas duas e sentir saudades.
Mas quando Finch começa a sumir sem dar notícias, Violet sofre e percebe que algo muito errado está acontecendo com ele.
O filme, baseado no livro de Jennifer Niven tem ótimas atuações e trata de temas sérios. Mas deixa no ar o que está acontecendo com Finch. Ele teve uma infância difícil, um pai abusivo, uma mãe que viaja muito por causa do trabalho e tem apenas a irmã mais velha e um melhor amigo. Mas é fechado e não gosta de falar sobre si.
O problema de Finch é mais sério do que parece, se pensarmos na necessidade que ele tem de sumir sem dar notícias, nem tentar explicar o porquê do seu comportamento. Ele precisaria de toda a ajuda com que pudesse contar. O psicólogo da escola faz de tudo para que ele venha às sessões de aconselhamento mas Finch vem poucas vezes, ironizando as falas daquele que tenta ajudá-lo, escondendo sua extrema carência e fragilidade com piadinhas e dando a entender que não leva nada a sério.
A adolescência é um período complicado da vida, com muitas angústias aparecendo frente à perda da infância e das responsabilidades que esperam.
Infelizmente nem todos aguentam as pressões. Falar sobre o que nos aflige sem criar tabus é saudável e necessário. O filme cumpre essa função.



Martin Eden



“Martin Eden”- Idem, Itália, França, 2019
Direção: Pietro Marcello

“- Como é belo! ”, suspiram as moças no cais de Nápoles, onde passeia Martin Eden, marinheiro. Olhos verdes num rosto másculo, corpo atlético e uma elegância natural, atraem os olhares do povo que passa por ali. Cumprimenta um, faz um aceno ao outro e sabe que é admirado por sua beleza.
Ele é impulsivo, corajoso e forte. Quando vê um segurança arrastando e batendo num jovem no píer, corre e salva o garoto indefeso, golpeando o bruto.
Será pela mão de Arturo (Giustiniano Alpi) que, agradecido o leva a conhecer sua família, que a vida de Martin Eden (Luca Marinelli) vai mudar de rumo.
Entrando pelos portões da casa palaciana encontram Carmela (Anna Patierno), a governanta, que olha o estranho de alto a baixo, desaprovando suas roupas desleixadas. O que aquele tipo faz na casa aristocrática dos Orsini? Esse é um dos problemas que a criada antevê. Martin vai conseguir conviver com aquela gente rica e preconceituosa?
Mas quando chega Elena (Jessica Cressy), irmã de Arturo, Martin que estava se sentindo deslocado, encontra sua musa salvadora. É ela que vai conduzi-lo a uma educação que ele não tem. É uma pedra bruta que precisa ser lapidada. Elena sugere que volte a estudar, empresta livros e responde a seus olhares embevecidos.
Martin fica conhecendo um mundo novo. Examina e admira as obras de arte na casa dos Orsini mas, percebe-se que, apesar de simpático, como diz a mãe de Elena, ele não conhece nada daquilo, sua cultura geral é pobre e não sabe comportar-se à mesa.
Vai ser um longo caminho.
Martin é expulso da casa da irmã pelo cunhado que o detesta e, por sorte, fica conhecendo Maria, uma viúva  que simpatiza com ele e o convida a morar com ela, fora de da cidade, em troca de ajuda com a casa e os filhos dela, que logo são conquistados por Martin.
Uma nova fase começa na vida do marinheiro. Quer ser escritor e apesar de não aceitarem seus escritos na revista literária, ele não desanima e torna-se autodidata. Pede dois anos a Elena para aprofundar-se nos estudos e chegar a ganhar algum dinheiro com seus textos, para por fim casar-se com ela.
Quando consegue finalmente ser aceito e escrever um livro, o narcisismo de Martin, autocentrado e agressivo quando o contrariam, aliado a uma natureza difícil, vão dificultar seus sonhos grandiosos. Ele se torna um elemento perdido, não pertencendo nem ao proletariado que era sua origem, nem à aristocracia que secretamente inveja e despreza, num conflito que o exaspera.
O filme é baseado num livro quase autobiográfico de Jack London, publicado em 1909. O diretor Pietro Marcello adaptou-o de forma criativa, de maneira a não datar a história de Martin Eden, misturando sinais como as roupas que tanto podem ser do início do século XX como dos anos 70. Numa cena aparece até uma televisão.
O diretor inseriu também pequenos trechos em sépia de imagens antigas que tanto podem ser interpretadas como o passado de Martin ou imagens de seus sonhos e decepções. Vindo do documentário ensaístico, mais subjetivo e com vínculos estreitos com a interpretação pessoal dos acontecimentos, Pietro Marcello é visto como uma grande promessa do novo cinema italiano. 
O desempenho comovente e consistente de Luca Marinelli valeu a ele a Copa Volpi, prêmio de melhor ator no Festival de Veneza.
Belos cenários naturais e interiores com produção primorosa são um ponto a mais para “Martin Eden”, que já é considerado um dos melhores filmes do ano.