domingo, 22 de maio de 2011

Que mais posso querer





“Que Mais Posso Querer“ – “Cosa Voglio di Piu”, Itália /Suiça, 2010

Direção : Silvio Soldini





As primeiras cenas do filme são de uma família se mobilizando para o iminente nascimento de uma criança.

Anna (Alba Rohrwacher) e seu marido Alessio (Giuseppe Batiston) são acordados no meio da noite para socorrer a irmã dela, que está em trabalho de parto. Em meio a falatórios, confusões e tom dramático, à italiana, lá se vão todos para o hospital.

Tudo corre bem e na tela passam os letreiros.

O que mais chama a atenção, é que o titulo do filme aparece em letras minúsculas, tudo junto, como se fosse uma só palavra: "cosavogliodipiu".

O diretor, Silvio Soldini, que ganhou nove David di Donatelli (o maior prêmio do cinema italiano) com “Pão e Tulipas” em 2000, parece querer dizer algo importante com esse titulo, que é uma pergunta sem interrogação. É como se quisesse nomear um estado de alma.

Anna, a personagem principal, que tem uns 30 e poucos anos, é que está nesse estado de insatisfação inquietante que ela mesma não sabe nomear. Há uma busca em seu olhar. Um mal-estar em seu corpo.

Mas o que mais ela quer da vida?

Tem tudo. Por que a insatisfação?

Afinal ela é casada com um sujeito tranqüilo, que trabalha bastante em sua loja e que vive para agradá-la. É contadora em uma firma de seguros e parece ser querida por seus colegas. Pois bem, no dia em que uma delas se aposenta e ganha uma viagem, aquela pergunta inicial começa a tomar forma em sua mente.

Algo urgente clama em suas entranhas.

Com seus olhos expressivos, Anna parece querer perguntar a si mesma: mas o que há na vida além de casamento, filhos, trabalho e aposentadoria?

Tudo isso é muito pouco para ela, que quer mais.

E sai em busca.

Seu marido acomodado não serve para o que ela precisa.

A sexualidade exaltada será o guia de Anna para chegar onde ela quer e ainda não sabe: sentir-se desejada com volúpia, abandonar-se a um estado de paixão cega, conhecer-se em seus precipícios, alçar vôo para terras desconhecidas.

Quer um homem.

E o primeiro que aparece é Domenico (Pierfrancesco Favino). O atraente garçom do buffet que vai , por acaso, ao escritório onde ela trabalha, pedindo uma faca emprestada, será o escolhido pelos seus hormônios.

A atração física que se instala entre os dois não é questionada, nem precisa de explicações. Para Anna ser a fêmea que precisa ser, ele será o macho convocado.

Um início atrapalhado, beijos ardentes furtivos, encontros desajeitados sempre interrompidos, só fazem aumentar ainda mais o clima de exasperação.

E quando chega a noite no motel, no quarto vermelho, ornado de espelhos, encontram imediatamente a medida certa dos gestos e os passos seguros para o ato erótico.

Despem-se de suas roupas e seus corpos se encaixam sem atritos.

Não há palavras, nem coreografias. Poses, gritos e gemidos são dispensáveis. Aqui o sexo é natural.

Essa cena perfeita contagia com sua simplicidade intensa. A câmara não invasiva focaliza o que interessa.

O diretor Silvio Soldini consegue fazer um cinema de alta comunicação com o público, levando os atores (que passam uma química perfeita como casal), a compartilhar com quem os assiste uma verdade tocante.

Há muito de universal e primevo nesse amor sem rituais repetitivos e cansados.

Os corpos brilham. Entre Anna e Domenico é puro prazer e gozo.

Em um almoço de família, dias depois, uma parente repara:

“- Anna, o que está acontecendo? Está tão bonita! Qual é esse tratamento novo?”

Mas a realidade não tarda a invadir esse espaço que deveria ser só deles. Domenico é casado, pai de dois filhos amados e luta, com a mulher, para que a família sobreviva. A amante é para ele uma fuga dessa vida dura.

Anna sofre com a não disponibilidade que vê em Domenico. Mas o caso entre eles foi intenso e verdadeiro. Saciou o cio dela. Não foi uma relação perversa que escraviza e maltrata. Domenico não torturou seu corpo nem seu coração. Ajudou-a, mostrando-a para ela mesma.

Sofrida mas amadurecida, Anna está mais completa e pronta para a vida que a espera.

Talvez tenha compreendido que a pergunta que se fazia no inicio do filme é a marca indelével da natureza humana.

Somos todos insatisfeitos, mas saber disso coloca em nossas mãos a responsabilidade por nossos passos e a escolha dos caminhos que trilhamos em nossas vidas.

