terça-feira, 28 de outubro de 2014

As Maravilhas - 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


“As Maravilhas”- “Le Meraviglie”, Itália, Suiça, Alemanha, 2014
38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Direção: Alice Rohrwacher

Uma atmosfera de sonho angustiado cerca as primeiras cenas do filme, quando faróis de carros, como olhos luminosos no escuro, brilham na tela. Cães farejam na noite. Há homens armados. O que está acontecendo?
A câmara mostra casas num lusco-fusco e, numa delas entra em um quarto, outro. Uma menina dorme só de calcinha. Mas há mais gente por ali.
“- Aonde você vai?” pergunta quem supomos ser a mãe (Alba Rohrwacher, irmã da diretora).
“- Preciso fazer xixi”, responde a menina.
O homem que supomos ser o pai (Sam Louwyck) está em outra cama.
“- Os caçadores atiraram?”
Há uma ameaça que pesa sobre aquela família.
De chofre, sem qualquer explicação, somos jogados dentro dessa casa. Depois percebemos que são pai, mãe e quatro filhas. A mais velha é Gelsomina, mais prática que a de Fellini em “Noites de Cabíria”, Marinella é a segunda, a mais alegre. Catherina e Luna são as menores. Recolhem o mel de colméias de maneira artesanal.
Há uma constante preocupação com o balde para onde escorre o mel. Quando está cheio, as meninas o esvaziam num reservatório maior, de onde vai para os potes que as pequenas rotulam.
Gelsomina é a lider do trabalho. Lida com as abelhas ajudada pelo pai. Mas a menina nunca é picada. É ela que tira os ferrões das costas do pai.
O pai usa o italiano mas palavras em alemão se intrometem em sua boca. Com a mãe fala em francês. Por que? Não sabemos.
E todos os dias são iguais até que chega a dona do “País das Maravilhas”. A fada-deusa, vestida de sedas e ouro falsos, interpretada pela bela Monica Bellucci, comanda um programa de TV que propõe um concurso entre as propriedades da região. O cobiçado prêmio em dinheiro irá para o melhor show. As meninas logo se interessam pela novidade, apesar da proibição do pai.
Na necrópole etrusca, no meio do lago, as velhas do lugar vão cantar antigas canções, mocinhas vão dançar com fantasias improvisadas, e Gelsomina vai trazer seu rosto, escondido entre suas mãos, onde abelhas passeiam com intimidade.
As paredes daquele cemitério milenar vão reviver com a luz de fogueiras e já não sabemos em que época estamos. E o amor acontece.
O filme de Alice Rohrwacher 32 anos, ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes 2014. Único representante da Itália na mostra competitiva, tem elementos da própria biografia da diretora e roteirista, criada na Toscana, numa família de apicultores.
Mas “As Maravilhas” é um filme misterioso. Como o povo etrusco que habitou naquele lugar, como as abelhas que produzem mel há séculos e começam a desaparecer, como aquela família que aparece sem apresentações e desaparece numa bela cena final, onde uma cama única os acolhe, ao relento, como um barco num mar imenso, à mercê das marés do tempo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O Juiz


