domingo, 18 de janeiro de 2015

O Segredo das Águas


“O Segredo das Águas”- “Still The Water”, Japão, 2014
Direção: Naomi Kawase

Quem fala de vida, fala de morte.
E é com delicadeza que a diretora e roteirista Naomi Kawase, 45 anos, filma a morte de uma cabrinha branca. A princípio, a cena assusta, porque não estamos mais acostumados com ela. Mas depois, abrindo os olhos com cautela, percebemos que o velho de barba e cabelos brancos fez aquilo com o maior cuidado e precisão. Ele acaricia a pele cor de neve. Não há maldade em seu gesto mas necessidade e respeito.
Naquela ilha, o mar de ondas enormes e belíssimas, lembra o Japão dos furacões, tufões e tsunamis. A natureza alí pode ficar bravia. Mas é o homem que maltrata a natureza e mata com crueldade.
Como morreu aquele ser humano que aparece boiando na praia, costas tatuadas?
Kyoko (Jun Yoshinaga), uma adolescente que está de uniforme de colégio, observa o afogado, junto a outros, silenciosos.
“- Deve ter sido um acidente”, diz alguém. “Aqui na ilha não acontecem crimes.”
A mãe de Kyoko (Miyuki Matsuda) está morrendo e ela está apaixonada por Kaito (Niijiri Murakami), um colega da escola com quem percorre a ilha de garupa na bicicleta dele.
Amor e morte.O ciclo da vida se transmite da mulher-mãe para a filha que poderá ser mãe e assim por diante.
O filme “O Segredo das Águas”, rodado na ilha de Amami, sul do Japão, é um filme que fala sobre o xamanismo. A avó da diretora era uma xamã, um ser entre os deuses e os homens, ligado à natureza e seus mistérios. Foi ela que cuidou de Naomi e o filme a homenageia.
A mãe de Kyoko é uma xamã e sua morte é natural e comovente. Cercada por habitantes da ilha, eles cantam e tocam músicas para ajudá-la a morrer feliz. E assim, consolam-se com a certeza de que a morte faz parte da vida e está destinada a todos os seres vivos.
Já o primeiro amor, é, por vezes, difícil de viver. Há medos e contradições no coração dos jovens.  Principalmente nos que não aceitam em si e nos outros, os desígnios da natureza.
Kaito está preso à mãe pelos laços primitivos de um Édipo que não permite que ele viva sua própria vida.
E como são lindas as cenas aquáticas, com Kyoko e Kaito mergulhando de mãos dadas no mar transparente.
A diretora japonesa concebe seu filme de maneira a nos conduzir a pensar que fazemos parte intrínseca da natureza, nossa mãe e que só em comunhão com ela seremos completos.
Um filme simples e poético.

Lista dos indicados ao Oscar 2015



Será no dia 22 de fevereiro, em Los Angeles, a premiação mais aguardada por quem gosta de cinema. Na lista divulgada pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas  destacam-se os filmes "Birdman"e "O Grande Hotel Budapeste" com nove indicações, "O Jogo da Imitação" com oito e "Boyhood"empatando com "Sniper Americano"com seis indicações cada um.

Lista dos Indicados ao Oscar 2015
Veja, abaixo, a lista completa de indicados ao Oscar 2015:
Melhor filme
"Sniper americano"
"Birdman"
"Boyhood: Da infância à juventude"
"O grande hotel Budapeste"
"O jogo da imitação"
"Selma"
"A teoria de tudo"
"Whiplash"
Melhor diretor
Alejandro Gonzáles Iñárritu ("Birdman")
Richard Linklater ("Boyhood")
Bennett Miller ("Foxcatcher: Uma história que chocou o mundo")
Wes Anderson ("O grande hotel Budapeste")
Morten Tyldum ("O jogo da imitação")

