quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Concerto



O Concerto – “Le Concert” França/ Romênia/ Rússia/ Bélgica/ Itália, 2009

Direção: Radu Mihaileanu





Um certo tipo de música tem o poder de criar uma atmosfera que nos arrebata e pode nos emocionar até às lágrimas. São momenos sublimes em que os músicos e a platéia entram em um tal estado de comunhão, que a harmonia é perfeita.

O novo filme do diretor judeu romeno Radu Mihaileanu, “O Concerto”, conta a história de um maestro que buscava essa perfeição e tem uma cena final mágica em que isso acontece. Somos tomados por uma forte emoção e as pessoas no cinema enxugam as lágrimas.

E tudo começa de uma maneira insólita. Enquanto passam os créditos iniciais do filme, escutamos uma peça de Mozart e a câmera foca o rosto de um maestro de olhos fechados, que rege embevecido, como que transportado para um outro mundo. Os instrumentos, piano, violino, fagotes são mostrados em primeiro plano. O clima é inefável.

Mas um telefone celular toca.

E rompe-se a magia. Percebemos que aquele que parecia ser o maestro que regia a orquestra com tanta suavidade e presença é, na verdade, o faxineiro do Bolshoi, que está escondido no balcão superior do teatro.

Um diretor furioso entra e o enxota dali:

“- Você está proibido de assistir aos ensaios da orquestra! Volte imediatamente para o seu trabalho.”

E é o que faz um humilhado Andrei Filipov (Aleksei Guskov).

Ele fora o maestro do Bolshoi há 30 anos atrás. Tocava com sua orquestra, quando fora brutalmente interrompido. Sua batuta é quebrada e ele ouve a acusação:

“- Inimigo do povo!”

O maestro ousara desafiar as ordens do supremo mandatário, Leonid Brejnev, que proibira a presença de judeus nas orquestras russas.

Mas o ex-maestro vai ter a sua vingança. Intercepta por acaso um fax dirigido ao diretor do Bolshoi, convidando a orquestra para apresentar-se no prestigioso Châtelet de Paris. E trama um plano: vai reconstituir sua antiga orquestra, da melhor maneira possível, já que muitos músicos morreram e outros não estão mais no país e serão eles que vão tocar em Paris.

Como solista para o Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior de Tchaikovsky, o maestro quer a violinista Anne-Marie Jacquet de 29 anos. A bela Mélanie Laurent interpreta a violinista que vai ser a peça-chave de um drama de injustiça e perseguição. Faz também a outra violinista que aparece em cenas em preto e branco. O passado esconde um segredo que será revelado no final.

Coincidências. Mélanie Laurent interpretou a judia Shoshana em “Bastardos Inglórios” de Tarantino e aqui também é uma judia. Em uma entrevista em Cannes, onde o filme foi apresentado, Mélanie Laurent contou que, também ela, soube de sua ascendência judia tardiamente, como a personagem da violinista que interpreta em “O Concerto”.

Conta também que dublou a violinista francesa de origem rumena, Sarah Nemtanu, que nasceu em 1981 e que é a solista da Orquestra Nacional da França.

Para que ela pudesse fazer o papel, Nemtanu ensinou Laurent principalmente a usar o arco com a mão direita. Ensaiaram por seis meses, duas ou três vezes por semana, por duas horas. Mas na cena final a mão esquerda é de outra violinista, da mesma orquestra porque, conta Sarah Nemtanu em entrevista ao jornal francês “Le Figaro”, suas mãos eram maiores que as da atriz e seus cabelos tinham cor diferente.

O filme trouxe visibilidade para Sarah Nemtanu, que lança seu primeiro CD com músicas para violino com nuances ciganas e chama-se “Gipsic”.

Radu Mihaileanu, diretor de sucessos como “O Trem da Vida” (1998), no qual judeus de uma aldeia vestem-se de soldados nazistas para conduzir os outros a trens que os levarão à Palestina e não a campos de concentração, tem o dom de contar histórias em tom de farsa com aquele humor judáico tão famoso.

Em ritmo de teatro burlesco, o diretor encaminha a sua história com graça e tiradas hilárias, com excelentes atores. É uma comédia que também comove.

O ano termina assim com um presente para quem gosta de bom cinema. Vá assistir e emocionar-se com “O Concerto”.

Comece o ano com o pé direito.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Oceanos





Oceanos – “Océans” França/ Suiça/ Espanha, 2009

Direção: Jacques Perrin e Jacques Cluzaud





“Oceanos” não é mais um daqueles documentários tediosos que passam na TV e que estamos cansados de ver. Você vai se surpreender se vencer o pé-atrás.

Vamos mergulhar em abismos azuis, voar sobre praias brancas, nadar sobre rochas e corais e descobrir o mundo transparente debaixo do gelo. E o mais fascinante: vamos conhecer de muito perto o povo que habita as águas salgadas que cobrem grande parte do nosso planeta.

Câmeras mágicas, colocadas em lugares que a mente julga inacessíveis, mostram a intimidade dessas criaturas, enquanto que um olho maior vê, em macro, coisas inéditas.

E tudo isso porque uma criança, que nunca tinha visto o mar perguntou a Jacques Perrin, que é o coprodutor, codiretor, ator e também narrador do filme:

“-O que é o oceano?”

Ele diz com sobriedade:

“- E eu não soube responder...”

Por isso o filme “Oceanos” vai tentar mais que responder, explicar essa pergunta de forma visual, com imagens que você não vai esquecer fácilmente. Aliás, a maioria de nós nunca presenciou as cenas que vamos ver.

Levou 7 anos e foram necessárias 70 expedições a 50 lugares diferentes do planeta. Mas valeu a pena. O filme é uma maravilha.

Como uma contrapartida ao conhecido “Mundo do Silêncio” do lendário Jacques Cousteau e Louis Malle, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes de 1956, “Oceanos” traz para os nossos ouvidos os sons de um mundo movimentado.

O filme conta com a primorosa trilha musical de Bruno Coulais, que usa instrumentos, corais e ruídos do próprio lugar da filmagem, para compor um concerto que acompanha a ação e estimula sentimentos diversos na platéia. Assim, é um som eletrizante que evoca em nós o susto e o terror no vôo do tubarão branco que engole a foca no ar, uma melodia suave embala-nos na ternura quando a mamãe foca convida seu bebê para o primeiro mergulho ou ainda, um “fortíssimo” acompanha a emoção da aventura quando golfinhos e gaivotas disputam, palmo a palmo, as sardinhas em cardume, agitando as águas brancas de espuma.E tem muito mais.