“O Juiz”- “The Judge”, Estados Unidos, 2014
Direção: David Dobkin

Filmes que mostram relações familiares conturbadas, geralmente emocionam a plateia que se identifica com os personagens. Quando o caso é entre o filho, o advogado Hank Palmer (Robert Downey Jr), e o pai, o juiz Joseph Palmer (Robert Duvall), a trama poderia ser o de menos. Sabemos que haverá reconciliação e lágrimas no final.
Mas “O Juiz” surpreende porque a narrativa é menos óbvia do que em outos filmes do gênero, já que as relações afetivas entre pai e filho são gélidas por motivos que não ficam claros desde o início. Vamos nos envolvendo aos poucos com as revelações surpreendentes e os “flash-backs”oportunos.
Hank Palmer é um advogado tão brilhante quanto arrogante, que só defende culpados endinheirados e não se acanha nem um pouco com isso:
“- Inocentes nunca tem dinheiro suficiente para me contratar”, diz com todas as letras para o promotor que o questiona, acrescentando que tem uma Ferrari na garagem e uma bonita esposa esperando por ele.
Bem, a Ferrari pode ser mas a mulher está pedindo o divórcio e a guarda da filha única do casal.
Quando ele recebe um telefonema em pleno tribunal e pede ao juiz um adiamento, o promotor pensa que ele está mentindo quando noticia que sua mãe morreu naquela manhã:
“- Aqui está a mensagem gravada” diz Palmer, passando o celular para o Juiz.
Parece que ele não mede esforços para mentir e forjar situações duvidosas, mas dessa vez é verdade. Ele vai ter que voltar para casa e enfrentar o que evita há 20 anos. Seu pai.
Robert Duvall, que já ganhou um Oscar em 1984 por “A Força do Carinho”, provávelmente será indicado novamente. Aos 83 anos, seu juiz é a melhor coisa do filme. Ele comove sem apelações.
Bons momentos passam-se também no tribunal da cidadezinha onde o Juiz, pai de Hank, viveu a vida toda e é um cidadão respeitado.
O filho vai ter que duelar com o promotor (Billy Bob Thorton, sempre ótimo), quando o pai é acusado de um crime. É em tribunais que o advogado Hank sente-se mais à vontade, mas mesmo assim, vai ser difícil atuar como faz em Chicago, porque o passado que vem à tona, o incomoda e mexe com sua carência afetiva, que ele esconde sempre através de uma auto-suficiência enganosa e defensiva.
Os irmãos de Hank, o mais velho (Vincent D’Onofrio) e o mais novo, mostram também seus ressentimentos com o irmão mais bem sucedido, enquanto eles ficaram para trás, vivendo uma vida modesta.
Vera Farmiga, boa atriz, faz a antiga namorada que Hank vai reencontrar. Algo bom em seu passado na cidadezinha natal.
“O Juiz”, um filme comercial com qualidades, brilha mais pelas atuações do que pela história baseada num livro de John Grisham. Mas não é enfadonho, apesar de sua longa duração.
Vai estar no Oscar, podem crer.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Foxcatcher:Uma História que Chocou o Mundo - 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


“Foxcatcher”- “Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo”, Estados Unidos, 2014
38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Direção: Bennett Miller

A caça à raposa, “esporte” tradicional dos inglêses, é uma farsa. A pobre criatura, perseguida pelos cães que a farejam e os cavaleiros que atiram para matar e divertir-se, é solta de seu cativeiro um pouco antes da caçada começar. Ela está destinada à morte certa.
Quando vemos o filme de época em preto e branco, que passa antes dos créditos, mostrar claramente o que acontece com a raposa, passamos a temer pela vida de uma vítima no filme “Foxcatcher”.
Acontece que o milionário americano John du Pont (Steve Carell, assombroso) sonha em ter um time de luta-livre ou luta greco-romana, para ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Seul em 1988.
Ele se considera um patriota, herdeiro legítimo de sua família que vendia munição ao exército americano desde o início do século vinte, a maior indústria química do mundo.
Em sua propriedade “Foxcatcher”, onde imperam os cavalos puro-sangue da matriarca (interpretada com corpo retorcido e olhos penetrantes, por Vanessa Redgrave, atriz imensa), o filho quer treinar um time liderado pelos irmãos Schultz, Dave e Mark (Mark Ruffalo, sempre competente e Channing Tatum surpreendente), ganhadores da medalha de ouro em 1984 nas Olmpíadas de Los Angeles.
Só que Dave, o irmão mais velho e treinador de Mark, não está disponível para se mudar com a família para Delaware. Bem que o milionário tenta trazê-lo. Mas só Mark aceita o convite.
O irmão mais novo está decadente, vivendo de sanduíches, numa casa acanhada, dando palestras por tostões em escolas da região. Para Mark, o chamado de John du Pont é a chance de tirar o pé da lama.
Mal sabe ele onde está se metendo.
De temperamento depressivo, auto-destrutivo, inseguro, ele embarca com gosto na vida que o milionário oferece como acompanhante de luxo, com total submissão a seu “pai, mentor e treinador” como John gosta de ser visto, com os apelidos de “águia e águia dourada”.
O bonitão Mark, ingênuo e necessitado de alguém que o use como um marionete, é argila nas mãos cruéis de John, que tenta agradar à mãe, que não esconde seu desprezo pelo filho.
A sexualidade doentia de John, combinada com bebida e drogas, dá vazão a uma crescente psicose.
Quando Dave entra em cena, o trio está completo para a encenação da tragédia.
Bennett Miller dirige o filme com talento, criando um clima de tensão desde o primeiro minuto. Seus magníficos atores interpretam com brilho a história, baseada em fatos reais, mas nem tão conhecida assim por aqui, como faz supor o título em português.
É uma encenação de arrepiar. O John du Pont de Steve Carell dá medo. O ator está irreconhecível. Ele encarna o milionário como alguém à procura de seu trágico destino.
Prêmio de melhor direção no Festival de Cannes desse ano, “Foxcatcher” é um filme para alguns Oscars.
Podem apostar.

