terça-feira, 29 de março de 2016

Batman vs Superman: A Origem da Justiça


“Batman vs Superman: A Origem da Justiça”-“Batman vs Superman: Dawn of Justice”, Estados Unidos, 2016
Direção: Zack Snyder

Num mundo violento, as pessoas, além de ficarem paranoicas, precisam acreditar que existe alguém que os protegerá. Um “salvador da pátria”, messiânico, é o perigo que pode surgir e confundir os desprotegidos.
A tentação de aderir fanaticamente a quem promete uma solução para o desamparo pode levar ao engano. E isso serve tanto para as pessoas do nosso mundo, como para as cidades de Metropolis e Gotham, onde vivem  Superman e Batman.
Na verdade, a proclamada luta do título do filme entre os dois tem como base esse perigo ao qual aludi acima.
O confronto entre eles é algo preparado durante todo o filme do diretor Zack Snyder. Vai ser o ápice final?
Na verdade, o personagem principal é Batman (Ben Affleck, arrasando no papel), o vigilante, que começa a ter dúvidas sobre quem é o Superman.
Sabemos que o menino Bruce Wayne perdeu os pais num assalto, quando saiam do cinema. A cena do bandido atirando, em câmara lenta, as pérolas do colar da mãe voando e rolando pela calçada, o pai estendendo a mão para ele, impotente, nunca será esquecida pelo menino traumatizado.
Em meio ao cortejo que levava seus pais para a igreja e o serviço fúnebre, ele não aguenta e sai correndo pelo bosque. Numa queda espetacular, cai na caverna dos morcegos, que serão sua marca no futuro.
Criado pelo mordomo da família, Alfred Pennyworth (Jeremy Irons, secretamente soberbo), seu fiel companheiro e conselheiro de tantas lutas contra criminosos, Bruce Wayne é agora o dono da empresa que leva o seu nome. Maduro, não é mais o “playboy” da juventude. Menos impetuoso, e mais cético, tem pesadelos que substituiram os sonhos da infância, quando os morcegos o levavam para a luz.
Ao presenciar na rua a destruição causada pela luta do Superman contra o vilão Zod, em cenas onde prédios são destruídos e uma nuvem de detritos preenche o ar (fazendo lembrar do 9/11), Bruce Wayne consegue salvar algumas pessoas mas o prédio onde fica sua empresa é atingido e ele começa a pensar sobre o que está acontecendo.
Passam-se 18 meses e um episódio envolvendo o Superman e sua namorada Lois (Amy Adams), que fazia uma reportagem na África, causa morte de civis num tiroteio entre guerrilheiros.
Superman (Henry Cavill, bem apagado e inexpressivo), que era visto como um protetor, passa a ser chamado de vilão pela imprensa e televisão. E as multidões que o adoravam começam a suspeitar que um ser alienígena não pode ser boa coisa mesmo. A xenofobia, citada de passagem e a fé cega que cede à desconfiança fanática, são temas conhecidos no mundo atual. No mundo dos heróis, atinge o Superman.
Tudo isso é fomentado nos bastidores pelo vilão Lex Luthor, interpretado por um Jesse Eisenberg de cabelos revoltos caindo nos olhos, roupas transadas, trejeitos e requebrados estranhos e uma fala de frases entrecortadas. Bem surtado.
E claro, a ação é de doer nos olhos. Tanto na luta dos dois heróis quanto nas cenas finais contra o gigante Apocalipse. Incluída numa ponta, a Mulher Maravilha, a sedutora israelense Gal Gadot, mostra sua beleza e prepara a plateia para seu próximo filme.
“Batman vs Superman: A Origem da Justiça” é o primeiro de uma série que reúne vários heróis na “Liga da Justiça”, que vem para as telas, ainda sem data.
Apesar de muito longo nos seus infindáveis 153 minutos, o filme de Zack Snyder tem cenas atraentes, que não precisavam de 3D e um roteiro que tem ideias boas, nem sempre compreensíveis, entretanto, pelo modo como se desenrola a narrativa.

