segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Harriet



“Harriet” – Idem, Estados Unidos, 2019
Direção: Kasi Lemmons

Grandes árvores no lusco fusco do amanhecer. Uma paisagem azul envolta numa fina neblina.
Uma jovem negra está deitada no campo verde e parece morta. Mas não, ela dorme e sonha? Ou tem uma visão? Parece que ela tem o dom de prever acontecimentos. Agora ela vê negros correndo. Ela também. A mãe dela e a irmã numa carroça O que são essas imagens? Ainda não sabemos. Nem ela.
Esse filme conta a história de uma heroína americana na luta pela abolição da escravidão. Minty, como era conhecida na fazenda do sul dos Estados Unidos onde nasceu, torna-se Harriet Tubman, quando consegue fugir e aliar-se ao movimento dos abolicionistas.
Mas naqueles princípios de sua história, a pequena Minty queria amar John (Zachary Mommo) e ter uma família.
Mas quando levam essa ideia para o patrão, a reação e brutal:
“- Contratamos um advogado. Queremos que nossos filhos nasçam livres” diz John, que era um homem livre.
Havia uma carta do bisavô do patrão prometendo liberdade quando a mãe de MInty tivesse 47 anos. Mas o patrão se enfurece e grita:
“- Vocês pertencem a mim e seus filhos também, até o fim. Eu deixei vocês se casarem mas a partir de agora, John está expulso da fazenda e você volta ao trabalho.”
Minty corre para o rio e, de joelhos e punhos cerrados, amaldiçoa o patrão. Ele morre durante aquela noite. Coincidência? Ninguém acredita nisso na fazenda e cresce o mito em torno a Minty e seus poderes.
Veremos que a força de vontade, a coragem e a autoridade vão fazer daquela mocinha um gigante na defesa de seus irmãos negros.
Ela se veste de homem e se torna o misterioso “Moses” que rouba escravos das fazendas para levá-los a um lugar seguro onde são acolhidos por simpatizantes da causa dos negros. Por mais que os fazendeiros se armem para caçar esse ladrão misterioso, ele sempre escapa.
O filme é bem produzido, com belas imagens e um ótimo ritmo. Mas quem se destaca é Cynthia Erivo, indicada a melhor atriz no Oscar 2020, que interpreta Harriet com garra, inspiração e teimosia.
É o primeiro filme que é feito sobre essa mulher corajosa,  conduzida pelas vozes que escuta e que dizem o que ela deve fazer.
Certamente não será o último. A personagem merece outros filmes.


Judy - Muito Além do Arco-Iris




“Judy: Muito Além do Arco-Iris” – “Judy”, Estados Unidos, 2020
Direção:Rupert Gool

Ela mereceu seu canto do cisne. Apesar de triste, o dela celebrou uma vida dura, sofrida, talvez mal aproveitada mas coroada de sucesso. Judy Garland pagou o preço da fama aliada a um temperamento difícil.
No inicio do filme a vemos como uma garota de olhos imensos, ouvindo de Louis B. Mayer, o “big boss” da MGM, que tomasse cuidado:
“- Lá fora tem outras mais bonitas do que você mas que não tem essa sua voz, Judy. Eu faço filmes mas você é quem faz o dinheiro para mim com a venda dos ingressos. Quer ser igual às outras? Que tem vidas pequenas e nada excitantes? Você é quem escolhe.”
“- Claro que quero continuar no estúdio”, responde ela, amedrontada diante do homenzarrão.
“- Você sabe que é a minha preferida.”
E essa garota que tinha aquela voz única, teria que domar a sua fome tanto de comida como de carinho, engolindo pílulas, colocadas em sua cabeceira por ordem do “big boss”.
E lá vai Judy ter uma vida excitante e sofrida. Quatro casamentos, três filhos e no final, sem dinheiro para comprar uma casa e viver bem.
Aos 47 anos, ela vai para Londres para fazer dinheiro, cantando no “The Talk of the Town” em 1969. Mas, apesar da voz ainda pessoal e única e com uma interpretação de arrasar, quando estava bem, a maior parte do tempo ela estava mal. Bebida e drogas, que não a deixavam dormir. Estressada, infeliz e raivosa, chegou a brigar com a plateia que tinha comprado ingressos caros para vê-la cantar.
Renée Zellweger está muito bem no papel. Passa toda a tragédia de sua personagem, que nunca deixou de ser uma criança nevosa, principalmente porque não tinha tido uma infância normal. E havia uma mãe inadequada, ainda por cima.
Zellweger canta com sua própria voz, às vezes ao vivo, sem medo de não estar à altura. Claro que são vozes diferentes mas a “persona” de Judy está no palco e fora dele.
Renée Zellwager dança, faz cenas de brigas, tem ataques de raiva, desespero e impotência perante os problemas da vida. Assim era Judy, sem talento para a dificuldade.
As filhas de Judy, Liza Minelli e Lorna Luft, que aparecem pouco no filme, não aprovaram o roteiro. Mas como contar a história de Judy Garland? Os “flashes” que a acompanhavam onde ia são testemunhas dos vexames e dos sorrisos falsos.
E o filme faz uma reflexão sobre uma artista que não conseguiu administrar a própria vida, apesar do talento inegável para o palco.
E tudo isso acabou aos 47 anos, quando ela deixou de sofrer, para se tornar uma lenda. O filme conta seu último ano de vida. Mas ela estará sempre viva “Além do Arco-Iris”.