Os técnicos usaram hidrofones para registrar o som local e registros sonoros de experimentos científicos foram acrescentados às imagens, sempre que era impossível fazer isso no tempo real.

O produto final é fascinante e, desde o mais ligeiro roçar de patas de um caranguejo, até o estrondo de uma tempestade em alto mar, entram em nosso ouvidos, virgens de tudo isso, como uma composição inebriante ouvida pela primeira vez.

Além de nos apresentar às águas dos mares e seus habitantes, ”Oceanos” tem a intenção de conscientizar os seres humanos sobre a importância da preservação da região aquosa de nosso território de vida. Pois a Terra é um ser vivo, Gaia, e nós fazemos parte dela.

Mas, assim como nunca descamba para o didatismo, apenas mostrando imagens sonorizadas, “Oceanos” não faz preleções sobre o respeito à natureza.

Mais forte do que qualquer discurso são as imagens que vemos de espécies já extintas, em um museu todo de mármore branco. Cemitério para bichos empalhados que não existem mais...

Jacques Perrin e seu neto caminham entre esses animais tornados estátuas inertes. Os olhos do menino indagam, mudos, ao seu avô o por que de todo esse massacre. Perrin não explica, apenas nos incentiva a pensar e a nos entristecer.

Visitamos com eles o maior aquário do mundo em Atlanta, EUA. O fundo do mar é simulado com talento. E a pergunta está no ar: no futuro veremos a população marinha só em aquários? E os oceanos? Estarão de tal forma poluídos e desertos que nos farão horror?

E antes que você se escandalize com a contradição de um filme tão ecológico orquestrar um massacre na cena da pesca de pesadelo, fique mais um pouco no cinema e veja a explicação nos créditos finais. Porque nenhum animal foi maltratado nesse filme. A cena dantesca, a que assistimos enojados, é uma encenação na qual até robôs foram usados.

Imprescindível para tocar o âmago da nossa alma e despertar a compaixão.

Vai ser bom se você sair do cinema encantado e disposto a ajudar o povo do mar a sobreviver.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Film Socialisme





“Film Socialisme”, França / Suiça, 2010

Direção: Jean- Luc Godard





Livre-se de seus preconceitos. Você não vai assistir a um filme com história, como está acostumado. Você vai ser sacudido da inércia habitual que nos acompanha ao cinema, para pensar, correr atrás de imagens, puxar da memória uma sequência e já ter que esquecê-la para acompanhar outra proposta. Incômodo e instigante.

E a ironia do destino é que quem nos propõe essa aventura é um senhor que acaba de completar 80 anos. Jean- Luc Godard, o francês fundador da “nouvelle vague”, o diretor de “Acossado”(1960) com Belmondo e Jean Seberg, de “Pierrot- le fou – O demônio das onze horas” e “Alphaville”(1965),”A Chinesa”(1967), “Je vous salue Marie”(1985- censurado no Brasil) e tantos outros.

Godard e o português Manuel de Oliveira, de 102 anos, com o seu magnífico “O sorriso de Angélica”, que acaba de passar na Mostra de SP, são, irônicamente, aqueles que propõem um novo cinema, cada um à sua maneira. Saudosismo português e enciclopedismo francês?

O certo é que todos os dois tem uma vantagem sobre nós. Viveram mais tempo, são europeus ligados a uma cultura sólida e testemunharam ao vivo os acontecimentos políticos que abalaram o século XX.

Ambos são pensadores, não meros cineastas.

“Film Socialisme” de Godard e “Um filme falado” de Manoel de Oliveira passam-se em um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Coincidência? Penso que não. Ambos vão nos fazer percorrer o caminho de antigas civilizações que aí floresceram, para pensar sobre a humanidade que virá e refletir sobre as questões ligadas à passagem do tempo.

Não podemos nos esquecer que esses dois diretores estão mais próximos da morte do que seus espectadores mais jovens, se tudo correr bem. E fazem como que uma espécie de balanço do que viveram e do que aprenderam sobre a humanidade. Um testamento em imagens e palavras.

“Film Socialisme” usa várias linguagens de comunicação visual e muitas línguas, nem sempre traduzidas (de propósito) nas legendas. Remete a um mundo caótico, no qual a ordem sistemática só existe na geometria, por exemplo, que é um dos temas das conversas entreouvidas na primeira parte do filme, que se passa no navio.

Enquanto os turistas em atitude bovina comem, bebem, dançam, fotografam, tudo filmado numa imagem de vídeo caseiro, cores saturadas e imagens borradas, há alguns que pensam, lêem livros e conversam sériamente.

Falam de capitalismo (“O dinheiro foi inventado para os homens não abrirem os olhos”), do abandono da África (“A Aids é um instrumento para matar os negros do continente”), justiça (“Tudo bem, guerra é guerra, mas um crime é ainda um crime”), os ingleses na Palestina, as Cruzadas (“Existiram para vingar Cristo”), Husserl, religião e ética (“Cada um pode agir como se Deus não existisse, mas o problema hoje em dia é que os safados são sinceros”), computadores, a Segunda Guerra (“Você sabia que kamikaze quer dizer divindade do vento?”), o ouro de Moscou e Stálin, socialismo (“O dinheiro é um bem público como a água”), Napoleão, Islã, e muito mais.

São associações livres que remetem a assuntos intermináveis. Godard com sua câmara como que faz uma reportagem de TV sobre os humanos. “En passant”, ou seja, sem se deter, nem aprofundar, como é a maioria das informações que nos chegam no mundo de hoje.

Os momentos de grande beleza continuam sendo, como desde sempre, a água do mar eterno com sua espuma branca, o por-do-sol deslumbrante, o ruído do vento captado pelo microfone de Godard, os tubarões que se alimentam dos cardumes na água azul. Permanência.

Na segunda parte (Quo Vadis Europa), a reportagem é sobre as crianças, os que herdarão e vão tentar lidar com os problemas que deixamos para eles. Apesar da aparente dissolução da família, aqui também há permanência, como na belíssima cena do menino que acaricia o corpo da mãe (o Complexo de Édipo, uma homenagem à psicanálise?)

