“Mignonnes””- “Cuties”, França, 2020
Direção: Maimouna Doucoré
Ao som de uma canção na voz de uma mulher, o rostinho de uma
menina negra maquiada com brilhos azuis, mostra susto, tristeza, dor e
lágrimas. Algo errado aconteceu mas não sabemos ainda o que pode ter sido.
A sequência volta a um passado recente onde a mesma menina,
Amy (Fathia Youssouf), arruma a casa e prepara uma surpresa para a mãe. Sobre o
lençol esticado com cuidado na cama dela, Amy arruma um desenho que retrata a
família, cercado por flores pintadas e recortadas.
Mas, quando a mãe chega, com o bebê nas costas, nem olha
para Amy e corre atrás de Ismael, o menor, que entra num dos quartos do
apartamento.
“- Não estou brincando “, diz a mãe. “Ninguém pode entrar
nesse quarto. Vocês vão dividir esse outro aqui. “
Entendemos que a família que veio recentemente do Senegal
para Paris, é tradicional e muçulmana, e está iniciando Amy nos preceitos
religiosos reservados às mulheres. E, entre eles, está o privilégio dos homens
casados a ter uma segunda esposa.
E é o que Amy escuta da mãe, que, apesar de desolada, tem
que preparar o quarto reservado ao novo casal e a festa de boas vindas.
Amy não esconde sua raiva à doutrinação para a aceitação das
regras de obediência e pudor reservadas às mulheres. E olha com desagrado o
vestido reservado para a festa.
Por acaso, vai à lavanderia do condomínio e vê uma vizinha,
Angélica, que é latina, dançando ao som de uma música animada, com roupas
justas e longos cabelos soltos, que ela passa a ferro para alisar ainda mais.
Sentindo-se excluída na escola, onde não conhece ninguém,
fica encantada com quatro garotas que dançam no recreio, vestidas em shorts e
mini saias com blusas bem curtinhas. São as “Mignonnes”, as Lindinhas.
Logo, Amy vai querer ser uma delas. E rouba o celular do
primo para aprender passos e poses para se aproximar de Angélica que vai ser
sua ponte para as “Mignonnes”.
Na verdade são crianças, de 11 anos e querem ser mulheres.
Seduzir e ser famosas como as que aparecem nos celulares com milhares de
seguidores. Vestem roupas que revelam seus corpos ainda infantis e quando
dançam imitam movimentos sensuais que tem a ver com sexo mas são ingênuas e não
sabem o que estão fazendo. Querem ser admiradas e amadas.
Mas para Amy que vê o pai fazer o que quer e a mãe obedecer
cegamente apesar da dor que sente no coração, senão vai acabar no inferno como
castigo, a liberdade daquelas meninas é o céu para ela.
O filme ganhou o prêmio de melhor realização no Festival de
Sundance e, pasmem, foi considerado imoral por pessoas que queriam proibir o
filme aqui no Brasil, indo atrás de grupos americanos que também se
escandalizaram.
A crítica internacional gostou do filme. Na França não
causou nenhum escândalo porque o público entendeu que a diretora, que também é
franco-senegalesa, ao invés de querer erotizar as crianças, ao contrário,
mostra o que está acontecendo e o equívoco de Amy, exagerando e confundindo a
liberdade com o uso de seu corpo infantil para alcançar algo que ela ainda não
compreende.
O ritual iniciático de Amy foi difícil e pode servir de exemplo. O filme alerta para um problema que não é de hoje e que faz crianças imitarem mulheres adultas, em programas de televisão em horários diurnos, com o consentimento e a aprovação dos próprios pais.