domingo, 4 de setembro de 2016

Aquarius


“Aquarius”, Brasil, 2016
Direção: Kleber Mendonça Filho

Ouvimos o barulho do mar. E, de repente, Taiguara com seu vozeirão canta:
“Hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo...”
No fim do filme, essa música é o fecho.
E o preâmbulo de “Aquarius” passa-se em Recife, 1980.
Na praia de Boa Viagem, um carro faz estrepulias na areia.
Depois, Clara, 30 anos, cabelos bem curtinhos, emociona-se na festinha de aniversário da tia Lúcia (Thaia Perez), que sempre foi uma batalhadora. É louvada pelos sobrinhos que dizem que a vida dela daria um poema, um livro, um filme.Viveu a revolução sexual e combateu a ditadura.
Clara, enfrentou um câncer, pesadelo em seu corpo e agora com o marido e filhos parte para viver a vida.
O tempo dá um pulo e, no presente, entramos pelo apartamento de Clara, à beira mar, decorado com objetos escolhidos, livros, álbums de fotos e uma coleção de vinil. Uma rede perto da janela convida à languidez.
E ela ilumina a tela. Sonia Braga aparece como a Clara de mais de 60 anos mas com um corpo sedutor e o belo rosto que ela oferece à câmara, soltando os longos cabelos negros e alongando-se como um gato.
Conversa com a empregada de anos sobre o almoço e vai para a praia.
O salva-vidas Roberval (Irandhir Santos) vigia enquanto ela entra na água, sem medo de tubarão. Some nas ondas verdes.
Clara é viúva há 17 anos, de um marido amado, seus três filhos são adultos. O mais velho está casado e tem um bebê, a filha do meio (Maeve Jinkings) separou-se e tem um menino, Pedro e o mais novo é gay assumido.
Ela é jornalista aposentada, foi crítica musical e escreveu um livro sobre Villa Lobos. Vive num mundo de escolhidas sonoridades.
Clara passou a vida inteira naquele predinho de dois andares, onde criou os filhos, amou o marido e lutou contra um câncer no seio. Cercado por edifícios modernosos, o “Aquarius” é uma raridade, uma memória de tempos de outrora e é o chão de Clara. Mistura-se com sua identidade.
Ela modificou a planta original numa reforma e o apartamento é o seu território, que ela defende com garra das ofertas de compra de uma construtora.
O “Aquarius” está vazio. Todos se foram, rendidos ao mercado e só restou Clara, agarrada com teimosia às suas paredes como a uma tábua de salvação.
Até os filhos e principalmente a filha, fazem uma propaganda sutil a favor da venda, dizendo-se preocupados com a segurança da mãe. Mas ela resiste. E começa um periodo de baixarias contratadas pela construtora para que ela se vá.
Clara resiste e luta como fez a vida toda. E compreendemos que ela tem no sangue a rebeldia contra os que querem impor à força sua vontade. Como tia Lúcia.
Para Clara, que fala baixo e não incomoda ninguém, a resistência passiva frente ao poderio econômico é uma questão de honra. E o final surpreende.
Muita gente se incomodou com o gesto dos atores em Cannes, segurando frases contra o governo atual. Mas o filme foi super elogiado e agradou à crítica internacional.
Vai para o Oscar representar o Brasil? Deveria.
Kleber Mendonça Filho, 48 anos, o diretor do também festejado “Som ao Redor” de 2012, em “Aquarius”, seu segundo longa de ficção, mostra com arte um retrato do Brasil, que não agrada a quem não gosta de ver expostas nossas feridas, como a desigualdade social, a tensão e a violência que isso provoca, a tendência a ignorar a preservação da memória das cidades e o modo escravagista como ainda são tratadas as empregadas domésticas. Mas como deixar de lado o que se vê?

“Aquarius” não é um filme abertamente político mas a resistência de Clara assusta, num belíssimo Davi e Golias.

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