sábado, 25 de janeiro de 2020

1917



“1917”- Idem, Estados Unidos
Direção: Sam Mendes

A Primeira Guerra Mundial era para ser aquela que terminaria com todas as guerras. Era chamada de “A Grande Guerra”. Ingenuidade ou malícia? Pois foi a mais cruel. Aos 19 milhões de soldados mortos e 31 milhões de feridos, acrescentam-se 13 milhões de civis que perderam a vida.
E “1917”, o filme do talentoso diretor Sam Mendes (“Beleza Americana”), tem um jeito impressionante de nos colocar dentro desse cenário de estonteante perigo e horror.
Numa longa sequência que parece sem cortes, bem sucedida tecnicamente por Roger Deakins, estamos aprisionados na tela. Para causar sensação ou fazer com que o público reflita sobre a guerra?
De qualquer modo é impossível não ficar horrorizado com o que se passa na frente de nossos olhos, num ritmo alucinante depois de um início idílico, mostrando as flores do campo naquele primaveril mês de abril de 1917.
Quando o soldado Blake (Dean-Charles Chapman) é chamado no acampamento inglês, por ordem do general, vem acompanhado do soldado Schofield ( MacKay). Os ingleses estão tranquilos. Prece que os alemães se retiraram e o final da guerra está próximo. Mal sabem o que os espera.
O General (Colin Firth) envia os dois rapazes numa missão urgente. Para salvar o batalhão, onde luta o irmão de Blake, precisam entregar uma carta a um certo Coronel Mackenzie (Benedict Cumberbatch). Se assim fizerem, 1.600 soldados estarão livres de uma armadilha mortal.
E o pesadelo começa. Os dois soldados caminham pelas trincheiras apertadas, onde já se pode ver mortos e feridos. E ainda não começou.
Saem das trincheiras e caem num lamaçal que esconde em suas entranhas corpos semi enterrados e cavalos que já apodrecem, chamando moscas. O silêncio é sepulcral. Aumenta o terror de ver os soldados e ver o que eles veem.
Quando chegam às trincheiras alemães abandonadas, se espantam com a qualidade do trabalho e quando adentram os túneis subterrâneos, com beliches, ratos enormes são uma ameaça disfarçada. Explode tudo.
Blake consegue salvar Schofield mas os dois  estão cada vez mais certos de que os alemães estão melhor preparados do que eles.
A sucessão de perigos é alucinante. Na terra de ninguém há atiradores que miram e atiram, sem aparecer, um rio de corredeiras quase acaba com a vida de um dos soldados e o fogo consome a cidade francesa por onde se tem que passar.
Um interlúdio de amor e paz une uma mocinha francesa, uma bebezinha sem nome nem mãe e o soldado inglês.
A música de Thomas Newman é intermitente, dando lugar a longos silêncios onde ouvimos a respiração ofegante dos soldados.
Eu me emocionei até as lágrimas quando acabou. E li na tela negra que o filme foi baseado nas histórias que o avô de Sam Mendes contou para ele sobre a guerra da qual participou.
E eu me perguntei angustiada: quando é que os homens vão acordar para o horror que é uma guerra? Nada justifica essa carnificina.


domingo, 19 de janeiro de 2020

Adoráveis Mulheres



“Adoráveis Mulheres” – “Little Women”, Estados Unidos, 2019
Direção: Greta Gerwig