Mas os fãs vão gostar.

domingo, 27 de março de 2016

Cemitério do Esplendor


“Cemitério do Esplendor”- “Rak Ti Khon Kaen”, Tailânda, Reino Unido, Alemanha, França, Malásia, 2015
Direção: Apichatpong Weerasethakul

Se você é daquelas pessoas que adoram cinema, vai a festivais e se interessa por filmes asiáticos, já deve ter ouvido falar desse diretor tailandês, de nome impronunciável para nós, ocidentais e que, por isso é conhecido como Joe. Ele ficou famoso quando seu filme “Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2010.
“Cemitério do Esplendor” é o novo filme desse diretor de 45 anos, original e criativo.
Seu país, a Tailândia, é instável politicamente e agora, depois de um último golpe de estado em 2014, instalou-se lá uma ditadura que impede a liberdade de expressão. Esse dado é importante para entender o filme e compreender porque Apichatpong diz que ele é como se fosse um adeus a seu país.
Em uma entrevista que aconteceu no último Festival de Cannes, onde seu filme passou na mostra não competitiva, “Un Certain Régard”, Joe conta que voltou para a região onde nasceu, Khon Kaen, para filmar “Cemitério do Esplendor”. E acrescenta que essa região da Tailândia é muito espiritualizada, influência da proximidade dos impérios do Camboja e Laos, marcada também pelo animismo “khmer”. Ele lamenta que tudo isso está em vias de desaparecer por causa do governo autoritário.
Filho de médicos, o diretor morava no hospital onde seus pais trabalhavam e conta que primeira ideia para o roteiro de seu filme veio de um fato ocorrido no norte do país onde soldados foram colocados em quarentena num hospital, porque sofriam de uma doença desconhecida. Isso despertou nele memórias antigas.
Em seu filme, um pequeno hospital, instalado num prédio que tinha sido antes uma escola, tem uma enfermaria onde soldados dormem, quase o tempo todo. Ninguém sabe o porquê daquela narcolepsia.
Instalam máscaras nesses soldados e um tubo de luz que muda de cores. Alguém diz que os americanos usaram a cromoterapia para melhorar o sono e os sonhos de pacientes, evitando pesadelos.
Uma voluntária, Jenjira (Jenjira Pongpan Widner, atriz favoritado diretor), uma senhora que anda de muletas, encontra um caderno onde Itt (Banlop Lomnoi), um dos soldados adormecidos, faz anotações e desenhos quando acordado. Ele não recebe visitas e Jen começa a cuidar dele. Aos poucos uma conexão muito forte se forma entre eles. Ela começa a sonhar também e muitas vezes não sabemos se a cena é um sonho ou a realidade.
Outra personagem é Keng (Janinpatra Ruengram), uma mocinha que é vidente e comunica-se com os adormecidos, comunicando os sonhos aos parentes dos soldados. Dizem que ela teria sido procurada pelo FBI para trabalhar para eles mas ela se recusara. Aliás os americanos estão presentes no filme, sendo citados várias vezes.
Jen descobre que o terreno onde está o hospital abriga em suas entranhas um antigo cemitério real e a vidente acredita que os reis drenam a energia dos soldados para continuar seus combates milenares.
São encantadoras as cenas em que a vidente descreve para a senhora Jen, o palácio real, que só ela vê. As duas andam pelo parque do hospital e o espectador, que se deixar levar, vai também “ver”os espaços luxuosos do palácio real, hoje uma terra com folhas secas, estátuas de concreto quebradas e todo tipo de lixo. A decadência do presente convive com o luxo do passado nas diferentes camadas do filme.
O sono dos soldados também pode ser uma metáfora paraa depressão, a inércia, o não fazer nada perante um regime político ameaçador. A retroescavadeira que trabalha no terreno do hospital, furando a terra, é a presença misteriosa desse governo autoritário. O que faz? Não sabemos.
E, no entanto, o diretor consegue fazer sonhar o espectador mais sensível, que lê metáforas e intui, mesmo que não conheça nada sobre a Tailândia, que o diretor fala de seu país no passado e no presente.
E as imagens de Diego Garcia, belas e estáticas, estimulam a meditação e o transporte para um lugar exótico e misterioso, onde é normal as princesas descerem de seus altares e desfilarem entre os humanos, mortas mas presentes e falantes. A conversa delas com a senhora Jen é uma cena inesquecível.

