quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Concerto



O Concerto – “Le Concert” França/ Romênia/ Rússia/ Bélgica/ Itália, 2009

Direção: Radu Mihaileanu





Um certo tipo de música tem o poder de criar uma atmosfera que nos arrebata e pode nos emocionar até às lágrimas. São momenos sublimes em que os músicos e a platéia entram em um tal estado de comunhão, que a harmonia é perfeita.

O novo filme do diretor judeu romeno Radu Mihaileanu, “O Concerto”, conta a história de um maestro que buscava essa perfeição e tem uma cena final mágica em que isso acontece. Somos tomados por uma forte emoção e as pessoas no cinema enxugam as lágrimas.

E tudo começa de uma maneira insólita. Enquanto passam os créditos iniciais do filme, escutamos uma peça de Mozart e a câmera foca o rosto de um maestro de olhos fechados, que rege embevecido, como que transportado para um outro mundo. Os instrumentos, piano, violino, fagotes são mostrados em primeiro plano. O clima é inefável.

Mas um telefone celular toca.

E rompe-se a magia. Percebemos que aquele que parecia ser o maestro que regia a orquestra com tanta suavidade e presença é, na verdade, o faxineiro do Bolshoi, que está escondido no balcão superior do teatro.

Um diretor furioso entra e o enxota dali:

“- Você está proibido de assistir aos ensaios da orquestra! Volte imediatamente para o seu trabalho.”

E é o que faz um humilhado Andrei Filipov (Aleksei Guskov).

Ele fora o maestro do Bolshoi há 30 anos atrás. Tocava com sua orquestra, quando fora brutalmente interrompido. Sua batuta é quebrada e ele ouve a acusação:

“- Inimigo do povo!”

O maestro ousara desafiar as ordens do supremo mandatário, Leonid Brejnev, que proibira a presença de judeus nas orquestras russas.

Mas o ex-maestro vai ter a sua vingança. Intercepta por acaso um fax dirigido ao diretor do Bolshoi, convidando a orquestra para apresentar-se no prestigioso Châtelet de Paris. E trama um plano: vai reconstituir sua antiga orquestra, da melhor maneira possível, já que muitos músicos morreram e outros não estão mais no país e serão eles que vão tocar em Paris.

Como solista para o Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior de Tchaikovsky, o maestro quer a violinista Anne-Marie Jacquet de 29 anos. A bela Mélanie Laurent interpreta a violinista que vai ser a peça-chave de um drama de injustiça e perseguição. Faz também a outra violinista que aparece em cenas em preto e branco. O passado esconde um segredo que será revelado no final.

Coincidências. Mélanie Laurent interpretou a judia Shoshana em “Bastardos Inglórios” de Tarantino e aqui também é uma judia. Em uma entrevista em Cannes, onde o filme foi apresentado, Mélanie Laurent contou que, também ela, soube de sua ascendência judia tardiamente, como a personagem da violinista que interpreta em “O Concerto”.

Conta também que dublou a violinista francesa de origem rumena, Sarah Nemtanu, que nasceu em 1981 e que é a solista da Orquestra Nacional da França.

Para que ela pudesse fazer o papel, Nemtanu ensinou Laurent principalmente a usar o arco com a mão direita. Ensaiaram por seis meses, duas ou três vezes por semana, por duas horas. Mas na cena final a mão esquerda é de outra violinista, da mesma orquestra porque, conta Sarah Nemtanu em entrevista ao jornal francês “Le Figaro”, suas mãos eram maiores que as da atriz e seus cabelos tinham cor diferente.

O filme trouxe visibilidade para Sarah Nemtanu, que lança seu primeiro CD com músicas para violino com nuances ciganas e chama-se “Gipsic”.

Radu Mihaileanu, diretor de sucessos como “O Trem da Vida” (1998), no qual judeus de uma aldeia vestem-se de soldados nazistas para conduzir os outros a trens que os levarão à Palestina e não a campos de concentração, tem o dom de contar histórias em tom de farsa com aquele humor judáico tão famoso.

Em ritmo de teatro burlesco, o diretor encaminha a sua história com graça e tiradas hilárias, com excelentes atores. É uma comédia que também comove.

O ano termina assim com um presente para quem gosta de bom cinema. Vá assistir e emocionar-se com “O Concerto”.