Se hoje em dia ainda existe um preconceito com a mulher solteira que escolhe seguir uma carreira, não pensa em casar e nem ter filhos, imagine há 150 anos atrás.
Louisa May Alcott, autora americana de “Little Women” queria ser escritora e ganhar dinheiro para ajudar sua família, sua mãe e quatro irmãs. Era uma dessas feministas de vanguarda, que pouca gente levava a sério.
Ela morava numa pensão em Nova York e escrevia furiosamente o dia inteiro. Adorava escrever histórias sobre romances passionais e duelos. Mas ganhava pouco, vendendo para revistas femininas.
Foi o seu editor que a aconselhou a escrever histórias sobre meninas e, meio a contragosto, Louisa se volta para a sua própria vida, suas irmãs e a mãe delas. E assim surgiu “Little Women”, um livro autobiográfico com pequenas alterações da realidade vivida por ela, publicado em 1868.
O livro foi um sucesso de venda e até hoje já teve quatro versões para o cinema, o que já evidencia o charme e o frescor do assunto que o público adorou.
A última delas é a de Greta Gerwig, que conhecemos de “Frances Ha”, filme em que ela atuou e escreveu o roteiro. E o triplo Oscar veio no ano passado com o filme “Lady Bird”, melhor filme, melhor diretora e melhor roteiro original.
O filme atual é delicioso e alia graça com a beleza. Uma coisa de irmãs que se amam e mesmo quando estão com raiva, tudo passa logo e o amor vence. Há uma bondade e uma ingenuidade contagiantes naquela casa.
Saoirse Ronan é Jo, a personagem principal, alterego da autora. Criativa e com um espírito de justiça e solidariedade marcantes, ela vai se envolver com os problemas da família, tentando resolver tudo da melhor maneira. Meg (Emma Watson) é a mais velha que é romântica e quer ser atriz. A mais tímida é Beth (Eliza Scanlen) que coloca toda sua paixão no piano. E Amy (Florence Pugh) é a mais vaidosa e sonha em ser uma grande pintora.
Há calor humano nessas meninas que fazem a casa da Sra March (Laura Dern) ser um refúgio ao mundo da guerra e tristezas lá fora. O pai (Bob Odenkirk), que está nos campos de batalha, manda cartas que fazem todas chorarem de saudades.
O ritmo do filme é acelerado seguindo as conversas das irmãs, quase sempre falando todas ao mesmo tempo e a câmera descansa pouco nos preciosos detalhes da produção de arte, figurinos e mesmo nas cenas ao ar livre, sempre ativas. Exceção marcante é uma tarde na praia prateada que o vento faz ficar suspensa na neblina.
Indo e voltando no tempo para contar as histórias dessas quatro garotas encantadoras, a diretora mantém esse ritmo que nos envolve e nos coloca muito próximas delas. Tanto nas alegrias quanto nas tristezas.
O elenco é muito bem escolhido e conta também com a tia March (Meryl Streep), a rica da família, o galante vizinho Laurie (Timothée Chalamet), melhor amigo de Jo e o professor alemão Friedrich Bhaer (o belo Louis Garrel) que aparece para salvar uma das irmãs da solteirice.
O filme é mesmo adorável mas eu gosto mais do título “Mulherzinhas” que é como o pai delas chamava com carinho as cinco mulheres de sua vida.
Uma graça.

domingo, 5 de janeiro de 2020

O Caso Richard Jewell



“O Caso Richard Jewell”- “Richard Jewell”, Estados Unidos, 2019
Direção: Clint Eastwood