Uma lhama andina e um burrico aparecem na garagem da família. Não são mais animais na natureza ou ajudando o homem a trabalhar. A máquina e o sintético os substituiu e agora só lhes resta ser bichos de estimação.

E na terceira parte, Godard faz um vôo supersônico sobre personagens e lugares míticos. Egito, pirâmides de Sakara, a deusa- gata Bastet, Núbis, o deus da morte (“O sol e a morte não podem ser encarados de frente.”) Escrita árabe e hebraica superpostas. O Muro das Lamentações. Uma coruja branca nos degraus de um templo encara a câmera (personificação da sabedoria de Hera ou companheira de Harry Potter?) Odessa (cenas do filme “Encouraçado Potenkin”). Grécia (“A democracia e a tragédia se casaram na Grécia com Sófocles. A guerra civil foi seu único filho.”) Anfiteatros greco-romanos em ruínas. Estátuas gregas (“Cassandra, por que querias tanto o dom da profecia?) Nápoles e cenas do fim da Segunda Guerra. Barcelona e as touradas.

No final aparece na tela o aviso do FBI contra a pirataria. E alguém diz:

“- Quando a lei não é justa, a justiça passa adiante da lei.”

Essa é uma das leituras possíveis de “Film Socialisme”. Só você indo ver para fazer a sua.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Tetro





“Tetro”, Estados Unidos, 2009

Diretor: Francis Ford Copolla





Pode a sombra de um pai poderoso anular o talento de um filho? Há uma história bíblica terrível que fala sobre o castigo exemplar reservado ao anjo mais brilhante que quis superar a luz do Deus/ Pai...

Certamente entre um pai e uma filha as coisas são mais doces e ela pode subir nos ombros do pai e querer ser tão famosa quanto ele. Falo de Copolla, o pai e Sophia, a filha, irmanados pela mesma profissão e sucesso.

Já em “Tetro”, que Copolla veio lançar aqui no Brasil, o tema é mesmo a relação pai/filho tempestuosa, que volta a ocupar o centro da história, combinada à rivalidade entre irmãos. A saga do “Poderoso Chefão” era calcada também nesse assunto. Em “Tetro”, o diretor retoma a rivalidade masculina, a hierarquia imposta como teocracia, a inveja e o ciúme. Considera-o seu filme mais pessoal e é responsável pelo roteiro.

Copolla disse em entrevista no Brasil que “Tetro”, apesar de não ser autobiográfico, é um filme inspirado na sua família. Alude a diferenças entre ele próprio e seu irmão mais velho e à disputa existente entre seu pai Carmine e seu tio Anton.

Em “Tetro” tanto o pai quanto o tio são interpretados pelo célebre ator alemão Klaus Maria Brandauer (“Mephisto”, 1981) que diz em uma das cenas mais marcantes:

“- Só tem lugar para um gênio nessa família!”

A história em “Tetro”centra-se no encontro de dois irmãos: um deles, Angelo, o mais velho, foge da família e de New York, para refugiar-se na Argentina e o outro, Bennie, o mais novo, vai ao seu encontro pois não o vê há 10 anos.

Angelo tornou-se Tetro (abreviação do nome da família, Tetrocini) e mora em La Boca, o bairro boêmio de Buenos Aires. Namora Miranda (Maribel Verdú), psiquiatra que gosta de dançar e é um escritor fracassado. É sombrio e torturado. Vincent Gallo brilha nesse papel.

Bennie (Alden Ehrenreich), tem só 17 anos e ama e admira o irmão mais velho, intuindo que ele tem a chave do mistério da família, separada por conflitos não compreendidos pelo jovem tão ingênuo quanto belo.

Com a chegada do benjamim, o passado vai ser trazido à tona. Ele é o fruto de todos os dramas que ignora mas pressente.

Bennie, o mais puro, quer saber a verdade e vai enfrentar-se com sua luz que pode tanto cegar e até matar, quanto salvar, se temperada pela descoberta do amor e do perdão.

A luz ocupa um lugar importante em “Tetro”, tanto metafóricamente, como por exemplo, quando no início do filme atrai a mariposa que vai morrer, quanto como artifício, ao fazer um jogo de sombras e aludir a mistérios, na fotografia em magnífico preto e branco. As cores são usadas com parcimônia pelo diretor, para cenas do passado e balés surrealísticos onde tudo é dito sem palavras.

Durante todo o filme o espectador é envolvido por um clima de suspense criado por um jogo de espelhos e troca de papéis.

Tudo termina num festival dionisíaco na Patagônia, com Carmen Maura de sacerdotisa. O transe é substituído pelo conhecimento necessário.

Hoje em dia, após muitos problemas, Francis Ford Copolla sente-se um homem livre, pois financia e produz os próprios filmes com os proveitos de sua vinícola na California. Sente-se livre também porque, a esta altura de sua vida, pode fazer os filmes que quiser, desde que caibam em seu orçamento. Ele diz:

“- Quando faço filmes não busco fama nem dinheiro. O que eu quero são respostas. Esse filme foi, de certa forma, uma chance que eu tinha de aprender sobre a minha própria família. E, aos 71 anos, o cinema interessante para mim é aquele em que você pode aprender algo.”

Assista “Tetro” e aprenda com esse homem genial.


domingo, 5 de dezembro de 2010

Abutres






“Abutres” – “Carancho”, Argentina, 2010

Diretor : Pablo Trapero





Grande “close” em preto e branco em caquinhos de vidro espalhados pelo asfalto... E, logo, na tela a informação fria e chocante: “Na Argentina morrem 22 pessoas por dia, 683 por mês e mais de 8.000 por ano em acidentes de trânsito. São 100.000 mortes na última década. Essa é a principal causa de morte em pessoas com menos de 35 anos.“

E isso em um país com um pouco mais que 36 milhões de habitantes, dos quais 50% se concentra em Buenos Aires.

Finaliza o texto da tela: “Isto sustenta um negócio milionário de indenizações.”

Pablo Trapero, o talentoso diretor argentino de “Leonera” (2008), em seu sexto longa, escolheu fazer um filme- denúncia sobre a máfia que se interpõem entre as pessoas acidentadas no trânsito e as companhias seguradoras. É essa máfia que lucra com todo o horror.