Melhor ator
Steve Carell ("Foxcatcher")
Bradley Cooper ("Sniper americano")
Benedict Cumbertatch ("O jogo da imitação")
Michael Keaton ("Birdman")
Eddie Redmayne ("A teoria de tudo")
Melhor ator coadjuvante
Robert Duvall ("O juiz")
Ethan Hawke ("Boyhood")
Edward Norton ("Birdman")
Mark Ruffalo ("Foxcatcher")
JK Simons ("Whiplash")
Melhor atriz
Marion Cotillard ("Dois dias, uma noite")
Felicity Jones ("A teoria de tudo")
Julianne Moore ("Para sempre Alice")
Rosamund Pike ("Garota exemplar")
Reese Whiterspoon ("Livre")
Melhor atriz coadjuvante
Patricia Arquette ("Boyhood")
Laura Dern ("Livre")
Keira Knightley ("O jogo da imitação")
Emma Stone ("Birdman")
Meryl Streep ("Caminhos da floresta")

Melhor filme em língua estrangeira
"Ida" (Polônia)
"Leviatã" (Rússia)
"Tangerines" (Estônia)
"Timbuktu" (Mauritânia)
"Relatos selvagens" (Argentina)

Melhor documentário
"O sal da terra"
"CitizenFour"
"Finding Vivian Maier"
"Last days"
"Virunga"

Melhor documentário em curta-metragem
"Crisis Hotline: Veterans Press 1"
"Joanna"
"Our curse"
“The reaper (La Parka)"
"White earth"

Melhor animação
"Operação Big Hero"
"Como treinar o seu dragão 2"
"Os Boxtrolls"
"Song of the sea"
"The Tale of the Princess Kaguya"

Melhor animação em curta-metragem
"The bigger picture"
"The dam keeper"
"Feast"
"Me and my moulton"
"A single life"

Melhor curta-metragem em 'live-action'
"Aya"
"Boogaloo and Graham"
"Butter lamp (La lampe au beurre de Yak)"
"Parvaneh"
"The phone call"

Melhor roteiro original
Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo ("Birdman"
Richard Linklater ("Boyhood")
E. Max Frye e Dan Futterman ("Foxcatcher")
Wes Anderson e Hugo Guinness ("O grande hotel Budapeste")
Dan Gilroy ("O abutre")

Melhor roteiro adaptado
Jason Hall ("Sniper americano")
Graham Moore ("O jogo da imitação")
Paul Thomas Anderson ("Vício inerente")
Anthony McCarten ("A teoria de tudo")
Damien Chazelle ("Whiplash")

Melhor fotografia
Emmanuel Lubezki ("Birdman")
Robert Yeoman ("O grande hotel Budapeste")
Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski ("Ida")
Dick Pope ("Sr. Turner")
Roger Deakins ("Invencível")

Melhor edição
Joel Cox e Gary D. Roach ("Sniper americano")
Sandra Adair ("Boyhood")
Barney Pilling ("O grande hotel Budapeste")
William Goldenberg ("O jogo da imitação")
Tom Cross ("Whiplash")

Melhor design de produção
"O grande hotel Budapeste"
"O jogo da imitação"
"Interestelar"
"Caminhos da floresta"
"Sr. Turner"

Melhores efeitos visuais
Dan DeLeeuw, Russell Earl, Bryan Grill e Dan Sudick ("Capitão América 2: O soldado invernal")
Joe Letteri, Dan Lemmon, Daniel Barrett e Erik Winquist ("Planeta dos macacos: O confronto")
Stephane Ceretti, Nicolas Aithadi, Jonathan Fawkner e Paul Corbould ("Guardiões da Galáxia")
Paul Franklin, Andrew Lockley, Ian Hunter e Scott Fisher ("Interestelar")
Richard Stammers, Lou Pecora, Tim Crosbie e Cameron Waldbauer ("X-Men: Dias de um futuro esquecido")

Melhor figurino
Milena Canonero ("O grande hotel Budapeste")
Mark Bridges ("Vício inerente")
Colleen Atwood ("Caminhos da floresta")
Anna B. Sheppard e Jane Clive ("Malévola")
Jacqueline Durran ("Sr. Turner")
Melhor maquiagem e cabelo
Bill Corso e Dennis Liddiard ("Foxcatcher")
Frances Hannon e Mark Coulier ("O grande hotel Budapeste")
Elizabeth Yianni-Georgiou e David White ("Guardiões da Galáxia")