Quem gosta de filmes para meditar e pensar na vida real e na dos sonhos, não perca o surreal “Cemitério do Esplendor”.

sábado, 26 de março de 2016

Conspiração e Poder


“Conspiração e Poder”- “Truth”, Estados Unidos, 2016
Direção: James Vanderbilt

O pano de fundo dessa história real, acontecida há 11 anos atrás, é a reeleição de George W. Bush em 2004, para a presidência dos Estados Unidos. E tudo se passa com a equipe de repórteres do mais famoso programa de notícias da TV americana, o extinto “60 Minutos” da CBS, que tinha na época como âncora, Dan Rather (Robert Redford).
O filme, adaptado do livro “Truth or Duty - The Press, the President and the Privilege of Power”, da ex-produtora da CBS News, Mary Mapes, conta a história do ponto de vista dela (Cate Blanchett).
Um dos repórteres da equipe que produziu a reportagem com a notícia-bomba que o presidente Bush teria escapado do serviço militar para não ir para o Vietnã, conta que a produtora Mary Mapes se inteirara de tudo isso em 2000 mas que a produção do programa não foi para a frente porque Mary perdeu sua mãe naquela época. Recordem vocês que foi nesse ano a eleição de George W. Bush que concorria com Al Gore para a presidência.
Tudo se baseava em conversas e documentos que Mary conseguiu de sua fonte, que davam conta de que, embora alistado na Guarda Nacional nos anos 70, Bush não fora avaliado por não estar presente em nenhuma das ocasiões em que foram feitas tais avaliações. Ora, esse tratamento diferenciado, que não só Bush mas outros rapazes ricos conseguiram, era uma blindagem para tirá-los da lista dos que iriam lutar na guerra.
Era um escândalo para os americanos cujos filhos morreram ou voltaram estropiados física e mentalmente dessa guerra, onde o país fora derrotado pelo povo vietnamita. E tudo isso a meses da pretendida reeleição de Bush, atual presidente dos Estados Unidos, responsável pela guerra contra o Iraque.
Desde o recebimento dos documentos até conseguir produzir o programa, com atestados de especialistas confirmando sua validade, passaram-se 15 dias. Mas depois da vitória de Mary Mapes, viria um pesadelo que ela, nem ninguém, poderia imaginar.
Cate Blanchett, 47 anos, dá vida e energia à produtora do programa da CBS, encarregada de pesquisar notícias, buscar provas e conseguir fontes seguras, ajudada por uma equipe jovem que ela mesma escolhera: Mike Smith (Topher Grace) e Lucy Scott (Elizabeth Moss). Casada e com um filho pequeno, era vista como alguém que tivera uma infância difícil com um pai tirano e violento. E daí sua ligação paternal com o âncora do programa, bem mais velho que ela.
Dan Rather tinha a responsabilidade de levar a notícia ao telespectador. Era a cara do programa e confiava em Mary de quem era próximo. ”60 Minutos” gozava de grande credibilidade e era assistido por milhões de americanos. No filme, Robert Redford , 80 anos, empresta carisma necessário a essa figura lendária da TV americana.
Como “Spotlight”, o ganhador do Oscar de melhor filme do ano, que trata de jornalismo investigativo em jornal, “Conspiração e Poder” retrata o mesmo na TV. Só que aqui há uma derrota.
Mary Mapes foi demitida da CBS com sua equipe e Dan Rather aposentou-se meses depois. A notícia incomodava o poder e o destino deles estava selado. Bush ganhou as eleições.
O filme do novato James Vanderbilt tem um ritmo acelerado e trata de um assunto que não é familiar ao público brasileiro. Assim mesmo, vale a pena ver a atuação de dois grandes do cinema, mostrando que nem sempre a verdade interessa aos poderosos.
Aliás, nunca ninguém conseguiu provar que a história contada por Mary Mapes fosse falsa.