E colhemos as conseqüências sempre.

“Que mais posso querer” ensina essa lição sem moralismos.

domingo, 15 de maio de 2011

Ricky e Reencontrando a Felicidade










“Ricky”, França/ Itália, 2009

Direção: François Ozon








"Reencontrando a Felicidade"- Estados Unidos, 2010

Direção: John Cameron Mitchell



Estavam em cartaz em São Paulo dois filmes diferentes que tratam do mesmo tema: a perda de um filho.Ricky, infelizmente, agora só em video.

Sabemos que é um assunto pesado, triste e a dor mais terrível que pode afetar uma mãe.

“Ricky”, de François Ozon, é original, como todos os filmes do jovem cineasta francês. Com ele escapamos de um registro habitual, de dura e pura realidade, para a criação fantástica e o sonho.

Ozon inspirou-se na novela “Moth” (Mariposa) da inglesa Rose Tremain para criar “Ricky”, o seu bebê extraordinário.

O filme, que se chamou “Léger comme l’air” (Leve como o ar) em francês, mostra o caminho que, muitas vezes, palmilha a mãe em luto: a fuga da realidade e a criação de uma alucinação que consola e distrai da dor da perda.

Katie (Alexandra Lamy), mãe solteira, tem uma menina e dá a luz a um menino. No começo do filme vemos que ela se queixa a uma assistente social, numa delegacia, que o pai da criança (Sergi Lopez) desaparecera e que está muito cansada porque o bebê chora demais.

“-Não consigo mais cuidar dele”.

É a única alusão a um tipo de perda, a doação de um bebê para adoção.

Podemos imaginar a culpa e o sentimento de inadequação e, até mesmo, do horror de si mesma, que acompanha a mãe nesse ato.

Como lidar com um luto impossível?

Imediatamente, Ozon muda a narrativa para o registro do sonho. Uma outra história vai ser contada.

O bebê Ricky preocupa a mãe porque apresenta estranhos hematomas nas costas que evoluem para feridas abertas de onde saem apêndices esquisitos.

As suspeitas de maltrato recaem sobre o pai e ele abandona a casa.

Algo espantoso está acontecendo com Ricky, o bebê que precisa sair de casa para não morrer. Ele é um pássaro ou um anjo?

Precisa de espaços abertos, de ar? Ou de outro ambiente, outra mãe?

Ele é solto na floresta. A mãe, sabendo que seu bebê alado está bem assim, livre para voar, pode refazer-se de uma dor que quase a levou à morte.

O bebê fantástico libera a mãe e a irmãzinha de uma dor insuportável e a vida pode seguir o seu curso. A magia e o encantamento conduzindo a ação, propiciam paz de espírito para aquela família.

Talvez Ozon queira dizer que a imaginação, mais do que a loucura e a alucinação, é o caminho para se lidar com tudo aquilo que parece impossível.

Já em “Reencontrando a Felicidade”, titulo infeliz para “Rabbit Hole”(Toca do Coelho), que o tradutor considerou mais palatável, o drama aparece aos poucos, como se houvesse medo em se tocar no assunto. Quatro excelentes atores vão encená-lo.

O portão aberto num jardim bem cuidado, apenas sugere que algo inusitado se passou ali.

Nicole Kidman faz Becca, a mãe que não consegue superar a perda do filho e está cheia de raiva e desamor.

Howie (Aaron Eckhart) é o pai que se esconde para ver os vídeos do filhinho, morto há 8 mêses, no celular.

Não é possível nenhuma intimidade ao casal. Becca se mantém rígida e gelada, como se tivesse morrido também.

Ela foge de tudo e todos. Procura uma toca para se esconder e não pensar em nada.

Largou o emprego.

Não gosta das pessoas do grupo de auto-ajuda que o casal freqüenta. Não gosta do menu no restaurante. Não gosta mais da casa. Não gosta mais do cachorro que manda para a casa da mãe. Não gosta mais de si mesma.

Mas ela tenta se livrar daquele estado em que se encontra. Doa as roupas do filho, limpa o quarto dele, recolhe os desenhos pregados no armário, tira a cadeirinha do assento de trás do carro. Em vão.

A mãe de Becca (Dianne Wiest) tenta conversar com a filha. E descobrimos que também ela passou pela mesma dor. Seu filho morreu de “overdose”.

“- Não há comparação entre eles. Danny era um menino de 4 anos e Arthur era um drogado”, diz Becca com raiva para a mãe.

“- Mas era meu filho”, responde a mãe.