Melhor trilha sonora
Alexandre Desplat ("O grande hotel Budapeste")
Alexandre Desplat ("O jogo da imitação")
Hans Zimmer ("Interestelar")
Gary Yershon ("Sr. Turner")
Jóhann Jóhannsson ("A teoria de tudo")

Melhor canção
"Everything is awesome", de Shawn Patterson ("Uma aventura Lego")
"Glory", de John Stephens e Lonnie Lynn ("Selma")
"Grateful", de Diane Warren ("Além das luzes")
"I'm not gonna miss you", de Glen Campbell e Julian Raymond ("Glen Campbell…I'll be me")
"Lost Stars", de Gregg Alexander e Danielle Brisebois ("Mesmo se nada der certo")

Melhor edição de som
Alan Robert Murray e Bub Asman ("Sniper americano")
Martín Hernández e Aaron Glascock ("Birdman")
Brent Burge e Jason Canovas ("O hobbit: A batalha dos cinco exércitos")
Richard King ("Interestelar")
Becky Sullivan e Andrew DeCristofaro ("Invencível")
Melhor mixagem de som
John Reitz, Gregg Rudloff e Walt Martin ("Sniper americano")
Jon Taylor, Frank A. Montaño e Thomas Varga ("Birdman")
Gary A. Rizzo, Gregg Landaker e Mark Weingarten ("Interestelar")
Jon Taylor, Frank A. Montaño e David Lee ("Invencível")
Craig Mann, Ben Wilkins e Thomas Curley ("Whiplash")
 

Prêmios do Sindicato dos Críticos 2015

Os prêmios do Sindicato dos Críticos são importantes sinalizações para o Oscar. Já foram entregues, bem como os Golden Globes.
Se formos pensar assim, “Birdman” seria o favorito porque conseguiu ganhar em sete categorias: melhor ator para Michael Keaton, melhor elenco, melhor roteiro original,
melhor ator em comédia para Michael Keaton, melhor fotografia, melhor edição e melhor trilha sonora.
Em segundo lugar com quatro prêmios, vem “Boyhood”: melhor filme, melhor diretor, melhor atriz coadjuvante para Patricia Arquette e melhor ator jovem Para Ellar Coltrane. Prêmios importantes.
“O Grande Hotel Budapeste” vem em seguida com três prêmios: melhor comédia, melhor direção de arte, melhor figurino.
Então, parece que esses três filmes são os que tem mais vantagem e vão ser os que correm juntos para o Oscar. Vamos seguindo os prêmios principais e torcendo pelos nossos favoritos!
Prêmios do Sindicato dos Críticos
Melhor Filme
"Boyhood"
Melhor Diretor
Richard Linklater - "Boyhood"
Melhor Ator
Michael Keaton - "Birdman"
Melhor Atriz
Julianne Moore - "Still Alice"
Melhor Ator Coadjuvante
J. K. Simmons - "Whiplash"
Melhor Atriz Coadjuvante
Patricia Arquette - "Boyhood"
Melhor Ator Jovem
Ellar Coltrane — "Boyhood"
Melhor Elenco
"Birdman"
Melhor Roteiro Adaptado
Gillian Flynn — "Gone Girl"
Melhor Roteiro Original
Alejandro González Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris, Jr., Armando Bo — "Birdman"
Melhor Animação
The Lego Movie
Melhor Filme de Ação
"Guardians of the Galaxy"
Melhor Ator em Filme de Ação
Bradley Cooper — "American Sniper"
Melhor Atriz em Filme de Ação
Emily Blunt — "Edge of Tomorrow"
Melhor Comédia
"The Grand Budapest Hotel"
Melhor Ator em Comédia
Michael Keaton - "Birdman"
Melhor Atriz em Comédia
Jenny Slate - "Obvious Child"
Melhor Filme de Ficção Científica
"Interstellar"
Melhor Filme Estrangeiro
"Force Majeure"
Melhor Documentário
"Life Itself"
Melhor Direção de Arte
Adam Stockhausen, Anna Pinnock - "The Grand Budapest Hotel"
Melhor Fotografia
Emmanuel Lubezki — "Birdman"
Melhor Figurino
Milena Canonero - "The Grand Budapest Hotel"
Melhor Edição
Douglas Crise and Stephen Mirrione — "Birdman"
Melhor Cabelo e Maquiagem
"Guardians of the Galaxy"
Melhor Trilha Sonora
Antonio Sánchez - "Birdman"
Melhor Canção
"Glory" John Legend and Common - "Selma"
Melhor Efeitos Visuais
"Dawn of the Planet of the Apes"