terça-feira, 22 de março de 2016

Meu Amigo Hindu


“Meu Amigo Hindu”- “My Hindu Friend”, Brasil, 2015
Direção: Hector Babenco

Falar de si mesmo no cinema, acontece frequentemente com diretores. Principalmente com os que escrevem também os roteiros. Mas, isso é sempre algo implícito, nunca confessado abertamente como fez Babenco, em letras brancas na tela negra: “aconteceu comigo” e “conto da melhor maneira que sei contar.” Ou seja, fazendo ficção, reinventando a realidade. Portanto, “Meu Amigo Hindu”, não é um filme autobiográfico, apesar de inspirar-se na vida real.
Willem Dafoe, o grande ator americano, conheceu Hector Babenco nos anos 80 mas foi só agora que deu certo a parceria e ele aceitou fazer Diego Fairman, no último filme do diretor argentino-brasileiro.
Daí o elenco todo ter que falar inglês, o que foi difícil e até prejudicou a naturalidade da interpretação de alguns atores. Para os da plateia, que os conhecem falando  português, soa estranho e talvez até mesmo desconcertante e isso prejudica tanto quem fala quanto quem ouve. Cria um distanciamento que nos distrai. Principalmente nas cenas iniciais do casamento.
Mas foi inevitável, já que Dafoe não fala português. E ele é o centro de tudo que acontece. E como interpreta bem o que acontece de cara: a raiva que acompanha o temor do diagnóstico que indica um transplante de medula.
No espelho, calvo por causa da quimioterapia que o está matando ao invés de curá-lo, ele pergunta para sua mulher Livia (a bela Maria Fernanda Cândido):
“- O que foi que eu fiz?”
E é um homem amargo e ressentido com a vida que vai para os Estados Unidos, submeter-se a um tratamento experimental, do qual não se sabe se ele vai sair vivo.
Livia entra e sai, fica ao lado dele o tempo todo, mas não recebe um carinho de agradecimento.
Babenco dirige bem os atores que fazem a equipe do hospital mas o foco é sempre o rosto de Dafoe, onde se estampa a dor, a agitação da morfina, o medo de morrer. É um homem só, que enfrenta tudo aquilo que fazem no seu corpo, tentando fazer nascer um outro sistema imunológico, uma outra vida.
Mas o roteiro traz momentos de respiração com cenas de humor negro criativas, envolvendo as visitas de um funcionário da Morte (Selton Mello, ótimo) e sua companheira surreal (Vera Barreto Leite). Falam bobagens, jogam xadrez e Dafoe acorda aliviado. Ainda não foi daquela vez.
O título do filme, que fala de um amigo hindu, justifica-se na salinha de quimioterapia, onde Diego tem como companheiro um menino que joga video-game e não se interessa por ele, até que o adulto começa a contar histórias que distraem tanto ele mesmo como o menino. A magia da imaginação os distancia daquele hospital.
Neste momento do filme desaparece o diretor mal humorado e há doçura na voz que conta histórias.
A mesma doçura que havia na fala com o filho de sua mulher Livia, quando se despede dele porque vai se tratar longe dali. Ele leva o brinquedo do menino consigo e também vai com ele para aquela salinha, onde o brinquedo é uma ponte para chegar no pequeno paciente.
O menino que está vivo em Diego é sua melhor parte e vai ajudá-lo nessa luta pela sobrevivência, na selva onde a morte espreita.
Os dois, vestidos de soldados, atirando granadas e metralhando o inimigo, representam a si próprios e a tarefa que vieram enfrentar naquele lugar.
Mas há doçura e também encantamento no olhar de Dafoe/Diego quando ele descobre Barbara Paz, no papel dela mesma (mulher de Babenco na vida real). Da plateia assistindo ao espetáculo solo dela, depois nas conversas a pé pela cidade e na cena da primeira noite de amor, há um homem que se recupera, que quer viver e que esquece medo e rabujice.

“All you need is love”, como já dizia a canção.

quinta-feira, 17 de março de 2016

A Linguagem do Coração


“A Linguagem do Coração”- “Marie’s Story”, França 2014
Direção: Jean-Pierre Améris