Leviatã - 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


“Leviatã”- “Leviathan”, Rússia,2014
38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Direção: Andrei Zvyagintsev

O mar quebra suas ondas brancas no rochedo negro. Carcaças de barcos, um cemitério de pequenas embarcações e restos de um pier em escombros, refletem-se no espelho das águas.
Uma paisagem morta. Casas humildes espalham-se numa península.
No lusco-fusco de um dia que se finda, um carro na poeira traz um amigo de Moscou para Kolya (Alexei Sobryakov), que vive nessa região gelada com Lylia, sua bela mulher (Elena Lyadova, esplêndida) e Roma (Sergey Pokhadaev), adolescente, filho do primeiro casamento dele, que trata mal sua madrasta.
Os amigos se abraçam com força. O advogado Dmitri (Vladimir Vdovitchenkov), bonitão e caloroso, veio ajudar no processo em que o prefeito da cidade, Vadim (Roman Madyanov, ótimo), quer expropriar as terras de Kolya, berço de seus antepassados.
Com o retrato de Putin na parede e bandeiras da Rússia no seu acanhado escritório, o prefeito se reune com seus asseclas e planeja o bote. Aliado ao que de mais abjeto existe na cidade, com apoio de cúmplices do governo, dará um outro destino à terra que Kolya ama.
Mal sabe o russo louro e confiante, que sua vida poderá também ser destruída.
O progresso parece trazer para os russos mais do que televisões de plasma, celulares e carros blindados. Corrupção, ética de bandidos, saques perpetrados por uma justiça vendida, desfilam na tela.
Litros de vodca tentam anestesiar as dores da alma russa doente e desviada de seu caminho. Nem a religião consola, presa da mesma crise moral.
O menino chorando desolado na praia, frente aos ossos do esqueleto de uma baleia, branqueados ao sol, parece apontar para uma desesperança no futuro.
E, ao som da pungente sinfonia “Akhnaten” de Philip Glass, uma civilização milenar se esfacela.
O filme de Andrei Zvyagintsev ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes 2014.
O diretor chamou seu filme “Leviatã”. O que nos remete à mitologia judaica, que dá esse nome a um monstro aquático que seria o demônio representante do pecado da inveja.
E o nome do filme também parece combinar com a acepção do cientista político Thomas Hobbes (1588-1679), que chamou com esse nome, um governo central autoritário que seria necessário na eterna luta de todos contra todos.
Mas quando as coisas chegam a esse ponto, todos serão vítimas, mais dia, menos dia. É o alerta que o filme propõe?

Winter Sleep - 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo


“Winter Sleep” – Idem, Turquia, Alemanha, França, 2014
38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Direção: Nuri Bilge Ceylan