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A Noite de Entrega dos Globos de Ouro 2015


A Noite da Entrega dos Globos de Ouro 2015

Numa noite de altos e baixos e bem mais longa do que a do ano passado, o Globo de Ouro, em sua 72ª edição, premiou os melhores do cinema e da televisão, escolhidos pela Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood. As apresentadoras Amy Poehler e Tina Fey fizeram as piadinhas da hora, bem sem graça e uma atriz vestida de soldado do exército coreano brincou de ditadora com Meryl Streep e claro, todo mundo sabe que o filme “Entrevista”, bem medíocre, aliás, era o tema. Bem chocho.
Confirmando o que se disse e se escreveu sobre “Boyhood”, foi ele o destaque da noite. Levou o prêmio de melhor filme de drama, melhor diretor para Richard Linklater e melhor atriz coadjuvante para Patricia Arquette, consagrando assim um filme extraordinário, que experimentou algo inusitado ou seja, filmar por 12 anos uma história.
O melhor filme comédia ou musical foi “O Grande Hotel Budapest” de Wes Anderson, também favorito na categoria.
“A Teoria de Tudo” sobre o cientista Stephen Hawking, ganhou prêmios em duas categorias: melhor ator para o jovem Eddie Redmayne, que fez um trabalho fascinante e melhor trilha original para Johan Johannsson, desbancando mestres no assunto.
“Birdman”, outro dos favoritos, ganhou o prêmio de melhor roteiro que o diretor e co-roterista mexicano Inárritu foi buscar no palco e melhor ator de comédia para Michael Keaton, que faz um tipo estranho e comovente num filme fascinante.
As melhores atrizes foram Amy Adams de “Big Eyes” de Tim Burton, repetindo o mesmo prêmio do ano passado e Juliette Moore que estava indicada por dois filmes e acabou ganhando com o tocante “Para Sempre Alice”. Foi uma categoria concorrida porque todas as indicadas estavam ótimas nas interpretações.
Melhor ator coadjuvante foi para J.K. Simmons de “Whiplash”que eu ainda não vi mas que dizem ser ótimo.
Melhor animação foi para “Como Treinar seu Dragão 2” e a melhor canção foi para “Glory” de “Selma”, entregue por ninguém menos que Prince, com Oprah Winfrey na plateia torcendo por esse filme que ela produziu e atuou numa ponta. Os direitos civis dos negros nos Estados Unidos é um tema ainda em aberto e dramático.
Eu achei que a premiação foi interessante porque todos os favoritos levaram prêmios. Esse ano a safra está bem mais atraente do que o habitual.
As atrizes desfilaram vestidos coloridos, e o vermelho e o branco desbancaram o preto tradicional. Decotes ousados e pernas de fora também atraíram os olhares de todos.
Mas o ponto alto foi o prêmio para George Clooney, o mais célebre ex-solteirão, que se casou esse ano com a advogada Amal Allamudim, de preto, luvas brancas e enormes brincos de brilhantes. Sedutor, bonitão e querido pelos colegas, ele falou dela, claro e também do acontecido na França, que chocou o mundo.
Para a televisão foram destaques as séries “Fargo”,”The Affair”,”Transparent”, que levaram os melhores prêmios.
Eu gostei do prêmio de melhor atriz coadjuvante para Joanne Froggatt porque adoro “Downton Abbey”.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Leviatã