Dizem que a fé move montanhas. O que esse filme mostra é que a compaixão pelo outro faz milagres.
Marie Heurtin (interpretada por Ariana Rivoire, atriz sensível, que é surda), nasceu cega e surda, no fim do século XIX, no campo francês, perto de Poitiers. Seus pais, gente humilde, conservaram a filha com eles enquanto puderam. Mas, chegando a adolescência, um médico aconselha que a internem num sanatório, como era comum naquela época.
Mas a história de Marie vai ser diferente. Perto de onde moravam os Heurtin, havia um convento de freiras que educavam meninas surdas, ensinando a linguagem dos sinais. Esperançoso no que poderia ser um lar para sua filha, o pai a leva numa carroça para o convento.
A menina desgrenhada, vestida num camisolão e sem sapatos, vinha amarrada. Mas seu rosto bonito, virado para a luz do sol, mostrava uma felicidade inesperada, procurando com as mãos o calor.
Logo que é desamarrada, entretanto e o pai some com a Superiora, foge assustada, correndo, com as freiras atrás.
Com insuspeitada agilidade, sobe numa das árvores do pomar, depois de pular e cair nos canteiros da horta.
A Superiora manda que uma das irmãs (Isabelle Carré, atriz poderosa) vá até ela e a traga para baixo.
A freira magrinha, muito branca, de olhos azuis e expressão doce, consegue alcançar a menina. E é com extremo cuidado e delicadeza que ela, suavemente, toca a mão de Marie.
Algo aconteceu porque a menina também estende a mão e toca o rosto da irmã Marguerite. Mas logo um grito de uma das freiras assusta a outra e faz cessar aquele momento de proximidade.
Severa, a Superiora diz que ali não é lugar para Marie, surda e cega, não apenas surda como as outras.
Mas ela havia causado uma forte impressão na irmã Marguerite que se perguntava:
“Como será viver num mundo escuro e silencioso...?”
Bem que a Superiora tentou dissuadí-la, lembrando Marguerite de sua doença incurável mas a freira, com doçura, insiste que, se a morte dela era certa e para logo, melhor seria tentar ajudar alguém antes do inevitável.
E ela vai atrás de Marie, que mora numa edícula da casa dos pais. Ao primeiro toque da freira, Marie reage com violência. Ela é um bicho selvagem.
Os pais, esperançosos de que a filha pudesse ser bem tratada no convento, deixam a freira levá-la. A mãe entrega um pequeno canivete a Marguerite dizendo:
“- É seu preferido. Gosta mais dele do que das bonecas.”
E lá vai Marie nos ombros do pai até que ele a amarra com uma correia no pulso da freira. Não é fácil arrastar Marie, que resiste.
Mas quando param num riacho, a freira observa a mudança no rosto da menina. Em contato com a água fresca, seu rosto se ilumina. No mundo sensorial de Marie, a natureza era uma companhia bem-vinda. O calor do sol e o frio da água rompiam a barreira que existia entre Marie e o mundo das pessoas.
Foi preciso muita paciência, perseverança, força e esperança para que Marie deixasse Marguerite ensinar-lhe todas as pequenas coisas que ela desconhecia e, portanto, temia. Levou tempo mas  o prazer de um banho quente, o toque macio de roupas limpas e cheirosas, seu cabelo penteado, foram as primeiras conquistas.
E a inteligência emocional de Marguerite ajudou-a a encontrar o objeto que serviria de ponte para aquilo que, depois, ela chamou de “explosão da linguagem”.
Não há nenhuma pieguice em “A Linguagem do Coração”. As interpretações são cativantes e o amor de Marguerite por aquela que ela chamou de “filha da minha alma”, é o que produziu o “milagre”.
Essa história verdadeira de Marie Heurtin, lembra a de Helen Keller, também cega e surda, mas nascida cinco anos antes, em uma rica família americana. O filme “O Milagre de Anne Sullivan” de1962, dirigido por Arthur Penn, foi um grande sucesso de público.
Mas aqui, ao invés de técnicas de aprendizagem, encontramos duas sensibilidades que se tocaram e uma ponte de afeição que leva Marie à palavra e seu significado. O amor liberta sua vontade de aprender a comunicar-se e de entender o mundo.

Um filme delicado que renova nossas esperanças na natureza humana.



terça-feira, 15 de março de 2016

Tudo Vai Ficar Bem


“Tudo Vai Ficar Bem”- “Everything Will Be Fine”, Alemanha, Canadá, França, Suécia, Noruega, 2015
Direção: Wim Wenders