Um fio de esperança surge quando Becca procura Jason (Miles Taller). O garoto, que desenhava buracos para que seus personagens de história de quadrinhos alcançassem mundos paralelos, é o único com quem ela consegue conversar.

Pode parecer chocante à primeira vista, mas se lembrarmos que o luto envolve muita culpa, compreendemos que o garoto que atropelara Danny era o único com quem Becca se identificava.

Se ela não tivesse deixado o portão aberto por causa do cachorro... Se Danny não tivesse ido atrás dele... Se Jason não tivesse passado de carro por aquela rua naquele minuto...

Mas, falar sobre o assunto, aos poucos vai trazendo os dois para um lugar de mais paz e conforto.

Uma tarde, enquanto guardavam os brinquedos de Danny numa caixa, mãe e filha já podem conversar:

“- Isso vai embora?”, pergunta Becca referindo-se à sua dor.

“- Não. Já se passaram 11 anos e ainda está aqui... Mas muda. Um dia a carga se torna mais suportável...”

Becca chora.

Os dois filmes ilustram, cada um à sua maneira, porque falamos em “trabalho do luto”. Leva tempo, é sofrido e requer um grande investimento no amor a si próprio e na possibilidade de internalizar a figura do morto.

Dentro do coração da mãe, o filho pode viver e ser encontrado.

Ricky e Danny ensinam às mães, pais e filhos da platéia do cinema esse segredo.




sábado, 7 de maio de 2011

Água para Elefantes




“Água para Elefantes”- “Water for Elephants”, Estados Unidos, 2011

Direção: Francis Lawrence





Antigamente, circos sempre davam um bom cenário para belas histórias no cinema. “O Maior Espetáculo da Terra”, 1952, dirigido por Cecil B. de Mille, ganhou o Oscar de melhor filme, com um triângulo amoroso de trapezistas. Ciúme e perigo, vôos fatais.

“Água para Elefantes” retoma esse cenário e o mesmo tema mas de uma forma mais sombria, tendo como pano de fundo o período da Grande Depressão nos Estados Unidos, nos anos 30.

A história é contada pelo protagonista, já muito velhinho (o maravilhoso Hall Halbrook), lúcido e nada desmemoriado.

Defrontado por acaso com uma foto de 1931, ele relembra aquilo que tinha sido a grande aventura de sua vida e também o mais famoso desastre da história dos circos.

“- O senhor estava lá no incêndio? “, pergunta um rapaz.

O velho se emociona e conta, num grande “flashback”, a sua vida no Circo dos Irmãos Benzini.

Tudo começa quando, durante seu último exame na Universidade de Cornell para se tornar veterinário, fica sabendo da morte de seus pais, poloneses imigrantes, num acidente de carro e ouve que não tem mais nada. A casa fora hipotecada para pagar seus estudos.

Desorientado, pega um trem em movimento e, sem querer vai parar no Circo Benzini.

Admira o trabalho dos homens que batem estacas fazendo a lona se abrir, majestosa. Animais selvagens em jaulas estreitas o sensibilizam. Ele acaricia a girafa.

De repente, Marlena aparece. De malha branca bordada e uma tiara brilhante na cabeça, examina preocupada o seu cavalo branco.

Jacob Jankowski, o veterinário(Robert Pattison) e a bela amazona(Reese Whiterspoon) se aproximam pelo amor que ambos tem pelos animais. Eles ainda não sabem mas formou-se o triângulo e surgiu o perigo.

August, dono do circo, (o sempre magnífico Christoph Waltz) é casado com Marlena e dirige homens e animais com mão de ferro e sem piedade. É perverso e covarde. Vai haver confronto.

Entretanto, o melhor do filme, para mim, é a presença enorme e mágica da elefanta Rosie, de 53 anos que é Tai na vida real. É através dela que os mais tocantes momentos do filme acontecem.

A gente se emociona quando sua tromba carinhosa enlaça o veterinário com delicadeza ou quando ela se deixa levar com graça por Marlena. Corta o coração do público quando, por causa do maldoso dono do circo, ela jaz por terra semi-morta. Mas nos aliviamos quando sobrevive para mostrar o que significa “memória de elefante”.

Ela é a estrela maior, sem sombra de dúvida.

O ex-vampiro Robert Pattison está cada vez mais bonito e se diz aliviado por poder representar, finalmente, um ser humano. Mas o casal não consegue passar encantamento. Reese Whiterspoon, com cabelos à Jean Harlow e muito magrinha, não faz a câmara se enamorar por ela.

O filme é bem cuidado e tem figurino, maquiagem e direção de arte impecáveis. A fotografia de Rodrigo Prieto, que já fez “Biutiful”, “Abraços Partidos”e “Babel”, cria um clima pesado e condizente com a direção que a história toma. E consegue beleza, apesar disso.