“Leviatã”- “Leviathan”, Rússia,2014
Direção: Andrei Zvyagintsev

O mar quebra suas ondas brancas no rochedo negro. Carcaças de barcos, um cemitério de pequenas embarcações e restos de um pier em escombros, refletem-se no espelho das águas.
Uma paisagem morta. Casas humildes espalham-se numa península.
No lusco-fusco de um dia que se finda, um carro na poeira traz um amigo de Moscou para Kolya (Alexei Sobryakov), que vive nessa região gelada com Lylia, sua bela mulher (Elena Lyadova, esplêndida) e Roma (Sergey Pokhadaev), adolescente, filho do primeiro casamento dele, que trata mal sua madrasta.
Os amigos se abraçam com força. O advogado Dmitri (Vladimir Vdovitchenkov), bonitão e caloroso, veio ajudar no processo em que o prefeito da cidade, Vadim (Roman Madyanov, ótimo), quer expropriar as terras de Kolya, berço de seus antepassados.
Com o retrato de Putin na parede e bandeiras da Rússia no seu acanhado escritório, o prefeito se reune com seus asseclas e planeja o bote. Aliado ao que de mais abjeto existe na cidade, com apoio de cúmplices do governo, dará um outro destino à terra que Kolya ama.
Mal sabe o russo louro e confiante, que sua vida poderá também ser destruída.
O progresso parece trazer para os russos mais do que televisões de plasma, celulares e carros blindados. Corrupção, ética de bandidos, saques perpetrados por uma justiça vendida, desfilam na tela.
Litros de vodca tentam anestesiar as dores da alma russa doente e desviada de seu caminho. Nem a religião consola, presa da mesma crise moral.
O menino chorando desolado na praia, frente aos ossos do esqueleto de uma baleia, branqueados ao sol, parece apontar para uma desesperança no futuro.
E, ao som da pungente sinfonia “Akhnaten” de Philip Glass, uma civilização milenar vai se esfacelando.
O filme de Andrei Zvyagintsev ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes 2014. Na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo levou o prêmio da crítica. E acaba de ser escolhido pela imprensa estrangeira de Los Angeles como melhor filme estrangeiro na premiação do Globo de Ouro.
O diretor chamou seu filme “Leviatã”. O que nos remete à mitologia judaica, que dá esse nome a um monstro aquático que seria o demônio representante do pecado da inveja. A inveja é um elemento central do filme, que move à destruição daquele que tem o que eu também quero e o odeio por isso.
E o nome do filme também parece combinar com a acepção do cientista político Thomas Hobbes (1588-1679), que chamou com esse nome um governo central autoritário, que seria necessário na eterna luta de todos contra todos.
Mas quando as coisas chegam a esse ponto, todos serão vítimas, mais dia, menos dia. É o alerta que o filme propõe?

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O Abutre



“O Abutre”- “Nightcrawler”, Estados Unidos, 2014
Direção: Dan Gilroy

Ele se esconde na noite. Fareja, ataca e vende por migalhas os restos roubados: fios de cobre, arame, tampas de bueiro.
Lou Bloom (Jake Gyllenhaal) está desempregado e não consegue quem lhe dê trabalho:
“- Não vou empregar um ladrão”, diz o homem que compra os produtos que o rapaz humilde fornece. Ele não esboça reação, com um sorriso fixo e aprendido com o propósito de agradar.
Mas o rosto de cera, olhos que parecem não piscar, cabelo engomado e costas curvas vão sofrer uma drástica mudança de porte, quando ele parar na estrada para olhar um desastre.
Com seu jeito de parecer invisível no escuro, ele olha os corpos ensanguentados. Mas não há resquício de piedade, nem sentimento de solidariedade. Lou Bloom fareja presas. E o aparecimento de um grupo de homens que filma os restos da tragédia acontecida para vender aos noticiários de TV, ilumina sua mente. Encontrou o que buscava. E ele aprende depressa.
À noite, de carro, com o assistente que escuta com ele o rádio da polícia e o conduz com os mapas do GPS pelas ruas de Los Angeles, ele quer ser sempre o primeiro a  chegar no local das tragédias urbanas. São elas que alimentam todo dia, os noticiários da TV. Ele agora vai roubar cenas sangrentas para vender e subir na vida.
Lou Bloom, “O Abutre” do título do filme, vai se tornar um importante provedor de imagens chocantes para os espectadores ávidos por dramas acontecidos na cidade. Enquanto tomam seu café da manhã, alimentam-se morbidamente com a desgraça alheia. E há nisso um sentimento de alívio que todos conhecemos.
Para o psicopata Lou Bloom, a tragédia, o sangue, os corpos sem vida, são apenas material para ser filmado e trocado por dinheiro e sucesso. Ele quer subir na escala social. E sua “escada” é Nina (Rene Russo, ótima), a cínica produtora de um programa de notícias matutinas que sabe o que o público quer ver.
O diretor e roteirista Dan Gilroy consegue montar um clima que vai num crescendo obsessivo e hipnotizante para a plateia.
Jake Gyllenhaal mostra que continua o ótimo ator que ganhou um Oscar por “O Segredo de Brokeback Mountain”. Ele está fantástico no papel e já consta de todas as listas de melhores do ano.
“O Abutre” é uma crítica ácida à sociedade de consumo em que vivemos, que engole fascinada o horror que acontece com os outros.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Acima das Nuvens