Comece o ano com o pé direito.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Oceanos





Oceanos – “Océans” França/ Suiça/ Espanha, 2009

Direção: Jacques Perrin e Jacques Cluzaud





“Oceanos” não é mais um daqueles documentários tediosos que passam na TV e que estamos cansados de ver. Você vai se surpreender se vencer o pé-atrás.

Vamos mergulhar em abismos azuis, voar sobre praias brancas, nadar sobre rochas e corais e descobrir o mundo transparente debaixo do gelo. E o mais fascinante: vamos conhecer de muito perto o povo que habita as águas salgadas que cobrem grande parte do nosso planeta.

Câmeras mágicas, colocadas em lugares que a mente julga inacessíveis, mostram a intimidade dessas criaturas, enquanto que um olho maior vê, em macro, coisas inéditas.

E tudo isso porque uma criança, que nunca tinha visto o mar perguntou a Jacques Perrin, que é o coprodutor, codiretor, ator e também narrador do filme:

“-O que é o oceano?”

Ele diz com sobriedade:

“- E eu não soube responder...”

Por isso o filme “Oceanos” vai tentar mais que responder, explicar essa pergunta de forma visual, com imagens que você não vai esquecer fácilmente. Aliás, a maioria de nós nunca presenciou as cenas que vamos ver.

Levou 7 anos e foram necessárias 70 expedições a 50 lugares diferentes do planeta. Mas valeu a pena. O filme é uma maravilha.

Como uma contrapartida ao conhecido “Mundo do Silêncio” do lendário Jacques Cousteau e Louis Malle, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes de 1956, “Oceanos” traz para os nossos ouvidos os sons de um mundo movimentado.

O filme conta com a primorosa trilha musical de Bruno Coulais, que usa instrumentos, corais e ruídos do próprio lugar da filmagem, para compor um concerto que acompanha a ação e estimula sentimentos diversos na platéia. Assim, é um som eletrizante que evoca em nós o susto e o terror no vôo do tubarão branco que engole a foca no ar, uma melodia suave embala-nos na ternura quando a mamãe foca convida seu bebê para o primeiro mergulho ou ainda, um “fortíssimo” acompanha a emoção da aventura quando golfinhos e gaivotas disputam, palmo a palmo, as sardinhas em cardume, agitando as águas brancas de espuma.E tem muito mais.

Os técnicos usaram hidrofones para registrar o som local e registros sonoros de experimentos científicos foram acrescentados às imagens, sempre que era impossível fazer isso no tempo real.

O produto final é fascinante e, desde o mais ligeiro roçar de patas de um caranguejo, até o estrondo de uma tempestade em alto mar, entram em nosso ouvidos, virgens de tudo isso, como uma composição inebriante ouvida pela primeira vez.

Além de nos apresentar às águas dos mares e seus habitantes, ”Oceanos” tem a intenção de conscientizar os seres humanos sobre a importância da preservação da região aquosa de nosso território de vida. Pois a Terra é um ser vivo, Gaia, e nós fazemos parte dela.

Mas, assim como nunca descamba para o didatismo, apenas mostrando imagens sonorizadas, “Oceanos” não faz preleções sobre o respeito à natureza.

Mais forte do que qualquer discurso são as imagens que vemos de espécies já extintas, em um museu todo de mármore branco. Cemitério para bichos empalhados que não existem mais...

Jacques Perrin e seu neto caminham entre esses animais tornados estátuas inertes. Os olhos do menino indagam, mudos, ao seu avô o por que de todo esse massacre. Perrin não explica, apenas nos incentiva a pensar e a nos entristecer.

Visitamos com eles o maior aquário do mundo em Atlanta, EUA. O fundo do mar é simulado com talento. E a pergunta está no ar: no futuro veremos a população marinha só em aquários? E os oceanos? Estarão de tal forma poluídos e desertos que nos farão horror?

E antes que você se escandalize com a contradição de um filme tão ecológico orquestrar um massacre na cena da pesca de pesadelo, fique mais um pouco no cinema e veja a explicação nos créditos finais. Porque nenhum animal foi maltratado nesse filme. A cena dantesca, a que assistimos enojados, é uma encenação na qual até robôs foram usados.

Imprescindível para tocar o âmago da nossa alma e despertar a compaixão.