Adaptado do livro de 1996 da escritora canadense Sara Gruen, o filme “Água para Elefantes” estimula o espectador que gosta de ler a descobrir o texto original (Editora Aguadeiro).

Não é sempre que um filme consegue dar conta de um livro.

Mas “’Água para Elefantes” não vai decepcionar quem vai ao cinema para se distrair.

É bom que assim seja e que haja filmes para todo tipo de público.

domingo, 1 de maio de 2011

A Minha Versão do Amor



“A Minha Versão do Amor”- “Barney’s Version”, Estados Unidos, 2010

Direção: Richard J. Lewis





Um charuto no cinzeiro, um copo de uísque sobre a mesa e um homem de meia idade no telefone.

“- Chame minha esposa!”, diz com voz pastosa.

“- São 3 da manhã. Ela não vai falar com você”, respondem do outro lado da linha.

“- E aquelas fotos dela nua, quando era bem novinha? Você não vai querer ver?”, pergunta o homem com ironia maldosa.

Assim somos apresentados a Barney Panofsky, 65 anos, quase careca e muitos quilos a mais em seu corpo atarracado e envelhecido.

A filha dele pergunta no dia seguinte:

“_ Por que telefonou às 3 da madrugada para o marido de minha mãe?”

Parece que Barney não se conforma com essa separação.

Ele tem uma produtora de TV que faz filmes classe B, a “Totally Unnecessary Productions”. O nome diz tudo.

Está encrencado com um delegado de polícia por causa de algo que aconteceu no passado e pior, sua lucidez começa a falhar. Vive perdendo o carro.

É aí que vamos começar a ver o desfile de suas memórias, em “flashbacks”. A versão de Barney sobre sua vida.

Essa história vai girar em torno às suas mulheres. Ou melhor, ex-mulheres, porque à esta altura já percebemos que ele está só e desconsolado.

Assim, vamos a 1974. Na Roma boêmia, Barney, cercado de amigos farristas, ainda com cabelos crespos e mais magro, se casa com uma pintora pornô, uma linda judia ruiva, desequilibrada e auto-destrutiva ( Rachelle Lefevre). Ela está grávida e pensa que o filho é dele. O final é trágico.

Já em 1979, no Canadá, Barney casa-se uma segunda vez com outra linda judia, desta vez morena, rica e faladeira (Minnie Driver).

É a ocasião de vermos um legítimo casamento judaico com muita dança, comida a granel, famílias emperiquitadas e muita alegria.

Só o noivo parece macambúzio, bebendo muito e até acompanhando um jogo de hóquei no bar com os amigos.

Será nessa festa de seu casamento que Barney vai conhecer aquela que ele diz ser a mulher de sua vida (a suave Rosamund Pike). Ela vai ser a mãe de seus dois filhos e, com ela, ele vive um romance atrapalhado pelos seus ciúmes e egoismo, mas intenso e correspondido.

Barney Panofsky é um personagem que vai nos conquistando ao longo do filme. Narcisista, ególatra e machista, sofre transformações por conta das “trombadas” que leva pela vida e acaba por nos comover. É um veiculo sensacional para a atuação de Paul Giamatti, que interpreta com paixão e sinceridade esse homem por vezes detestável.

Dirigido com competência por Richard J. Lewis, com roteiro de Michael Kanyves, o filme é a adaptação para o cinema do livro “A Versão de Barney” (Cia das Letras), de Mordechai Richter (1931- 2001), a quem o filme é dedicado.

Considerado um dos mais famosos escritores canadenses, ele retrata em seu último livro de 1997, com amor e ironia, o meio em que viveu: os judeus do Québec.

Os diálogos são ótimos e quem entende “idish”, o dialeto dos judeus da Europa Central, se delicia com as palavras enxertadas nas frases em inglês.

O humor judaico do filme é inteligente e peculiar. O toque picante fica por conta das cenas que envolvem o pai de Barney, um policial aposentado, mal educado e vulgar. Dustin Hoffman encarna essa figura, tão hilariante quanto inconveniente, com o talento de sempre.

“A Minha Versão do Amor” é um filme que quer divertir e consegue, fazendo com que a gente ria e também se emocione nas situações mais melodramáticas. Prende o espectador nem tanto pelo riso mas com a humanidade dos tipos que aparecem na história.

Vá ver e pense como a vida é contada sempre como uma narrativa subjetiva. A verdade, nesse mundo, só existe como a versão de cada um.

Nas histórias que contamos sobre a nossa vida sempre valerá o dito “Assim é, se lhe parece”. Concordam?