“Acima das Nuvens -The Clouds of Sils Maria”, França, Suiça, Alemanha , 2014
Direção: Olivier Assayas

Quem já teve o privilégio de conhecer a cidadezinha de Sils Maria, nos Alpes suiços, sabe o quanto ela é encantadora. Há um belo lago brilhante e branco, de águas congeladas no inverno que, no verão, é azul e cristalino. Como um espelho, reflete montanhas altíssimas, percorridas no inverno pelos esquiadores. O cenário é de cartão postal.
Foi alí que o autor teatral Wilhelm Merchior escolheu viver e morrer. Seu corpo é encontrado nas alturas, onde a neve cobre as montanhas.
Maria Enders (Juliette Binoche) e sua assistente Valentine (Kristen Stewart) recebem a notícia dessa morte quando estão no trem, a caminho de Zurique, onde Maria, amiga íntima e atriz famosa das peças do dramaturgo, iria receber um prêmio em seu nome. Ele era recluso e avesso a homenagens.
Há 20 anos atrás, Maria interpretara o papel da jovem Sigrid na peça “A Serpente de Maloja” do autor, agora morto. O título se referia a um fenômeno local de Sils Maria quando nuvens caminham como uma enorme serpente sobre o lago, à procura dos vales mais baixos. Sinal de mau tempo para os habitantes locais.
A peça tinha duas personagens, a que Maria interpretava, Sigrid, jovem ambiciosa e cruel e a mais velha, Helena, que se suicida após ser abandonada por Sigrid, a quem amava com uma dependência doentia.
Maria, convidada agora para reviver não Sigrid mas Helena, por um jovem diretor teatral, vai sofrer com a percepção ingrata de que o tempo passou, que ela envelheceu, que agora é a mulher que vai ser abandonada. Na vida real ela vive um divórcio. Ainda é bela mas o espelho mostra que a juventude se foi. Ciumenta e invejosa do frescor da assistente, Maria mostra as garras.
Valentine, com quem ela ensaia as falas da peça, na casa do autor morto, torna-se Sigrid, não só porque repete as palavras da jovem interpretada por Maria no passado mas porque começa a comportar-se com rebeldia e crueldade. Contesta a percepção que Maria tem da jovem Sigrid, dizendo claramente que isso já passou para ela, fechada agora em outro tempo, a meia idade.
As duas mulheres passam a confundir vida real e ficção. Em outras palavras, talvez a peça teatral começa a se encaixar nas pessoas que elas realmente são?
Quando entra em cena Chloe Moretz, 19 anos, estrela de Hollywood já famosa pelos escândalos e a vida livre que leva, objeto de todo tipo de comentário na internet, Maria vai sentir por ela uma mistura de amor e ódio. E vai aceitar a passagem do tempo como se aceita uma tempestade que desaba sobre nós, sem aviso, terrível e fatal.
Juliette Binoche, sempre talentosa e carismática e Kristen Stewart (a atriz da saga “Crepúsculo”), que mostra-se marcante no duelo verbal entre as duas, são o espetáculo principal. “A Serpente de Maloja” encarna nelas, trazendo mau tempo para aquele chalé na montanha.
Olivier Assayas, 59 anos (“Depois de Maio” 2012, “Carlos” 2010, “Horas de Verão” 2008), diretor e roteirista, discute em seu filme a relação entre arte e vida real, juventude e maturidade, memória e verdade, passado e presente.
Conclusão: o tempo nos faz prisioneiros. Cruel? Realidade.