Quanto tempo dura o luto quando alguém se envolve, sem querer, num acidente e mata uma pessoa?
Não é uma situação banal. Como também não é fácil dizer quando “Tudo Vai Ficar Bem”, que é o título do filme do consagrado diretor alemão Wim Wenders.
Provavelmente isso vai depender da saúde mental da pessoa, das cicatrizes que o trauma deixou, das circunstâncias que envolveram o acidente e o quanto a pessoa se sente culpada. E uma das complicações disso é saber que a culpa pode ser alimentada por fontes inconscientes.
Responder a essa pergunta foi o que quis fazer Wim Wenders nesse seu último filme, rodado no Canadá.
Tudo começa porque o escritor de uns quase 40 anos, Tomas Eldan (James Franco) está sofrendo de um bloqueio criativo. Não consegue levar adiante seu livro, nem na cabana isolada e rústica onde se enfiou, no meio do rio gelado, à procura de inspiração.
Sua relação com Sara (Rachel McAdams) também não vai bem. Tinham discutido à noite pelo telefone. Toca o telefone de manhã e ela quer que ele venha para casa. Ele parece reticente.
Guiando pela estradinha com a neve caindo, ele parece preocupado e distraído. O limpador de para-brisa não funciona direito. Liga o rádio, acende o cigarro, olha para ver quem o chama no celular. É Sara. Não atende. Abre um pouco a janela e joga o cigarro fora.
Nisso, vemos um trenó de criança atravessar a frente do carro em velocidade. Um baque.
Tomas para e sai do carro devagar.
Um menino pequeno está sentado no chão. Atordoado mas não parece ferido. Tomas vê uma casa próxima e deduz que é a casa do menino que está mudo. Toca seu celular. Ele põe a criança nos ombros e puxa o trenó.
“- Eu ia mesmo ligar pra você. Mas é que aconteceu uma coisa... Não... Tudo vai ficar bem. Você está certa. Te vejo no jantar.”
Desliga e diz para o menino sobre seus ombros:
“- Tudo vai ficar bem. Foi você que fez o boneco de neve? Sozinho?”
Bate na porta e aparece uma moça (Charlotte Gainsbourg) que deve ser a mãe do menino:
“- Tivemos um pequeno acidente mas tudo vai ficar bem. Acho que ele ficou um pouco assustado...”
“- Nicholas? Onde está?” pergunta ela assustada. E sai correndo ladeira abaixo até o carro. Ele segue atrás e ouve seu grito de desespero.
Num pequeno espaço de tempo, desde o acidente até aqui, Tomas falou três vezes “tudo vai ficar bem”, como uma espécie de refrão para sossegar a namorada dele, o menino, a mãe e principalmente ele mesmo.
Mas quando é que “tudo vai ficar bem”?
Vai demorar. No filme passam-se 10 anos. E só depois de acontecer muita coisa é que parece que tudo vai ficar bem. Claro que há ironia nesse título.
Aos 70 anos, bacharel em medicina, filosofia e artes, Wim Wenders tem muito a dizer e o faz à sua maneira em sua extensa filmografia: “Paris, Texas”1984, “Asas do Desejo”1987, “O Céu de Lisboa” com Manoel de Oliveira em 1994, “Buena Vista Social Club”1999, “Pina” 2011, em 3D, “O Sal da Terra”2014, para citar poucos.
Usou o 3D para filmar “Tudo Vai Ficar Bem” mas as cópias que estão nos cinemas brasileiros são 2D.
Em entrevistas que deu no Festival de Berlim 2015, o diretor explicou que o roteiro, do jovem norueguês Bjorn Olaf Johannesson, chamou sua atenção porque o escritor Tomas incorpora sua tragédia pessoal à sua escrita. Sua arte o ajuda a aproximar-se de algo que quer esquecer porque é muito terrível a morte daquela criança. Há um lado terapêutico em escrever o livro “Inverno”.
A música orquestrada do maestro Alexandre Desplat é ouvida com parcimônia. Às vezes só notas num piano ou um lamento de violinos.

“Tudo Vai Ficar Bem” é um filme intimista, que usa como título uma frase dita para consolar e evitar o silêncio preenchido pela pergunta “será que tudo vai ficar bem?”

quarta-feira, 9 de março de 2016

Boa Noite, Mamãe


“Boa Noite, Mamãe”- “Ich Seh Ich Se”, Áustria, 2014
Direção: Severin Fiala e Veronika Franz