Vai ser bom se você sair do cinema encantado e disposto a ajudar o povo do mar a sobreviver.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Film Socialisme





“Film Socialisme”, França / Suiça, 2010

Direção: Jean- Luc Godard





Livre-se de seus preconceitos. Você não vai assistir a um filme com história, como está acostumado. Você vai ser sacudido da inércia habitual que nos acompanha ao cinema, para pensar, correr atrás de imagens, puxar da memória uma sequência e já ter que esquecê-la para acompanhar outra proposta. Incômodo e instigante.

E a ironia do destino é que quem nos propõe essa aventura é um senhor que acaba de completar 80 anos. Jean- Luc Godard, o francês fundador da “nouvelle vague”, o diretor de “Acossado”(1960) com Belmondo e Jean Seberg, de “Pierrot- le fou – O demônio das onze horas” e “Alphaville”(1965),”A Chinesa”(1967), “Je vous salue Marie”(1985- censurado no Brasil) e tantos outros.

Godard e o português Manuel de Oliveira, de 102 anos, com o seu magnífico “O sorriso de Angélica”, que acaba de passar na Mostra de SP, são, irônicamente, aqueles que propõem um novo cinema, cada um à sua maneira. Saudosismo português e enciclopedismo francês?

O certo é que todos os dois tem uma vantagem sobre nós. Viveram mais tempo, são europeus ligados a uma cultura sólida e testemunharam ao vivo os acontecimentos políticos que abalaram o século XX.

Ambos são pensadores, não meros cineastas.

“Film Socialisme” de Godard e “Um filme falado” de Manoel de Oliveira passam-se em um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Coincidência? Penso que não. Ambos vão nos fazer percorrer o caminho de antigas civilizações que aí floresceram, para pensar sobre a humanidade que virá e refletir sobre as questões ligadas à passagem do tempo.

Não podemos nos esquecer que esses dois diretores estão mais próximos da morte do que seus espectadores mais jovens, se tudo correr bem. E fazem como que uma espécie de balanço do que viveram e do que aprenderam sobre a humanidade. Um testamento em imagens e palavras.

“Film Socialisme” usa várias linguagens de comunicação visual e muitas línguas, nem sempre traduzidas (de propósito) nas legendas. Remete a um mundo caótico, no qual a ordem sistemática só existe na geometria, por exemplo, que é um dos temas das conversas entreouvidas na primeira parte do filme, que se passa no navio.

Enquanto os turistas em atitude bovina comem, bebem, dançam, fotografam, tudo filmado numa imagem de vídeo caseiro, cores saturadas e imagens borradas, há alguns que pensam, lêem livros e conversam sériamente.

Falam de capitalismo (“O dinheiro foi inventado para os homens não abrirem os olhos”), do abandono da África (“A Aids é um instrumento para matar os negros do continente”), justiça (“Tudo bem, guerra é guerra, mas um crime é ainda um crime”), os ingleses na Palestina, as Cruzadas (“Existiram para vingar Cristo”), Husserl, religião e ética (“Cada um pode agir como se Deus não existisse, mas o problema hoje em dia é que os safados são sinceros”), computadores, a Segunda Guerra (“Você sabia que kamikaze quer dizer divindade do vento?”), o ouro de Moscou e Stálin, socialismo (“O dinheiro é um bem público como a água”), Napoleão, Islã, e muito mais.

São associações livres que remetem a assuntos intermináveis. Godard com sua câmara como que faz uma reportagem de TV sobre os humanos. “En passant”, ou seja, sem se deter, nem aprofundar, como é a maioria das informações que nos chegam no mundo de hoje.

Os momentos de grande beleza continuam sendo, como desde sempre, a água do mar eterno com sua espuma branca, o por-do-sol deslumbrante, o ruído do vento captado pelo microfone de Godard, os tubarões que se alimentam dos cardumes na água azul. Permanência.

Na segunda parte (Quo Vadis Europa), a reportagem é sobre as crianças, os que herdarão e vão tentar lidar com os problemas que deixamos para eles. Apesar da aparente dissolução da família, aqui também há permanência, como na belíssima cena do menino que acaricia o corpo da mãe (o Complexo de Édipo, uma homenagem à psicanálise?)

Uma lhama andina e um burrico aparecem na garagem da família. Não são mais animais na natureza ou ajudando o homem a trabalhar. A máquina e o sintético os substituiu e agora só lhes resta ser bichos de estimação.