“Abutres” é um filme duro. Incomoda. Machuca. Vamos descer ao mundo da dor, do desespero e da morte.

E aqui, o homem é o lobo do homem. Ou o abutre, se quiserem. Se bem que o homem é, e sempre será o pior dos animais, ao escolher fazer conscientemente o mal a seus semelhantes.

O diretor Pablo Trapero mostra sua excelência, criando com sua câmera, um clima de intimidade forçada, com enquadramentos em “closes” fechados. Ele entra de esguelha para melhor mostrar/ esconder a cena. Corta corpos, invade, mutila. Não pede licença. E estremecemos na cadeira...

Ricardo Darín, o mais famoso ator argentino – atuou em “O segredo dos seus olhos” que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro no ano passado – é Sosa, um advogado que perdeu sua licença e que agora decai. Seu papel é feio. Cabe a Sosa convencer o acidentado, ou a família do morto, que ele defenderá os direitos deles e conseguirá uma boa recompensa da companhia seguradora.

As vítimas são ignorantes, indefesas, estão fragilizadas e Sosa faz o trabalho sujo. Vai enganá-las e enriquecer o patrão mafioso.

Para conseguir ganhar suas comissões, Sosa tem que procurar clientes. Ronda delegacias, alicia cúmplices em ambulâncias que atendem os acidentes, fica esperando acontecer o pior em cruzamentos perigosos.

Vive de noite para conseguir sobreviver...

Chega até mesmo a causar fraturas e ferimentos graves em um amigo que ele tenta ajudar a ganhar uma indenização.

E Sosa passa, além disso, por maus bocados. Nem sempre o dinheiro arrecadado agrada ao patrão, que manda seus capangas surrá-lo.

Será que o amor pode habitar nessas paragens sombrias?

Martina Gusman (que é mulher do diretor Trapero) faz o anjo caído, Luján. Médica, que trabalha numa policlínica para traumatismos graves, atende seus pacientes no local do acidente e os leva de ambulância para o pequeno hospital, pobre e sujo. Faz o que pode. E tem um segredo que a faz padecer. Ela também é vítima de um inferno.

Sosa e Luján se encontram em um desses acidentes e a atração é imediata e fatal. Ela, cujas olheiras negras não são só de cansaço, parece despertar ao toque do olhar de Sosa. Intenso e comovente, o amor dos dois enche a tela de esperança. São breves momentos de sol e risadas.

Mas não há volta quando as coisas foram longe demais. E os limites se impõem, com a crueldade cega do inevitável.

Pablo Trapero teve o seu filme indicado para representar a Argentina e concorrer ao Oscar do ano que vem como melhor filme estrangeiro.

Mas seu maior prêmio foi conseguir que o sucesso de público e o choque causado por “Abutres” na sociedade argentina, levasse o Congresso a discutir mudanças nas leis que regem os seguros sobre os acidentes de trânsito.

Disse Trapero em São Paulo durante a Mostra:

“É importante que não exista só o mundo do cinema- festivais, críticas, etc – como exista também a possibilidade desses filmes viverem fora desse universo e se tornarem testemunhas de uma época, de uma situação.”
“Abutres” é um filme que passa o seu recado com sucesso.

Rede Social





“Rede Social”- “Social Network”, EUA, 2010

Diretor: David Fincher



Aproximar-se e relacionar-se sempre foi algo vital para os seres humanos jovens.

Já existiram diários que passavam de mão em mão, horas no telefone, paqueras na praça ou no cinema. Tudo isso foi superado pela tela do computador.

Hoje em dia, mesmo quem não freqüenta suas páginas, sabe o que é o “Facebook”. Sucesso estrondoso como “site” de relacionamento, tem 500 milhões de usuários e vale 25 bilhões de dólares.

O filme “Rede Social”, baseado no livro “Bilionários por acaso” de Ben Mezrich, conta a história de Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), o mais jovem bilionário do mundo aos 26 anos.

O clima é movimentado desde o início e os mais lentos vão ter dificuldade em sintonizar com a narrativa disparada, como que saída da mente acelerada de Mark, de 19 anos, que cursa o segundo ano em Harvard, escola americana elitista. Ele é um gêniozinho, um programador excepcional mas é um solitário.

Seu visual é o de um menino mal ajambrado, com o olhar sempre perdido em sua própria mente.

Estamos em Harvard, outono de 2003:

-“ Você sabia que tem mais gênios na China que gente normal nos Estados Unidos?” diz Mark à namorada Érica num bar.

- “Ein?” pergunta ela.

Mas ele engata assunto em cima de assunto, claramente não acompanhado pela garota que se irrita.

-“Vou te levar a eventos aos quais você não iria, se não estivesse me namorando, depois que eu entrar nos clubes exclusivos de Harvard”, jacta-se ele.

- “Não estamos mais namorando”, diz ela . “Vou estudar”.

-“Você não precisa porque está na B. U.”, aludindo à Universidade de Boston considerada fraca em relação a Harvard.

Érica fica muito brava:

-“Você vai ter muito sucesso na vida mas não passa de um “nerd”. Você é um babaca”, diz deixando Mark falando sozinho.

Esse diálogo é uma profecia sobre o que vai acontecer daí por diante na vida de Mark.

Ele corre para seu quarto e vai direto para o computador e para as cervejas na geladeira. Despeja toda a raiva que sente por Érica em seu blog. A impressão é que Mark se dá melhor com palavras escritas do que com a expressão de sentimentos na vida real. E que toda sua arrogância esconde um complexo de inferioridade social.

Quando chega seu melhor e único amigo, Eduardo Saverin (Andrew Garfield, o próximo Homem Aranha,que faz o amigo brasilleiro), ele já sabe de tudo porque leu o blog de Mark.

Enquanto os outros alunos participam de festas “quentes”, Mark e Eduardo passam a noite com equações dificílimas para roubar retratos de garotas de “sites” e criar o “Facemash”, lista das mais bonitas e mais feias de Harvard.Com isso, conseguem fazer cair a rede, tantos são os acessos em duas horas : 22.000.

A partir daí o filme vai contar em “flashbacks” o que aconteceu e como começou o “Facebook”.