Uma casa de arquitetura contemporânea, frente a um lago, numa bela paisagem campestre, vazia da presença de seres humanos. Ali vai acontecer uma história que pode ser vista de diversas maneiras.
Uns vão reagir ao filme fazendo com que o elemento medo rotule-o como “terror”. Outros verão na história um “non sense” próprio de um conto surrealista. Outros ainda, ficarão intrigados com o que acontece e vão procurar uma explicação racional para tudo aquilo.
Talvez todas as abordagens citadas tenham sua vez nessa fábula envolvendo criança e mãe, dirigida pela dupla Severin Fiala e Veronika Franz.
Trata-se, principalmente, de uma história que envolve a imaginação infantil recriando um mundo. Aconteceu uma perda dolorosa que atingiu aquela família abalando as mentes fragilizadas. Quando tudo começa, a tragédia já aconteceu. Mas não há sinal dela.
Os gêmeos de 9 anos, Lukas e Elias (interpretados pelos irmãos Lukas e Elias Schwarz), estão no melhor dos mundos, tomando banho no lago, explorando a floresta e brincando.
Quando a mãe (Susanne West) aparece, ela está com o rosto oculto por bandagens. Parece que se submeteu a uma operação plástica. Estética ou reparadora? Não sabemos.
Os meninos estranham essa mãe que voltou mudada.
Não é mais aquela pessoa meiga e doce que cantava para eles dormirem. Está nervosa, exige silêncio na casa e diz que precisa recuperar-se.
Mas há um comportamento extremamente perturbador. Ela evita olhar ou falar com Elias. É como se ele não existisse. Lukas tenta chamar a atenção da mãe para o irmão mas sem êxito. E ninguém fala nada sobre o que aconteceu antes de acompanharmos a história. Será que o gêmeo Lukas alucina a presença do outro, Elias?
E, cada vez mais, os gêmeos se convencem, por pequenos detalhes, que esta que está alí não é a mãe deles. E, portanto, precisam arrancar uma confissão da impostora e descobrir onde está a verdadeira mãe deles. Custe o que custar.
Perdas dolorosas levam as pessoas a comportar-se de maneiras loucas. Há uma negação do motivo que fez explodir a insanidade, porque é muito duro e terrível o que aconteceu. Como não existe uma possibilidade de aceitação da verdade, reconstrói-se na mente uma outra realidade, um outro mundo.
Os gêmeos estranham a mãe, ela não é mais a mesma. É outra. Ela diz que tem que se recuperar. Ou ser recuperada?
O que foi que aconteceu com essa família sem pai? Não há sinal dele. Então, a autoridade paterna vai aparecer de maneira terrível e perversa.
Não havendo pai e a mãe sendo falsa e perigosa, os gêmeos vão instituir o caos, como castigo.
A fábula faz menção à loucura derivada da perda, a descaracterização do mundo pela insanidade, a perda da identidade e ao aparecimento da perversidade como castigo imposto à “Mãe Terrível”, aquela que dá a vida e a morte.
Em contraste com o que se passa no interior das mentes envolvidas, os cenários são belos mas a fotografia fria e brilhante de Martin Gschlacht, ajuda a criar um clima de tensão.

Para mim, “Boa Noite, Mamãe” é uma releitura, para nossos tempos, das histórias dos Irmãos Grimm, tão terríveis ou mais ainda que essa fábula contemporânea que teatraliza angústias insuportáveis, dificilmente digeridas.

domingo, 6 de março de 2016

Presságios de um Crime


Presságios de um Crime”- “Solace”, Estados Unidos, 2015
Direção: Afonso Poyart

Quando o crime se apresenta com uma razão humanitária, ficamos na dúvida em condená-lo?
Essa é a premissa básica de “Presságios de um Crime”, filme que tem uma história que sugere que um “serial killer” pode não ser um psicopata mas um consolo (“solace” em inglês).
E quando o roteiro ainda traz um médico vidente que trabalhou muitos anos para o FBI, até que se isolou do mundo, por causa da morte da filha, temos um filme de suspense e mistério que prende o espectador.
O agente do FBI Joe Merriweather (Jeffrey Dean Morgan), que é amigo do dr John Clancy (Anthony Hopkins, ótimo ator, que leva o sorriso do dr Lecter por onde vai), tenta trazê-lo para investigar os crimes de um “serial killer”, que não deixa pistas e que tem uma estranha assinatura: os assassinados, que não tem conexão aparente, morrem mortes indolores, sem sofrimento.
A psiquiatra Katherine, interpretada pela australiana Abbie Cornish, não acredita no vidente até ter provas de que ele conhece tudo sobre a vida e a morte dos que entram em contato com ele.
Ninguém sabe que John Clancy tem um segredo, que
teme ser revelado. Por isso se isolou no campo. Mas ninguém foge do que é. E do que fez.
O assassino (Colin Farrell) vai brincar de gato e rato com o FBI, visando justamente o dom do dr Clancy. Parece que ele também adivinha o que John vai ver em suas visões, que são o ponto forte desse filme.
O brasileiro de Santos, Afonso Poyart, é o diretor do filme e foi chamado para Hollywood por causa de “Dois Coelhos”(2012), muito elogiado pela crítica.
Aqui, ele mantém sua câmara nervosa, participando da ação muito de perto. E cria as visões do médium com uma beleza de cores e detalhes originais que enriquecem a trama misteriosa. É um visual de estética contemporânea, que apela para o sensual mas não esquece do atrativo do sangue fresco. Tudo rodado em câmara lenta ou muito rápida, desdobrando os personagens na tela por causa do elemento tempo, importante nas visões do médico.
O roteiro contou com a participação de vários nomes porque, a princípio, deveria ser uma continuação de “Seven”. Engavetado, foi trazido à luz pelos que assinam a história e os diálogos: Sean Barley, Ted Griffin  com toques de Jamie Vanderbilt e Peter Morgan.
A edição do filme, realizada com brilho pelo também brasileiro Lucas Gonzaga, é um requinte a mais.
Mas “Presságios de um Crime”, rodado em 2013, não foi bem distribuído, só chegando agora aos nossos cinemas e sem estreia nos Estados Unidos.
Vamos seguir a carreira de Afonso Poyart e torcer para que ele emplaque outros bons filmes em sua passagem por Hollywood.
“Presságios de um Crime – Solace” é um bom entretenimento.