E na terceira parte, Godard faz um vôo supersônico sobre personagens e lugares míticos. Egito, pirâmides de Sakara, a deusa- gata Bastet, Núbis, o deus da morte (“O sol e a morte não podem ser encarados de frente.”) Escrita árabe e hebraica superpostas. O Muro das Lamentações. Uma coruja branca nos degraus de um templo encara a câmera (personificação da sabedoria de Hera ou companheira de Harry Potter?) Odessa (cenas do filme “Encouraçado Potenkin”). Grécia (“A democracia e a tragédia se casaram na Grécia com Sófocles. A guerra civil foi seu único filho.”) Anfiteatros greco-romanos em ruínas. Estátuas gregas (“Cassandra, por que querias tanto o dom da profecia?) Nápoles e cenas do fim da Segunda Guerra. Barcelona e as touradas.

No final aparece na tela o aviso do FBI contra a pirataria. E alguém diz:

“- Quando a lei não é justa, a justiça passa adiante da lei.”

Essa é uma das leituras possíveis de “Film Socialisme”. Só você indo ver para fazer a sua.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Tetro





“Tetro”, Estados Unidos, 2009

Diretor: Francis Ford Copolla





Pode a sombra de um pai poderoso anular o talento de um filho? Há uma história bíblica terrível que fala sobre o castigo exemplar reservado ao anjo mais brilhante que quis superar a luz do Deus/ Pai...

Certamente entre um pai e uma filha as coisas são mais doces e ela pode subir nos ombros do pai e querer ser tão famosa quanto ele. Falo de Copolla, o pai e Sophia, a filha, irmanados pela mesma profissão e sucesso.

Já em “Tetro”, que Copolla veio lançar aqui no Brasil, o tema é mesmo a relação pai/filho tempestuosa, que volta a ocupar o centro da história, combinada à rivalidade entre irmãos. A saga do “Poderoso Chefão” era calcada também nesse assunto. Em “Tetro”, o diretor retoma a rivalidade masculina, a hierarquia imposta como teocracia, a inveja e o ciúme. Considera-o seu filme mais pessoal e é responsável pelo roteiro.

Copolla disse em entrevista no Brasil que “Tetro”, apesar de não ser autobiográfico, é um filme inspirado na sua família. Alude a diferenças entre ele próprio e seu irmão mais velho e à disputa existente entre seu pai Carmine e seu tio Anton.

Em “Tetro” tanto o pai quanto o tio são interpretados pelo célebre ator alemão Klaus Maria Brandauer (“Mephisto”, 1981) que diz em uma das cenas mais marcantes:

“- Só tem lugar para um gênio nessa família!”

A história em “Tetro”centra-se no encontro de dois irmãos: um deles, Angelo, o mais velho, foge da família e de New York, para refugiar-se na Argentina e o outro, Bennie, o mais novo, vai ao seu encontro pois não o vê há 10 anos.

Angelo tornou-se Tetro (abreviação do nome da família, Tetrocini) e mora em La Boca, o bairro boêmio de Buenos Aires. Namora Miranda (Maribel Verdú), psiquiatra que gosta de dançar e é um escritor fracassado. É sombrio e torturado. Vincent Gallo brilha nesse papel.

Bennie (Alden Ehrenreich), tem só 17 anos e ama e admira o irmão mais velho, intuindo que ele tem a chave do mistério da família, separada por conflitos não compreendidos pelo jovem tão ingênuo quanto belo.

Com a chegada do benjamim, o passado vai ser trazido à tona. Ele é o fruto de todos os dramas que ignora mas pressente.

Bennie, o mais puro, quer saber a verdade e vai enfrentar-se com sua luz que pode tanto cegar e até matar, quanto salvar, se temperada pela descoberta do amor e do perdão.

A luz ocupa um lugar importante em “Tetro”, tanto metafóricamente, como por exemplo, quando no início do filme atrai a mariposa que vai morrer, quanto como artifício, ao fazer um jogo de sombras e aludir a mistérios, na fotografia em magnífico preto e branco. As cores são usadas com parcimônia pelo diretor, para cenas do passado e balés surrealísticos onde tudo é dito sem palavras.

Durante todo o filme o espectador é envolvido por um clima de suspense criado por um jogo de espelhos e troca de papéis.

Tudo termina num festival dionisíaco na Patagônia, com Carmen Maura de sacerdotisa. O transe é substituído pelo conhecimento necessário.