A primeira vez que o advogado Watson Bryant (Sam Rockwell) notou a existência de Richard Jewell foi no escritório onde ambos trabalhavam, ele como advogado, o outro no almoxarifado. Quando foi pedir algo que faltava, já estava tudo em suas gavetas. Jewell passara por lá antes dele chegar. Até seus chocolates preferidos, que ele descobrira mexendo no lixo.
Jewell (Paul Walter Houser), um tipo obeso, com cara de bebê chorão, obcecado em cuidar da segurança das pessoas e cujo sonho era ser policial, era constantemente mal interpretado. Ele ultrapassava o que era seu dever, o que fica claro quando o diretor do Piedmont College, o demite do posto de segurança porque pessoas reclamavam que ele extrapolava de seu cargo, parando carros na rodovia e invadindo o quarto dos estudantes. Seu perfil foi considerado no mínimo estranho.
Em 1996, ele conseguiu um lugar na segurança do Pavilhão da AT&T nas Olimpíadas. Sua mãe (Kathy Bates, indicada a melhor atriz no Globo de Ouro), com quem morava, finalmente se orgulharia dele. Afinal, era quase um policial, pensava ele, já que fora treinado para lidar com todo tipo de ameaça à ordem que pudesse ocorrer.
Um misto de inocência, arrogância e falta de autocrítica acabava sempre por afastar as pessoas dele. Seu sonho oculto era ser um herói.
Naquela noite o Centennial Park estava lotado, os shows se sucediam e o público estava animado. Jewell chamara a atenção de uma garotada que bebia e atrapalhava os outros. Como não deram a mínima, Jewell chamou os policiais. É nesse momento que ele vê a mochila, debaixo de um banco.
Pois bem, Jewell imediatamente se encarrega de isolar o lugar, avisando que poderia se tratar de uma bomba. Aos poucos as pessoas vão se afastando.
Enquanto isso, uma telefonista do 911 recebe um chamado anônimo, avisando que havia uma bomba que iria explodir no Centennial Park em 30 minutos.
A informação chega aos policiais que tentam evacuar o lugar às pressas. Mas quando a bomba estourou, matou duas pessoas e feriu outras 111. E podia ter sido bem pior. Se Jewell não tivesse dado o alarme.
Ele finalmente conseguira. Era um herói. Todos falavam dele e queriam entrevistas. Ele escondia a euforia debaixo de uma capa de humildade.
Durou pouco. Dois dias depois, os mesmos que o exaltavam passaram a desconfiar dele quando o FBI o elegeu como suspeito. Não havia porquê. Não haviam provas. Apenas uma manchete lançava uma dúvida. Herói ou terrorista? Uma jornalista irresponsável e ambiciosa (Olivia Wilde), induz o redator do jornal de Atlanta a publicar na primeira página.
O roteiro muito bem escrito por Billy Ray e a direção segura do diretor de quase 90 anos, mostra como a precipitação e a ambição podem ser fatais.
Não fosse a defesa tranquila e firme daquele advogado que Jewell conhecera lá atrás e que funcionou como uma espécie de terapeuta, mostrando que ele não estava percebendo que todos ali, tanto o FBI como a imprensa, queriam vê-lo condenado, o pobre homem seria mal interpretado em suas próprias palavras.
O antigo prefeito de Carmel, cineasta e ator brilhante, produz uma justa defesa do pobre Richard Jewell, que morreu aos 44 anos, dez anos depois de tudo isso. E nos avisa que isso pode acontecer em qualquer lugar, com qualquer um de nós, se estivermos no lugar errado, na hora certa.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O Farol