Uma paisagem de grandes pedras, neve e lama. Na Anatólia, região central da Turquia, os homens habitam em cavernas nas rochas, há milênios. Dentro delas, hibernam durante o inverno rigoroso.
Um jeep laranja vai no seu caminho, com dois homens dentro. De repente, uma pedra atinge o vidro da janela do passageiro. O motorista corre atrás de um garoto que foge. Por que aquele menino fez isso?
A partir daí, presenciamos a um demorado desmoronar das certezas de Aydin (Haluk Bilginer, excelente),dono de um hotel na região, homem rico, herdeiro de propriedades do pai.
Aquele menino pertence a uma família que não consegue pagar o aluguel da casa alugada. São inquilinos de Aydin e submissos a ele, mas numa postura de fachada. Por trás há ódio.
Mas o ex-ator e escritor de colunas num jornalzinho local parece não se interessar pelo vil metal. Deixa seus negócios, basicamente aluguéis e o hotel, nas mãos do motorista, Hydaiat, enquanto se refugia, com seu computador, em seu estúdio aconchegante.
Ele pretende, um dia, escrever a história do teatro turco. Diz que será um livro importante, já que conhece bem o assunto.
Mas essa pose de “grand seigneur”que Aydin mantém, com discursos longos nas conversas com a irmã Necla (Demet Akbaj) ou com a esposa Nihal (Melisa Sozen), muito mais jovem que ele, fica cada vez difícil de ser mantida.
Acusa a irmã, recém divorciada e a esposa, de preguiça e de viver às custas dele. Através da disfarçada desvalorização dos outros, Aydin consegue manter sua auto-estima num nível alto.
Para ele, só vale o que ele pensa sobre o mundo. Arrogante, pede a opinião dos outros apenas para reduzir tudo que a outra pessoa fala em seu oposto. É distante e frio, com aparência de ser magnânimo e generoso.
A caçada de um cavalo selvagem, que se joga na água lamacenta do rio para lutar por sua liberdade, abala  Aydin, que começa lentamente a dar-se conta de sua crueldade. Não apenas com as outras pessoas com quem convive mas principalmente consigo mesmo. Ainda frouxamente, algo dentro dele quer também libertar-se do jugo desse tirano que domina a personalidade dele.
É com interesse que seguimos os lances dessa luta interna.
O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes 2014 e o prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema, o FIPRESCI. Aliás, o diretor turco Nuri Bilge Ceylan de 55 anos é premiadíssimo em Cannes. Além desses dois prêmios, já ganhou o de melhor diretor em 2008 por "Three Monkeys", duas vêzes  o Grande Prêmio do Júri por "Distant"2002 e por "Era Uma Vez na Anatólia 2011 e mais três FIPRESCI por "Small Town"1997, "Clouds of May"2000 e "Climates"2002.
O diretor, e co-roteirista com sua mulher Ebru Ceylan,consegue criar um clima que vai se adensando e que, como gelo fino, ameaça o lugar e a pose imperial de Aydin.
“Winter Sleep” alude a um longo período de hibernação da alma de Aydin, que, frente a um fato que o atinge mais fortemente que os estilhaços do vidro daquela janela, vai despertar para a vida.
Tarde demais?

domingo, 19 de outubro de 2014

O Segredo das Águas - 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

 
“O Segredo das Águas”- “Still The Water”, Japão, 2014
38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Direção: Naomi Kawase

Quem fala de vida, fala de morte.
E é com delicadeza que a diretora e roteirista Naomi Kawase, 45 anos, filma a morte de uma cabrinha branca. A princípio, a cena assusta, porque não estamos mais acostumados com ela. Mas depois, abrindo os olhos com cautela, percebemos que o velho de barba e cabelos brancos fez aquilo com o maior cuidado e precisão. Ele acaricia a pele cor de neve. Não há maldade em seu gesto mas necessidade e respeito.
Naquela ilha, o mar de ondas enormes e belíssimas, lembra o Japão dos furacões, tufões e tsunamis. A natureza alí pode ficar bravia. Mas é o homem que maltrata a natureza e mata com crueldade.
Como morreu aquele ser humano que aparece boiando na praia, costas tatuadas?
Kyoko (Jun Yoshinaga), uma adolescente que está de uniforme de colégio, observa o afogado, junto a outros, silenciosos.
“- Deve ter sido um acidente”, diz alguém. “Aqui na ilha não acontecem crimes.”
A mãe de Kyoko (Miyuki Matsuda) está morrendo e ela está apaixonada por Kaito (Niijiri Murakami), um colega da escola com quem percorre a ilha de garupa na bicicleta dele.
Amor e morte.O ciclo da vida se transmite da mulher-mãe para a filha que poderá ser mãe e assim por diante.
O filme “O Segredo das Águas”, rodado na ilha de Amami, sul do Japão, é um filme que fala sobre o xamanismo. A avó da diretora era uma xamã, um ser entre os deuses e os homens, ligado à natureza e seus mistérios. Foi ela que cuidou de Naomi e o filme a homenageia.
A mãe de Kyoko é uma xamã e sua morte é natural e comovente. Cercada por habitantes da ilha, eles cantam e tocam músicas para ajudá-la a morrer feliz. E assim, consolam-se com a certeza de que a morte faz parte da vida e está destinada a todos os seres vivos.
Já o primeiro amor, é, por vezes, difícil de viver. Há medos e contradições no coração dos jovens.  Principalmente nos que não aceitam em si e nos outros, os desígnios da natureza.
Kaito está preso à mãe pelos laços primitivos de um Édipo que não permite que ele viva sua própria vida.
E como são lindas as cenas aquáticas, com Kyoko e Kaito mergulhando de mãos dadas no mar transparente.
A diretora japonesa concebe seu filme de maneira a nos conduzir a pensar que fazemos parte intrínseca da natureza, nossa mãe e que só em comunhão com ela seremos completos.
Um filme simples e poético.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Acima das Nuvens - 38a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo




“Acima das Nuvens – The Clouds of Sils Maria”,
38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Direção: Olivier Assayas

Quem já teve o privilégio de conhecer a cidadezinha de Sils Maria, nos Alpes suiços, sabe o quanto ela é encantadora. Seja com o belo lago brilhante de águas congeladas no inverno, seja no verão, com águas azuis e cristalinas, rodeado de montanhas altíssimas, percorridas no inverno pelos esquiadores, o cenário é de cartão postal.
Foi alí que o autor teatral Wilhelm Merchior escolheu viver e morrer. Seu corpo é encontrado nas alturas, onde a neve cobre as montanhas.
Maria Enders (Juliette Binoche) e sua assistente Valentine (Kristen Stewart) recebem a notícia dessa morte quando estão no trem, a caminho de Zurique, onde Maria, amiga íntima e atriz famosa das peças do dramaturgo, iria receber um prêmio em seu nome. Ele era recluso e avesso a homenagens.
Há 20 anos atrás, Maria interpretara o papel da jovem Sigrid na peça “A Serpente de Maloja” do autor, agora morto. O título se referia a um fenômeno local de Sils Maria quando nuvens caminham como uma enorme serpente sobre o lago, à procura dos vales mais baixos. Sinal de mau tempo para os habitantes locais.
A peça tinha duas personagens, a de Maria, a jovem ambiciosa e cruel e a mais velha, Helena, que se suicida após ser abandonada por Sigrid, a quem amava com uma dependência doentia.
Maria, convidada agora para reviver não Sigrid mas Helena, por um jovem diretor teatral, vai sofrer com a percepção ingrata de que o tempo passou, que ela envelheceu, que agora é a mulher que vai ser abandonada. Na vida real ela vive um divórcio. Ainda é bela mas o espelho mostra que a juventude se foi. Ciumenta e invejosa do frescor da assistente, Maria mostra as garras.
Valentine, com quem ela ensaia as falas da peça, na casa do autor morto, torna-se Sigrid, não só porque repete as palavras da jovem interpretada por Maria no passado mas porque começa a comportar-se com rebeldia e crueldade. Contesta a percepção que Maria tem da jovem Sigrid, dizendo claramente que isso já passou para ela, fechada agora em outro tempo, a meia idade.
As duas mulheres passam a confundir vida real e ficção. Em outras palavras, talvez a peça teatral começa a se encaixar nas pessoas que elas realmente são?
Quando entra em cena Chloe Moretz, 19 anos, estrela de Hollywood já famosa pelos escândalos e a vida livre que leva, objeto de todo tipo de comentário na internet, Maria vai sentir por ela uma mistura de amor e ódio. E vai aceitar a passagem do tempo como se aceita uma tempestade que desaba sobre nós, sem aviso, terrível e fatal.
Juliette Binoche, sempre talentosa e carismática e Kristen Stewart (a atriz da saga “Crepúsculo”), que mostra-se marcante no duelo verbal entre as duas, são o espetáculo principal. “A Serpente de Maloja” encarna nelas.
Olivier Assayas, 59 anos (“Depois de Maio” 2012, “Carlos” 2010, “Horas de Verão” 2008), diretor e roteirista, discute em seu filme a relação entre arte e vida real, juventude e maturidade, memória e verdade, passado e presente.
Conclusão: o tempo nos faz prisioneiros. Cruel? Realidade.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O Homem Mais Procurado



“O Homem Mais Procurado”- “The Most Wanted Man”, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, 2014
Direção: Anton Corbjin