A concretização turbulenta desse fenômeno passou por vários estágios, envolvendo Mark e Eduardo, outro grupo de alunos de Harvard, atletas e ricos, enrolados por Mark e o controvertido empresário Sean Parker (Justin Timberlake) que azedou a amizade entre Mark e seu amigo brasileiro.

Tudo acabou em processos que foram resolvidos em acordos extrajudiciais. Eduardo Saverin foi recolocado como co-fundador do “Facebook”, levando milhões em acordo não revelado públicamente.

O diretor David Fincher, fera da criatividade em propaganda e videoclips, começou no cinema com “Alien 3” quando tinha 30 anos. Depois vieram “Seven” com Brad Pitt, “O Jogo” com Sean Penn, “Quarto do Pánico”, “Zodíaco”.

Perguntado em uma entrevista à Serafina sobre o que acha dos criadores do “Facebook” disse:

“Esses meninos muito jovens ainda, não sabem que o tempo caminha em uma só direção. E que o “Facebook” é uma das maneiras mais eficientes de deixar a vida passar sem fazer nada que preste”.

Vá ver o filme você também e opine.

domingo, 28 de novembro de 2010

Um Homem que Grita





“Um Homem que Grita”- “Um Homme Qui Crie”, França, Bélgica, Chade 2010

Diretor : Mahmat- Saleh Haroun





Esse filme é um pequeno milagre.

Filmado no Chade, um país muito pobre, chamado de “coração negro da África” por seu clima desértico e sua distância do mar, é um raro filme africano premiado em festivais. Ganhou o Prêmio do Júri em Cannes 2010 e em São Paulo, a Mostra concedeu-lhe o Prêmio Humanidade.

“Um Homem que Grita” é o quarto longa do diretor Mahmat- Saleh Haroun, de 50 anos, nativo do Chade, para quem o cinema foi paixão à primeira vista. Seu tio levou-o a ver um filme de Bollywood e o menino de 9 anos caiu de amores pela linda indiana que sorria na tela, em “close”, só para ele.

“ - A sensação foi tão marcante, que até hoje me lembro desse rosto”, conta ele.

Aos 15 anos vê “Roma, Cidade Aberta” de Roberto Rossellini. Diz:

“ - Pensei: tenho que fazer a mesma coisa que ele.”

Aos 19 anos foi ferido na guerra civil e depois de algumas aventuras, fugiu para a França.

Aos 21 anos cursou o Conservatório de Cinema de Paris.

Seus filmes falam sempre sobre o seu país:

“ - Quero ajudar a construir a memória do Chade. Quando comecei a filmar me perguntei: o que tenho dentro de minha cabeça como imagem de meu país? Nada. Porque ninguém nunca o filmou.”

“Um Homem que Grita” conta a história de um ex-campeão de natação (Youssouf Djaoro), aos 60 anos, a quem só resta cuidar amorosamente da piscina de um hotel em N’Dajema, capital do Chade, de ruas de areia, cruzadas por pequenos lagartos indiferentes aos homens.

Quando isso lhe é tirado, ele afunda em um poço negro, destituído de sua identidade e dignidade.

“- A piscina é a minha vida “, repete Adam. Desconsolado.

Substituido por seu filho Abdel (Diouconda Koma) nessa função, a ele compete ser o novo porteiro do hotel, vestido com as roupas muito curtas do antigo funcionário. É a imagem do desânimo, com seus longos braços e pernas sem outra coisa a fazer que abrir e fechar a cancela do hotel.

Em casa, fazendo abdominais no escuro da noite, seu corpo negro brilha com o suor e seu rosto reflete o impacto dos anos que já lhe pesam.

“- Está parecendo um leão velho”, diz Abdel de 20 anos ao pai envelhecido.

Tudo isso vai fazer Adam, a quem todos chamam de Campeão, tomar uma atitude da qual vai se arrepender para sempre.

A guerra civil grassa no país há anos e a todos é pedido um ”esforço de guerra”: dinheiro ou um filho. A outra opção é fugir do país.

O diretor Haroun disse, em uma entrevista, quando veio ao Brasil no lançamento de seu filme:

“- Não é um filme sobre a guerra, mas sobre aqueles que sofrem com ela, experimentando o sentimento de o seu próprio destino lhes escapar.”

E é isso que comove o espectador. A história é contada com poucas palavras, muito silêncio e imagens impactantes pelo desespero e solidão que retratam.

Às tantas, um personagem, abalado pela situação terrível que o país vive, diz:

“- Nosso problema é que colocamos nosso destino nas mãos de Deus.”

De forma simples, direta, e com longos “closes” no rosto expressivo molhado de lágrimas de Adam, compreendemos todo o seu drama e sua impotência.

“- Meu protagonista é alguém que compreende, dolorosamente, que o seu grito de sofrimento tem como única resposta o silêncio de Deus,” diz Haroun.

Uma das cenas mais emocionantes é a do lamento cantado em língua africana pela namorada do filho de Adam, com seus mega-brincos e sua barriga grávida, ao ouvir a fita cassete gravada que ele lhe envia, desesperado, do “front” de guerra.

O pai, que todo escuta, prepara-se para uma ação perigosa.

E a bela cena final, na qual o rio assume a importância de um lugar sagrado, não será esquecida fácilmente.

Depois do filme, palavras de um poema de Aimé Césaire aparecem na tela e nos faz pensar no sofrimento da África, esquecida pelo mundo:

“Não fique indiferente,

A vida não é um espetáculo.

Pois o homem que grita,

Não é um urso que dança...”

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Você vai conhecer o homem dos seus sonhos



“Você vai conhecer o homem dos seus sonhos”-

“You Will Meet A Tall Dark Stranger”, EUA / Espanha, 2010

Direção: Woody Allen





Sábios antigos advertiam que, quando os deuses queriam castigar os homens, satisfaziam os seus desejos...

Isso acontece porque é próprio da natureza humana estar sempre insatisfeita. Desejar, e frustrar-se depois, seria a marca do nosso jeito de viver no mundo...

Pior ainda, aprisionados pelo tempo, desejamos o que não sabemos como será. Porque é próprio do futuro esconder-se atrás de um véu inalcançável.

“Você vai encontrar o homem dos seus sonhos”, encena essa questão central do desejo na vida humana e suas complicações.