Hoje em dia, após muitos problemas, Francis Ford Copolla sente-se um homem livre, pois financia e produz os próprios filmes com os proveitos de sua vinícola na California. Sente-se livre também porque, a esta altura de sua vida, pode fazer os filmes que quiser, desde que caibam em seu orçamento. Ele diz:

“- Quando faço filmes não busco fama nem dinheiro. O que eu quero são respostas. Esse filme foi, de certa forma, uma chance que eu tinha de aprender sobre a minha própria família. E, aos 71 anos, o cinema interessante para mim é aquele em que você pode aprender algo.”

Assista “Tetro” e aprenda com esse homem genial.


domingo, 5 de dezembro de 2010

Abutres






“Abutres” – “Carancho”, Argentina, 2010

Diretor : Pablo Trapero





Grande “close” em preto e branco em caquinhos de vidro espalhados pelo asfalto... E, logo, na tela a informação fria e chocante: “Na Argentina morrem 22 pessoas por dia, 683 por mês e mais de 8.000 por ano em acidentes de trânsito. São 100.000 mortes na última década. Essa é a principal causa de morte em pessoas com menos de 35 anos.“

E isso em um país com um pouco mais que 36 milhões de habitantes, dos quais 50% se concentra em Buenos Aires.

Finaliza o texto da tela: “Isto sustenta um negócio milionário de indenizações.”

Pablo Trapero, o talentoso diretor argentino de “Leonera” (2008), em seu sexto longa, escolheu fazer um filme- denúncia sobre a máfia que se interpõem entre as pessoas acidentadas no trânsito e as companhias seguradoras. É essa máfia que lucra com todo o horror.

“Abutres” é um filme duro. Incomoda. Machuca. Vamos descer ao mundo da dor, do desespero e da morte.

E aqui, o homem é o lobo do homem. Ou o abutre, se quiserem. Se bem que o homem é, e sempre será o pior dos animais, ao escolher fazer conscientemente o mal a seus semelhantes.

O diretor Pablo Trapero mostra sua excelência, criando com sua câmera, um clima de intimidade forçada, com enquadramentos em “closes” fechados. Ele entra de esguelha para melhor mostrar/ esconder a cena. Corta corpos, invade, mutila. Não pede licença. E estremecemos na cadeira...

Ricardo Darín, o mais famoso ator argentino – atuou em “O segredo dos seus olhos” que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro no ano passado – é Sosa, um advogado que perdeu sua licença e que agora decai. Seu papel é feio. Cabe a Sosa convencer o acidentado, ou a família do morto, que ele defenderá os direitos deles e conseguirá uma boa recompensa da companhia seguradora.

As vítimas são ignorantes, indefesas, estão fragilizadas e Sosa faz o trabalho sujo. Vai enganá-las e enriquecer o patrão mafioso.

Para conseguir ganhar suas comissões, Sosa tem que procurar clientes. Ronda delegacias, alicia cúmplices em ambulâncias que atendem os acidentes, fica esperando acontecer o pior em cruzamentos perigosos.

Vive de noite para conseguir sobreviver...

Chega até mesmo a causar fraturas e ferimentos graves em um amigo que ele tenta ajudar a ganhar uma indenização.

E Sosa passa, além disso, por maus bocados. Nem sempre o dinheiro arrecadado agrada ao patrão, que manda seus capangas surrá-lo.

Será que o amor pode habitar nessas paragens sombrias?

Martina Gusman (que é mulher do diretor Trapero) faz o anjo caído, Luján. Médica, que trabalha numa policlínica para traumatismos graves, atende seus pacientes no local do acidente e os leva de ambulância para o pequeno hospital, pobre e sujo. Faz o que pode. E tem um segredo que a faz padecer. Ela também é vítima de um inferno.

Sosa e Luján se encontram em um desses acidentes e a atração é imediata e fatal. Ela, cujas olheiras negras não são só de cansaço, parece despertar ao toque do olhar de Sosa. Intenso e comovente, o amor dos dois enche a tela de esperança. São breves momentos de sol e risadas.

Mas não há volta quando as coisas foram longe demais. E os limites se impõem, com a crueldade cega do inevitável.

Pablo Trapero teve o seu filme indicado para representar a Argentina e concorrer ao Oscar do ano que vem como melhor filme estrangeiro.

Mas seu maior prêmio foi conseguir que o sucesso de público e o choque causado por “Abutres” na sociedade argentina, levasse o Congresso a discutir mudanças nas leis que regem os seguros sobre os acidentes de trânsito.

