quinta-feira, 15 de julho de 2010

"Um homem sério"

"Um homem sério" (A serious man, Joel e Ethan Cohen, EUA/ Reino Unido/ França, 2009)
Postado em 19 de março de 2010, às 10:30
Sempre que se trata de um filme dos irmãos Cohen, uma coisa é certa: excelência e polêmica. Porque eles não fazem filmes apenas. Usam do cinema com maestria para repensar conosco as questões filosóficas mais importantes que afligem desde sempre a humanidade.
Em “Um homem sério” (indicado para o Oscar de melhor filme e melhor roteiro original) os Cohen utilizam-se pela primeira vez, explícitamente, da cultura na qual nasceram e foram criados.
O judaísmo é uma referência natural quando se trata de questões em aberto porque essa é a sua essência. Os textos da Torah são estudados e interpretados em cada geração e os comentários mais inspirados servem como lições de vida.
Isso posto vamos ao filme, que tem como epígrafe essa frase:
“Receba com simplicidade tudo o que lhe acontece.” (Rashi)
Pois é exatamente o oposto o que o anti-heroi do filme, o professor de física e matemática Larry Gopnick (o excelente Michael Stuhlbarg), faz quando tudo começa a dar errado para ele: seu casamento desmorona, seus filhos o preocupam, um aluno tenta suborná-lo, suas finanças vão mal e ele não tem certeza se será ou não formalizado em seu emprego na Universidade, entre outras preocupações.
Ao contrário da história bíblica, esse Jó pós-moderno não louva o Senhor quando lhe acontecem as desgraças que o filme apresenta em um crescendo assustador. Nem mantém, como Jó, a fé na Providência Divina. Ele se tortura perguntando: o que foi que eu fiz para ser castigado dessa maneira?
Nessa tragicomédia que é “Um homem sério”, os Cohen tratam dessa culpa atormentadora que persegue o homem contemporâneo. Quem tem divã de psicanalista que o diga...
E não apenas isso, porque ao colocar a questão em termos de culpabilidade, Larry afasta da cena o principal, que é o uso que não faz do seu livre arbítrio na hora de escolher os caminhos a trilhar nessa vida. Ele sente-se empurrado pelos acontecimentos sem ter a possibilidade de mudar o rumo das coisas.
E é nesse momento que Larry busca a sabedoria.Vai a três rabinos, desesperado, querendo uma resposta pronta e um manual de sobrevivência.
Ora, dizem os irmãos Cohen, isso não existe.
Larry, que fala aos seus alunos sobre o princípio da incerteza, deduzido do paradoxo de Schrodinger, que demonstra que um gato pode simultâneamente estar vivo ou morto e que tudo depende de um observador para fazer tal afirmação, não aprendeu nada do que ensina...
Insiste em procurar fora uma resposta que só vai surgir quando ele defrontar-se com os fatos e perguntar a si mesmo.
Por isso é maravilhosa a fábula com que os irmãos Cohen dão início a seu filme. Vamos a ela.
Cenário: Cracóvia, inverno, dois séculos atrás, uma casa simples, marido e mulher conversam em iídiche.
O homem conta para sua mulher que encontrou o rabino de Zohar e que conversou com ele. E reclama:
-Estamos arruinados...
A mulher responde:
-Não pode ser porque esse rabino morreu de tifo há três anos atrás. Você conversou com um “dibbuk” (espírito maligno).
Batem à porta. Os dois se assustam.
O marido diz que convidou o rabino para tomar sopa com eles e vai abrir a porta.
Entra o rabino numa revoada de neve.
A mulher olha bem para o rabino e convida-o para a sopa.
- Obrigado, não quero.
A mulher diz:
- Eu sabia.
- Porque não quero a sopa? Estou gordo.
- Não.Você não quer a sopa porque “dibbuks” não comem.
E assim dizendo a mulher enfia um utensílio de cozinha pontudo no peito do rabino.
-“Dibbuk” eu? Que esposa você tem !
E o rabino solta gargalhadas.
- Ela acha que o senhor morreu e é um “dibbuk”...
O marido tenta explicar mas está mais assustado do que nunca.
- Você não se feriu.
E a mulher examina bem o peito do rabino com o pontudo objeto enfiado até o talo.
- Ao contrário. Estou me sentindo fraco. Talvez seja melhor ir embora.
O rabino vai até a porta e some na nevasca.
- Estamos arruinados, mulher. Amanhã vão descobrir o corpo...
- Besteira. Já vai tarde!
E fecha a porta.
Lembram-se do paradoxo de Schrodinger? Aqui o gato está morto porque um observador informado constatou o fato. E fim de papo.
A tela fica escura e um ponto vai se sobressaindo, trazendo a história para uma escola de hebraico, no meio-oeste americano em 1967. No fundo, o som do Jefferson Airplane canta:
“Don’t you need somebody to love?”
Vá ver o filme e pense.

2 comentários:

  1. Sylvia Manzano, em 19 de março de 2010, às 22:32
    Nossa, que filme complicado.
    Mesmo com a criteriosa e minuciosa descrição e interpretação da Eleonora, eu acho que não vou entender nada.
    Vou ler mais uma vez e decidir se enfrento ou não esse desafio.

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  2. Comentário encaminhado ao Mpost, em 19 de março de 2010, às 17:54
    Eleonora,
    Você sempre tem a capacidade de com os seus comentários me fazer enxergar coisas que eu ainda não tinha me dado conta.
    Adorei seus comentários, que me fizeram refletir de uma forma diferente sobre o filme.
    Um abraço carinhoso.
    Anna

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