O filme começa e ouve-se a canção “When you wish upon a star”(Quando você vê uma estrela e pensa em um desejo), cantada pelo Grilo Falante e que encerra o desenho “Pinocchio”de Walt Disney, de 1940. Aliás, essa música ganhou o Oscar daquele ano.

Todo mundo se lembra que Gepetto, o marceneiro que fabricou o boneco, deseja que Pinocchio se torne um menino de verdade. Então, ele vê uma estrela e expressa seu desejo: seu sonho se realiza.

E tudo isso porque a crença na fada da estrela norteou o desejar de Gepetto.

Ora, Woody Allen pergunta nesse seu novo filme: será que as pessoas que tem uma crença são mais felizes do que as que não acreditam em nada?

E ele mesmo responde ao “The New York Times”:

“Para mim, não existe diferença real entre uma cartomante, um biscoito da sorte e qualquer uma das religiões organizadas. São todas igualmente válidas ou inválidas. E igualmente úteis.”

E esclarece para os seus fãs: “Não sigo essas coisas. Bem que eu gostaria. Seria uma grande ajuda naquelas noites escuras.”

Pois é...

Aos 74 anos, Woody Allen filma novamente em Londres (fotografada pelo magnífico Vilmos Zigmund) onde seus personagens vivem histórias entrelaçadas. Tudo tem a ver com a luta para se alcançar o que se deseja e o papel que as crenças desempenham na vida das pessoas.

Como sempre, Woody Allen é universal e contemporâneo, usando dessa vez o casamento para ilustrar suas conclusões sobre a natureza humana.

Os pais de Sally (a excelente Naomi Watts) se separam após quarenta anos de casados. Alfie, o pai (Anthony Hopkins), acredita que pode reconquistar a juventude perdida e casa-se com uma moça vulgar, de pouca moral e consumista (Lucy Punch). Helena, a mãe (ótima Genna Jones), ajuda financeiramente a filha que está passando um mau momento em seu casamento com Roy (Josh Brolin), um escritor bissexto que se encanta pela vizinha Dia (a sensual indiana Freida Pinto).

Acontece que Helena está deprimida por causa do divórcio e precisa de companhia. Terapias e remédios parecem não ajudá-la. É, então, incentivada pela filha a procurar uma vidente (Pauline Collins). Sally não tem tempo, nem paciência para cuidar da situação. E pensa que a vidente Cristal, apesar de ser uma charlatã, vai distrair a mãe e fazer-lhe uma companhia inócua.

Mas a cada visita que faz à vidente, a mãe de Sally se envolve mais e mais. Traz para a filha as previsões, nas quais acredita piamente, mas Sally a escuta com pressa e nem chega a prestar atenção ao que ela diz.

Essas conversas com a filha e seus encontros com o livreiro esotérico fazem da personagem Helena um foco de graça, em um filme que não tem a finalidade de fazer rir mas que convida a sorrir por empatia.

Embalada por seus sonhos de ter a sua própria galeria de arte, Sally também não dá muita atenção à atração que sente pelo patrão (Antonio Banderas, muito apagado nesse papel) e nem ao marido desanimado. Quando acorda é tarde demais.

No final, uma história de decepções e desencontros vai envolver a todos, ilustrando de forma exemplar o castigo dos deuses ao realizar o desejo dos homens.

Filme pessimista? Eu diria que é realista e amadurecido. Com leveza (que pode até ser confundida com superficialidade), Woody Allen se mostra, como sempre, um grande observador da natureza humana.

Ele nos ensina que o problema não é desejar isso ou aquilo, já que é próprio da nossa natureza viver assim. Daí a citação inicial com as palavras de Shakespeare sobre a vida humana ser "som e fúria" e acabar em nada.

E, mesmo admitindo ser um cético, explora o fato de que crenças irracionais podem ajudar os humanos a melhorar a auto-estima.

Eu acrescentaria que, se a coisa não der certo, apesar do nosso empenho, vale aceitar a vida como ela vem. Mudar o foco do desejo. Aliás, a única maneira de se viver bem.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Minhas Mães e Meu Pai



“Minhas Mães e Meu Pai” – “The Kids Are All Right”, EUA, 2010

Direção: Lisa Cholodenko



Leon Tolstoi, escritor russo do século XIX, começa assim o seu conhecido romance, “Anna Karenina”: Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes é que são diferentes. Cada uma infeliz à sua maneira.

Pensei nisso enquanto saia do cinema depois de assistir ao novo filme de Lisa Cholodenko, “The Kids Are All Right”, ou seja, “As Crianças Estão Bem”.

O tradutor brasileiro, com a evidente intenção de vender o filme, tratou de batizá-lo com um título que cairia bem em uma daquelas velhas chanchadas da saudosa Atlântica: “Minhas Mães e Meu Pai”.

Ora, a pergunta então é: este é um filme “gay”?

E a resposta é sim, se pensarmos no casamento de 20 anos que une harmoniosamente a durona ginecologista Nic e a frágil paisagista Jules. As duas formam um casal que se dá bem na cama e lê-se afeto em suas presenças mútuas.

E a resposta é não, se, prestando atenção nos filhos das duas, Joni que vai fazer 18 anos (Mia Wasikowska) e Laser de 15 (Josh Hutcherson), nos envolvermos com as cenas de café da manhã e jantares na cozinha da família e sessões-pipoca no sofá. Não há nada de diferente, nada fora do comum. As mesmas conversas e as mesmas situações que estamos acostumados a ver num cenário convencional.

E tudo continuaria assim, se Laser e Joni não se metessem a procurar o pai biológico deles. Concebidos cada um por uma das mães, as crianças são fruto de inseminação artificial, sempre com o mesmo doador.

E aí começa uma situação que lembra “Teorema”, o filme de 1968 de Pasolini, quando o aparecimento de um intruso abala as estruturas de uma família burguesa.

Claro, o “doador de esperma”, Mark Ruffalo, esplêndido no papel, vai mexer com o equilíbrio conquistado por essa família.

Os filhos, imediatamente se envolvem com esse simpático e irresponsável sedutor que tem um restaurante “cool”, na moda, e que cultiva hortaliças e frutas orgânicas para os pratos de sua cozinha. Com esse pai tudo é uma festa, o que põe as mães sob uma luz menos brilhante.