“O Farol” – “The Lighthouse”, Estados Unidos, Canadá 2019
Direção: Robert Eggers

Há muitas maneiras de viver no mundo. A mais trágica delas é quando há uma impossibilidade de ver e aceitar a realidade que, por pior que seja, é o que temos e onde podemos mudar alguma coisa, por mínima que seja.
Nessas situações em que a realidade é negada e cria-se um outro mundo para se viver, o resultado é sempre um pesadelo. Porque mesmo quando a realidade ameaça e é substituída pela mente doente, não há como negá-la inteiramente. Ela vai se infiltrando e traz o medo com ela porque nesses casos a realidade é sentida como ameaçadora. Há algo que a pessoa não aceita de jeito nenhum mas não consegue se livrar de sua aparição. Quanto mais ela foge, mais tem que correr dessa realidade que a persegue.
“O Farol” espelha uma situação assim e pode ser visto como um filme de terror.
Numa leitura mais superficial, dois homens, um velho e um jovem estão num farol no meio do mar, longe do mundo. Precisam trabalhar arduamente para sua sobrevivência. É a cisterna suja, são os detritos que mancham a pedra do farol. Mesmo dentro da casa há vestígios de sujeira por mais que o jovem esfregue o chão. O velho obriga o jovem a uma insana tarefa de limpeza impossível, já que o próprio velho tem hábitos sujos.
Tudo isso é mostrado numa tela quase quadrada, em preto e branco e com uma trilha sonora que empresta vida ao farol e à natureza em torno. Ouvem-se sons cavos, lamentos, o uivar do vento, o grito raivoso das gaivotas, o estrépito das ondas, o rugir da tempestade. Para não falar da buzina do farol e do incessante estrépito das máquinas.
O farol mostra-se inabalável em toda sua altura e trabalha para si mesmo porque não se vê navio naquele mar. Uma escada em caracol leva ao alto, à luz. Mas só o velho tem acesso a ela. O jovem sente-se atraído pelo lugar que lhe é negado. Isso aumenta sua dor de humilhação constante.
E o que vemos, desde o início é a aparente tranquilidade do jovem ir desaparecendo. A sereiazinha de cerâmica que ele encontra em seu colchão, guardada no peito, é uma primeira alusão à mente que começa a alucinar. Ou é tudo um grande delírio desde o começo? A construção de uma mente atormentada que nem naquele fim de mundo consegue ter paz?
O que vemos é uma loucura crescente. Um ator que mostra todo o seu talento nisso (Robert Pattinson) e o outro que parece ter prazer em atormentar o novato (o ótimo Williem Dafoe), fazendo de sua vida um inferno. Veio com o jovem ou não passa de uma projeção de seu torturador interno?
Não vou contar mais porque o espectador tem direito a ver tudo, principalmente o final, que tem mais de sofrimento indizível que de terror.
“O Farol” é uma imersão numa vivência extraordinária do que pode a mente humana quando perde o prumo, levada pela culpa, resultado da falsa interpretação dos acontecimentos.
Muito bem dirigido por Robert Eggers (“A Bruxa”) e magnificamente interpretado, eu o vi como uma encenação da loucura. A presença do terror dentro da mente de uma pessoa é bem mais assustadora do que os monstros habituais.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças




“Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”- “Eternal Sunshine of the Spotless Mind”, Estados Unidos, 2004
Direção: Michel Gondry

Se viver é perigoso, o amor, um dos sentimentos mais desejados, é também um dos mais temidos, porque expõe o ser humano ao que há de mais sublime e também à mais infernal das torturas. Pois não há amor sem momentos infelizes. Somos diferentes uns dos outros e atraídos, quase sem escolha, porque é algo emocional, a seres que vão nos transportar tanto ao céu quanto ao inferno.
E se pudéssemos apagar os amores intensos e infelizes? Tirar da memória e fazer com que desapareçam os traços daquilo que não queremos mais?
Esse é o tema do roteiro assinado por Charlie Kaufmann, que ganhou o Oscar de melhor roteiro original, nesse filme que tem como título uma frase de um poema do poeta inglês, Alexander Pope (1688-1744).
Não esperem uma ordem cronológica. O charme do filme é que estamos com Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) e vemos começar o amor deles num trem. Depois vamos ver a festa na praia, o casaco laranja e a outra primeira conversa dos dois.
Estranho? Pois isso é a memória de Joel. Os bons momentos e logo os males daquele amor. Mas não queira compreender tudo de cara. Dê um tempo.
Porque a fantasia de apagar da mente o amor que nos faz infelizes, é procurada primeiro por Clementine, a dos cabelos cada dia de uma cor. Aquela que ao ver um bebê, inveja sua mente inocente que, assim pensa ela, não guarda lembranças indesejadas.
Joel fica furioso ao descobrir que Clementine entregou-se a essa experiência de apagá-lo da memória na Clínica Lacuna. Entende porque ela se afastou dele e sofre mais ainda. A impulsividade dela, o pouco caso com aquilo que viveram, tudo dói no peito de Joel.
Então ele também vai se expor ao mesmo tratamento.
Só que há algo que não é explicado nisso tudo. E se no meio Joel quiser parar? Pode ser que ele entenda melhor o que está fazendo e não queira se perder numa espécie de demência.
Como ele vai poder sair daquilo? É um pesadelo.
Quanto mais que os assistentes do médico (Tom Wilkinson) são dois irresponsáveis (Mark Rufallo e Kirsten Dunst)?
Na verdade, a fantasia que tem um lado tentador, ou seja, apagar da memória aquilo que nos tortura, passa a ser um método que ensina ao incauto Joel que, sem lembranças, ele não é mais ele mesmo. Como continuar a viver sem se lembrar dela? Esboça-se a compreensão de que ela é um pedaço dele e ele um pedaço dela.  
O filme é muito bem planejado. Os efeitos especiais originais e belos. E a trilha sonora é muito bem escolhida.
Um filme inesquecível.