sexta-feira, 4 de março de 2016

Nossa Irmã Mais Nova


“Nossa Irmã Mais Nova”- “Our Little Sister”- “Umimachi Diary”, Japão, 2015
Direção: Hirokasu Kore-Eda

Conviver com as irmãs Koda, ao assistir “Nossa Irmã Mais Nova”, é partilhar de momentos de delicadeza, feminilidade, beleza e humor, mas também perceber o amor e o ódio subterrâneos, a culpa à espera de perdão, o egoísta julgamento severo só para os outros e outros sentimentos humanos universais.
A diferença é que aqui há graça e calma.
Três irmãs moram numa casa antiga e acolhedora, que foi da avó delas, em Kamakura, cidade litorânea, perto de Tóquio. No jardim há uma árvore que foi plantada quando a mãe delas nasceu. A ameixeira tem 55 anos e produziu  frutos para o licor que três gerações de mulheres compartilharam. Na cozinha ainda existem frascos da época da avó das irmãs Koda. É o mais saboroso.
A mãe delas se foi quando se separou do pai das meninas ainda muito pequenas e é a mais velha, Sachi, 29 anos, (Aruka Ayase, bela como uma boneca de porcelana), que cuida da casa e das irmãs, além de trabalhar como enfermeira num hospital.
A segunda irmã, Yoshino, 22 anos, (Masami Nagasawa) adora uma cerveja e tem um namorado atrás do outro. Ela trabalha num pequeno banco, atendendo o público. E a terceira, Chika, 19 anos, (Kaho), vende artigos numa casa de esportes.
Confrontadas com a notícia da morte do pai, que não viam há 15 anos, partem para o enterro em Yamagata, cidade mais ao norte. E lá, ficam conhecendo a meia-irmã mais nova, filha da mulher que “acabou com o casamento da mãe delas”, segundo as palavras da tia. A mãe de Suzu, de 13 anos, morrera muito cedo e o pai se casara de novo, com uma mulher que já tinha um filho.
A irmã mais nova é doce, delicada, educada e logo conquista as irmãs. Foi ela que cuidou do pai delas até o fim, já que a madrasta é uma pessoa egoísta e não disponível.
Quando o trem parte com as três irmãs, Suzu (Suzu Hirose) escuta o convite da irmã mais velha, que percebeu que ali não era mais um lugar para a irmãzinha:
“- Venha morar conosco. A nossa casa é velha e grande. Pense nisso!”
Mas Suzu, abre um sorriso e responde imediatamente, antes que a porta do trem se feche:
“- Eu vou!”
E corre atrás do trem, acenando para as irmãs.
O diretor Kore-Eda adaptou a história das quatro irmãs de um mangá (história em quadrinhos) muito conhecido no Japão, de Akimi Yoshida, “Diário de uma cidade à beira-mar”. E visita o universo feminino pela primeira vez. Seu filme anterior, que Ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2013, “Pais e Filhos”, centrava-se no papel de pai e filho. Mas agora é a vez de mostrar o papel da mãe. Um personagem do filme diz:
“- É difícil quebrar o elo entre mãe e filha.”
E a história mostra que nem sempre é a mãe que cuida dos filhos. E também que, quando uma menina diz que odeia a mãe que morreu, é porque queria ficar mais tempo com ela. E outra ainda, só pede perdão por não ter sido uma boa filha, defronte ao túmulo da mãe, na frente da própria filha para a qual também não foi uma boa mãe.
Ou seja, ser uma boa mãe não é algo instintivo. Tem a ver com a personalidade da mulher, que não obrigatoriamente se sente maternal.
Certamente algumas pessoas vão se entediar com o filme. Mas outras vão aproveitar para receber a porção de doçura e beleza, ao som da trilha sonora de Yoko Kannoi,

que o filme de Kore-Eda proporciona. Não estamos precisados disso nesse mundo apressado e duro em que vivemos?