Quem vai ver o filme, o último completo de Philip Seymour Hoffmann, não consegue deixar de acompanhar o ator com um olhar melancólico. E o personagem do agente secreto alemão, Gunther Bachmann, serve como uma luva para lembrarmos do fim trágico que o ator escolheu, aos 46 anos, em fevereiro último.
Quando o vemos com um andar molenga, quase que se arrastando, respirando mal, percebemos, de repente, que a alma dele pesava mais que o corpo volumoso. O olhar é longínquo, o passo é lento, ele procura ficar sózinho.
Há uma culpa escondida, uma indignação consigo mesmo, que não deixamos de notar.
Seu agente Gunther faz Philip fumar o tempo inteiro, beber e, principalmente calar o que o torna um homem triste e decepcionado com o mundo. Porque há nele uma fragilidade inegável. Misturam-se assim as figuras do ator e do personagem e somos tentados a adivinhar o que o levou ao suicídio. Tentativa vã de entender o ator através de pistas que ele deixa em seu personagem.
Dito isto, “O Homem Mais Procurado” é um filme de suspense político um pouco diferente dos outros. Baseado no livro de John Le Carré, tenta passar uma visão menos simplista sobre o que significa, hoje em dia, haver o mundo de lá, o Islã, contra o qual se arma o Ocidente, o mundo de cá.
O livro baseia-se em fatos reais acontecidos na Alemanha, quando o cidadão turco Murat Kumaz, residente legal, é preso por autoridades americanas, com o beneplácito do governo alemão e é levado para a prisão de Kandahar, no Afeganistão e depois para a base de Guantânamo, onde ficou por cinco anos, sem nenhuma acusação legal. Kumaz foi libertado em 2006, depois do escândalo internacional vir a público.
Em “O Homem Mais Procurado”, nos deparamos com dois personagens que não querem causar morte nem destruição mas são muçulmanos: o maltratado Issa Karpov, um homem com problemas íntimos insolúveis com o pai russo e a mãe chechena e Jamal, o filho que não pensa como seu pai. O agente alemão e uma advogada idealista (Rachel McAdams) tentam ajudar esses suspeitos, que se envolvem com possível financiamento de terrorismo.
A CIA, personificada na agente de Robin Wright, diz que quer fazer do mundo um lugar mais seguro e, por isso, prende pessoas sem muito questionamento e sem piedade.
A agência clandestina alemã de Gunther, que age fora da lei, ironicamente tem os mesmos objetivos alegados pela CIA, mas tenta ser mais cuidadosa, dialogando com os suspeitos, com uma postura mais humanitária.
E nós saímos do cinema perguntando: qual é a saída para esse problema? Haverá uma saída? Uma maneira menos injusta de conviver e aceitar diferenças que, por si só, não podem condenar ninguém como sendo sempre o inimigo? Ou não há tempo para isso e, para salvar inocentes, outros inocentes vão ter que sofrer?
O filme leva a pensar nesse impasse tão contemporâneo. 

sábado, 11 de outubro de 2014

Garota Exemplar


“Garota Exemplar”- “Gone Girl”, Estados Unidos, 2014
Direção: David Fincher

Sabe aqueles filmes com reviravoltas inesperadas? Eles prendem mesmo nossa atenção e, portanto, não se via nenhum celular sendo digitado durante “Garota Exemplar”.
O roteiro mexe com nossas fantasias paranoicas que abalam a confiança no outro. Como entregar-se a alguém sem medo, sem esperar que o pior aconteça?
O livro que deu origem ao roteiro, de Gillian Flynn,  (“Garota Exemplar” Ed. Intrínseca), já pedia mais, sempre mais do leitor. Era muito difícil largar o livro e tirar a história da cabeça. Foi a autora do best-seller que escreveu o roteiro e o diretor sabia bem o que estava fazendo quando a escolheu. Porque David Fincher gostou do livro.
O diretor de “Seven – Os Sete Pecados Capitais”1995, “Zodíaco”2007, “Millenium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres”2010, tem sempre em seus filmes o elemento surpresa, a dúvida, como o grande motivador da narrativa. Assim, todo mundo tem um esqueleto guardado no armário, como dizem os ingleses. Quem é totalmente inocente?
Na primeira cena, Amy (Rosamund Pike, perfeita no papel) aparece de costas e vai virando a cabeça em “close” e câmara lenta, com um olhar entre o sedutor e o questionador, enquanto Nick Dunne, o marido (Ben Affleck, inspirado), fala em “off”:
“- Quando penso em minha mulher, sempre imagino sua linda cabeça buscando respostas sobre o que aconteceu com o nosso casamento.”
Logo depois, ele está no bar bebendo às 10 e meia da manhã e conversando com a irmã gêmea (Carrie Con):
“- Estou num dia ruim. É nosso quinto aniversário de casamento e não tenho presente para Amy...”
Mas, quando ele volta para casa e vê o gato deles na rua, pega o bichano no colo e entra chamando a mulher, preocupado e logo liga para a polícia, quando vê sinais de luta na sala, móveis revirados e cacos de vidro por todo o lado.
Amy, que era filha do casal que escrevera livros infantís com ela como personagem, “Amazing Amy”, tinha diploma de Harvard, era uma esposa perfeita e sumira sem deixar vestígios, a não ser os que a detetive da polícia (Kim Dickens) vai encontrando.
Quando os pais dela fazem um ”show” com a história do desaparecimento e um programa de TV parece achar que o suspeito só pode ser o marido, a imprensa, os vizinhos e os fãs de “Amazing Amy” passam a pedir a cabeça de Dick, o marido que jura inocência com apatia.
“Garota Exemplar” fala sobre as máscaras que usamos em nossa vida social e o que acontece quando elas caem na vida privada. Aponta para a necessidade doentia de acreditarmos em seres humanos sem jaça, que acalmam a dificuldade de sermos sempre iguais a nós mesmos, sem trincas, sem ambiguidades, nem desejos controversos.
“Garota Exemplar” é um suspense com conteúdo.