Ele, por sua vez, está encantado com aqueles filhos que ele nem desconfiava que tinha, prontos, bonitos e sem problemas. O famoso “Édipo”vai comparecer nas vidas deles, fazendo a jovenzinha retraída descobrir a sexualidade e a rebeldia e o garoto, a competição com o pai e o ciúme.

As mães também se envolvem com aquela novidade na vida deles e, cada uma à sua maneira, vai ter que tomar uma atitude.

O filme é cativante. Muito graças à atuação dos cinco atores principais que se colocaram de corpo e alma nos personagens.E também devido ao roteiro muito bem escrito pela própria diretora e Stuart Blumberg.

Lisa Cholodenko vive uma situação parecida com o seu filme na vida real. Ela é casada com a musicista Wendy Melvoin e as duas tem um filho concebido por inseminação artificial.E é claro que se preocupa com isso. Em seu roteiro as mães conseguem educar muito bem os filhos mas existem situações até engraçadas, por exemplo quando Nic e Jules se perguntam se o filho Laser seria "gay".

Talvez seja dessa vez que Annette Benning ganhe o seu Oscar, prometido a ela desde a indicação por “Beleza Americana”(1999) ou Julianne Moore emplaque o seu, depois de quatro vezes preterida na noite da festa do cinema em Hollywood. Ou quem sabe seja possível que as duas sejam indicadas em dupla, como já se viu acontecer no passado, por exemplo, com Geena Davis e Susan Sarandon em “Thelma e Louise”( 1992).

“The Kids Are All Right”causou sensação em todos os festivais de que participou e foi sucesso de bilheteria nos Estados Unidos.Vamos ver como reage o público brasileiro.

Lidar com situações de vida real e preconceitos frente às neo-realidades da família e do casamento é cada vez mais um assunto para todos nós. Há no Brasil pessoas que julgam com muita severidade opções diferentes daquelas escolhidas por seus pares. A esses eu recomendaria vivamente o filme. Pode surpreender e fazer bem a pessoas que nunca se aproximaram do assunto com mais leveza e simpatia.

domingo, 7 de novembro de 2010

Ondine






“Ondine”- Estados Unidos, 2010

Direção : Neil Jordan







As sereias são seres mitológicos muito antigos. Já na época dos primeiros gregos falava-se delas como a incorporação da mulher fatal. Seu canto levaria os pescadores à morte. Os homens seriam seres indefesos face à atração do seu canto pois, ouvindo-o, atiravam-se às águas, afogando-se em busca das delícias prometidas pelo seu canto sedutor.

O mais famoso herói da Grécia antiga, Ulisses, teria sido o único mortal a ter conseguido escutar o canto das sereias e sobrevivido graças ao estratagema de ensurdecer os marinheiros com cera de abelhas nos ouvidos e atar-se com cordas ao mastro da embarcação que rodearia a rocha das sereias. Escutado o canto e poupado da morte pelos marinheiros “surdos”, que não o desataram do mastro, já que não ouviam suas súplicas, Ulisses representa o homem inteligente que consegue satisfazer os seus desejos, sem atrair para si a morte invejosa.

É com uma versão dessa história que brinca o filme ”Ondine”.

Estamos na Irlanda de Neil Jordan, diretor dos famosos “The Crying Game” (1992) e “Entrevista com o vampiro”(1994 ). É ele que assina a direção do filme que usa o nome das sereias da França, que significa “aquelas que vem do mar”.

Estrelado pelo ator irlandês Colin Farrel, o filme “Ondine” conta uma história na qual um pescador, Syracuse, lança uma rede ao mar e pesca uma “sereia”, vivida pela bela cantora de origem polonesa, mas nascida no México, Alicja Bachleda.

A filha do pescador, Annie (Alison Barry), que sofre de insuficiência renal, menina inteligente mas carente, que mora com a mãe e vive numa cadeira de rodas, acredita que a mulher pescada pelo pai é uma “selkie”, ou seja, uma foca/mulher que, desvestida de sua pele, a enterra para poder viver um romance no mundo dos humanos, por sete anos. O melhor disso tudo seria que o desejo de uma dessas “sereias”conseguiria transformar a pobre Annie, que usa uma cadeira de rodas, em pessoa saudável e ao mesmo tempo curar o alcoolismo do pescador , seu pai, por amor.

Estamos longe da “sereia” fatal da Grécia. O mito da “selkie”, derivado daquele que gerou a sereia do mar Egeu, seria regenerador na Escócia e Irlanda.

A bela fotografia de Christopher Doyle aumenta o poder de sedução da lenda e faz com que Ondine seja no filme o centro de atenções do pai e da filha.

Sentimos, porém, que algo vai mal porque a fotografia abusa dos tons aquosos turvos e das silhuetas escuras que aumentam o mistério em torno à verdadeira identidade de Ondine.

Mas a história encanta até o fim porque o mundo das águas impera com sua magia e esperança, através dos olhos de uma menina que ama o pai e que quer vê-lo feliz e domesticado por uma criatura da natureza selvagem, uma foca encantada, uma “selkie”, que a faria tornar-se saudável e feliz. Porque ninguém melhor que uma criatura dessas para entender o desejo de Annie de voltar a andar pelas próprias pernas.

O tema do ser encantado, que libertado, concede desejos aos humanos responsáveis por essa liberdade, tal qual o gênio da lâmpada de Alladin, é base de muitas histórias que até hoje são contadas às crianças por adultos que ainda se lembram delas.

“Ondine”, o filme que fala do mundo dos seres das histórias míticas, pode agradar a muitos humanos românticos, que ainda acreditam e esperam que seus desejos se realizem, de uma forma ou de outra.


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A Suprema Felicidade






“A Suprema Felicidade” – Brasil, 2010

Direção: Arnaldo Jabor









Voltar a filmar foi a suprema felicidade para Arnaldo Jabor.

Sente-se isso ao longo de todo o filme, o primeiro depois de mais de vinte anos de auto - exílio da terra do cinema.

Memórias como tema, ele volta ao passado no início do filme. Estamos no Rio de Janeiro do final da Segunda Guerra, quando ele, criança, começava a observar o mundo ao seu redor com olhos curiosos e pensativos.

“_ Levanta meu filho. Acabou a guerra!”, diz a mãe ao menino.