Disse Trapero em São Paulo durante a Mostra:

“É importante que não exista só o mundo do cinema- festivais, críticas, etc – como exista também a possibilidade desses filmes viverem fora desse universo e se tornarem testemunhas de uma época, de uma situação.”
“Abutres” é um filme que passa o seu recado com sucesso.

Rede Social





“Rede Social”- “Social Network”, EUA, 2010

Diretor: David Fincher



Aproximar-se e relacionar-se sempre foi algo vital para os seres humanos jovens.

Já existiram diários que passavam de mão em mão, horas no telefone, paqueras na praça ou no cinema. Tudo isso foi superado pela tela do computador.

Hoje em dia, mesmo quem não freqüenta suas páginas, sabe o que é o “Facebook”. Sucesso estrondoso como “site” de relacionamento, tem 500 milhões de usuários e vale 25 bilhões de dólares.

O filme “Rede Social”, baseado no livro “Bilionários por acaso” de Ben Mezrich, conta a história de Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), o mais jovem bilionário do mundo aos 26 anos.

O clima é movimentado desde o início e os mais lentos vão ter dificuldade em sintonizar com a narrativa disparada, como que saída da mente acelerada de Mark, de 19 anos, que cursa o segundo ano em Harvard, escola americana elitista. Ele é um gêniozinho, um programador excepcional mas é um solitário.

Seu visual é o de um menino mal ajambrado, com o olhar sempre perdido em sua própria mente.

Estamos em Harvard, outono de 2003:

-“ Você sabia que tem mais gênios na China que gente normal nos Estados Unidos?” diz Mark à namorada Érica num bar.

- “Ein?” pergunta ela.

Mas ele engata assunto em cima de assunto, claramente não acompanhado pela garota que se irrita.

-“Vou te levar a eventos aos quais você não iria, se não estivesse me namorando, depois que eu entrar nos clubes exclusivos de Harvard”, jacta-se ele.

- “Não estamos mais namorando”, diz ela . “Vou estudar”.

-“Você não precisa porque está na B. U.”, aludindo à Universidade de Boston considerada fraca em relação a Harvard.

Érica fica muito brava:

-“Você vai ter muito sucesso na vida mas não passa de um “nerd”. Você é um babaca”, diz deixando Mark falando sozinho.

Esse diálogo é uma profecia sobre o que vai acontecer daí por diante na vida de Mark.

Ele corre para seu quarto e vai direto para o computador e para as cervejas na geladeira. Despeja toda a raiva que sente por Érica em seu blog. A impressão é que Mark se dá melhor com palavras escritas do que com a expressão de sentimentos na vida real. E que toda sua arrogância esconde um complexo de inferioridade social.

Quando chega seu melhor e único amigo, Eduardo Saverin (Andrew Garfield, o próximo Homem Aranha,que faz o amigo brasilleiro), ele já sabe de tudo porque leu o blog de Mark.

Enquanto os outros alunos participam de festas “quentes”, Mark e Eduardo passam a noite com equações dificílimas para roubar retratos de garotas de “sites” e criar o “Facemash”, lista das mais bonitas e mais feias de Harvard.Com isso, conseguem fazer cair a rede, tantos são os acessos em duas horas : 22.000.

A partir daí o filme vai contar em “flashbacks” o que aconteceu e como começou o “Facebook”.

A concretização turbulenta desse fenômeno passou por vários estágios, envolvendo Mark e Eduardo, outro grupo de alunos de Harvard, atletas e ricos, enrolados por Mark e o controvertido empresário Sean Parker (Justin Timberlake) que azedou a amizade entre Mark e seu amigo brasileiro.

Tudo acabou em processos que foram resolvidos em acordos extrajudiciais. Eduardo Saverin foi recolocado como co-fundador do “Facebook”, levando milhões em acordo não revelado públicamente.

O diretor David Fincher, fera da criatividade em propaganda e videoclips, começou no cinema com “Alien 3” quando tinha 30 anos. Depois vieram “Seven” com Brad Pitt, “O Jogo” com Sean Penn, “Quarto do Pánico”, “Zodíaco”.

Perguntado em uma entrevista à Serafina sobre o que acha dos criadores do “Facebook” disse:

“Esses meninos muito jovens ainda, não sabem que o tempo caminha em uma só direção. E que o “Facebook” é uma das maneiras mais eficientes de deixar a vida passar sem fazer nada que preste”.

Vá ver o filme você também e opine.