domingo, 5 de outubro de 2014

O Último Concerto



“O Último Concerto”- “The Late Quartet”, Estados Unidos, 201
Direção: Yaron Zilberman

Você gosta de música clássica? A pergunta aponta para o aparente tema principal do filme, se formos conduzidos pelo título da tradução brasileira, mas “O Último Concerto” tem bem mais que só música.
O interessante é a história que foca os músicos de um quarteto. Veremos como a vida pessoal tem a ver com o que acontece num conjunto musical, “A Fuga”, quarteto de cordas de renome internacional, formado há já 25 anos, quando começa o filme.
Estão no palco e vão começar um concerto e ainda não sabemos nada sobre eles. Nesse começo, são apenas atores conhecidos representando músicos.
Christopher Walken (que está estupendo) é o violoncelista, o mais velho do grupo, Catherine Keener, que olha para ele com um meio sorriso é quem toca a viola, Philip Seymour Hoffman (em uma de suas últimas aparições no cinema) é o segundo violino e Mark Ivanir, o menos conhecido dos atores, é o primeiro violino.
Mas logo, o diretor e co-roteirista Yaron Zilberman, que veio do documentário e faz seu primeiro longa de ficção, vai mostrando a vida pessoal desses músicos, que se tornam personagens convincentes. E somos levados a compartilhar o drama central daquele quarteto que pode estar morrendo. Por isso chamado “late” no título original, “The Late Quartet”.
Peter, que é o centro de equilíbrio do quarteto, descobre que tem a doença de Parkinson, que começa a mostrar seus sinais. Ele tem dificuldade em fazer os movimentos necessários para a execução perfeita da música no violoncelo.Terá que ser substituído após o último concerto do quarteto. Isso cai como uma bomba sobre os demais músicos.
Numa cena com seus alunos, Peter cita versos de T. S. Eliot de “Four Quartets”, em que o poeta fala sobre o tempo e conclui:
“- Tudo está sempre contido no agora, o passado e o futuro.”
Ele, que sabe que seu fim está próximo, comenta com os alunos sobre os últimos quartetos compostos por Beethoven, especialmente o opus 131, que “A Fuga” vai apresentar no último concerto e está ensaiando. E conta como essa peça tem uma particularidade. Tem sete movimentos e não os quatro habituais e é para ser tocada sem pausa, costumeira para a afinação dos instrumentos.
“- O que será que Beethoven queria nos comunicar com essa maneira diferente de tocar que ele impõe? Estava chamando a nossa atenção para o fato de que todos os acontecimentos da vida estão conectados? Surdo e sentindo que estava próximo do fim, não podia parar? Não podia perder tempo? Não sei... Mas o que todos sabemos é que os instrumentos desafinam quando são tocados. Tocar sete movimentos sem parar é um desafio. Temos que nos adaptar uns aos outros, mesmo desafinados...”
E o que vale para o opus 131 sendo tocado no palco, vale também para a vida desse quarteto e os dramas que são vividos por eles. Estão todos no mesmo barco. Precisam ser solidários portanto, mas quando soa a hora da mudança, o medo se instala e todos ficam assustados, reagindo cada um de uma maneira.
Entretanto, mesmo desafinados com os desafios da vida, é preciso continuar. E é sobre isso que trata o filme.
“O Último Concerto” é sensível, tem atores excelentes, bela música (trilha sonora do famoso Angelo Badalamenti) e muito material para reflexão.
É um filme para quem gosta de música e de pensar sobre a natureza humana.