Todos saem para as ruas onde há um Carnaval misturado com um sábado de aleluia. A meninada malha Hitler como Judas. O pai, com o uniforme da FAB, dá tiros de revólver para o alto. Momento de alegria e luz.

Na tela, contra um cartão postal do Rio de Janeiro em preto e branco, destacam-se as letras coloridas do título do filme.

E é esse contraponto entre memórias vivas e coloridas e outras, mais desbotadas, que vamos ver por mais de duas horas. Aqui, o corte na sala de montagem, poderia ter deixado de fora alguns trechos menos felizes do filme. Mas digo menos felizes no sentido de menores, toscos até, quando a vontade de fazer rir prevalece e um deboche geral turva a cena.

Jabor é um excelente cronista e gosta de falar sobre si mesmo. Seus leitores já sabiam quase tudo que o filme conta. Em seus textos, ele consegue ser cinematográfico usando só palavras. Mesmo quando é contundente mantém a classe, apesar da prolixidade.

Ora, isso fica prejudicado no filme porque os atores conduzem com estilo dramático diferente os seus personagens. Ora farsa, ora drama realista. Por exemplo, Jorge Loredo (o padre que fala sobre o "vício solitário") ou Elke Maravilha, a avó “polaca”, criam um tom de circo, enquanto outros como Mariana Lima, a mãe ou Maria Flor, a “pinup” espírita, descambam para o melodrama e outros ainda, como os três Paulinhos (Caio Manhente, o menino, Michel Joelsas, o adolescente e Jayme Matarazzo, o mocinho) e o pai (Dan Stulbach, ótimo como sempre) , optam por uma interpretação mais realista. Escolha do diretor ou direção confusa de atores?

Também por isso, cria-se uma colcha de retalhos com pouca ou nenhuma costura entre os episódios que são contados. Faltou trabalhar o roteiro? Jabor tinha pressa em voltar ao cinema?

O próprio diretor se justifica em entrevista à Folha:

“Os filmes atuais são obcecados pelo enredo. O que tem de felliniano no meu filme é que as sequências se somam, sem que uma explique, necessariamente, a outra.”

Pode até ser.

Mas para mim, o personagem do avô criado por Marco Nanini, com a habitual força e espontaneidade, é o destaque e a salvação de “A Suprema Felicidade”. Nele reside o melhor Jabor. Cabe ao avô conduzir o filme com empatia e calor, afastando-se tanto do melodrama quanto da caricatura e mantendo-se o mesmo, apesar da passagem do tempo. Memória afetiva conduzindo a câmera e a alma do diretor.

Tammy Di Calafiori também brilha com a criação singela e sexy de sua Marilyn. Dublando a trágica musa, ela empresta à personagem um frescor original.

Ela e Jayme Matarazzo são os responsáveis pela cena mais bonita do filme, na minha opinião. Um amanhecer em Copacabana tinge de tons rosa os corpos jovens e nús, entregues ao depois do amor. Raro momento romântico, num filme onde as mulheres não primam pela presença bela.

Arnaldo Jabor em "A Suprema Felicidade" não filmou um "tempo de delicadeza" como canta a música de Chico Buarque ao longo do filme. Aliás, a canção aqui é apenas música sem palavras...

Mas como as memórias subjetivas ou construídas são do Jabor, como diretor ele nos oferece o filme que quis fazer, depois de tanto tempo pensando nele.

"A Suprema Felicidade" é, para mim, um filme irregular que pode agradar aos fãs do colunista Arnaldo Jabor mas que pouco acrescenta à sua obra de cineasta.


sábado, 23 de outubro de 2010

Como esquecer





“Como esquecer”, Brasil, 2010

Direção: Malu de Martino



Ficou claro, ultimamente, que temas polêmicos para os brasileiros como a homossexualidade e o aborto, precisam ser discutidos em espaços mais amplos, favoráveis à reflexão.

Nessa linha, a diretora de “Como esquecer”, Malu de Martino, parece não temer a excomunhão e enfrenta os preconceitos de frente.

Seu filme, baseado no livro “Como esquecer – Anotações Quase Inglêsas”, de Myriam Campello, conta a história de Julia, professora de literatura inglesa que chora a perda de um amor, Antonia.

A bela Ana Paula Arósio encarna Julia, uma mulher desglamorizada que não consegue esquecer aquela que a abandonou. Entrega-se a um masoquismo explícito, ferindo-se e pensando em morrer. Um luto patológico.

Para interpretar Julia, Ana Paula aparece de rosto lavado, olheiras, cabelo sem brilho e sempre preso, vestida em roupas escuras e largas. Ela é alguém que não quer conformar-se. Afasta as pessoas. Não quer consolo. Fechou-se para a vida.

Em “off”, a voz de Julia atua revelando mais a sua personagem, dando um caráter literário ao filme. Às vêzes esse recurso fica exagerado, outras vêzes cai bem.

“Desde o dia em que Antonia foi embora da minha vida eu me pergunto: o que é o contrário do amor? O ódio? Não. Para mim é uma perplexidade ferida de onde só vou conseguir escapar com a ajuda de quem me abandonou. O que será o contrário do amor?“, ela pergunta.

Hugo (Murilo Rosa), homossexual assumido, ator amigo de Julia, propõe irem morar em uma casa em Pedra de Guaratiba, perto do mar e do sol. Ele também está de luto. Seu companheiro morreu.

Aos dois junta-se Lisa (Natália Lage) que, abandonada grávida pelo namorado, faz um aborto e sofre também com a perda.

Julia, retraída e inconsolável, diz em “off”:

“Dividir a casa com outras pessoas pode nos dar um calor de rebanho mas é também uma perturbação contínua.”

Ou ainda : “Até os amigos íntimos não agüentam nosso sofrimento...Faz lembrá-los de dores passadas ou que virão...”

Mas o fato é que o tempo passa, a aluna Carmem e a pintora Helena (Arieta Correa) se aproximam de Julia e ela começa a respirar melhor e a sair da casca protetora que construira para si mesma. E então as emoções penetram e acendem luzes na alma de Julia que se surpreende consigo mesma:

“O amor exige muito e eu tenho pouco para dar...”

“Como esquecer” fala do luto, da impossilidade do amor mas também do trabalho interno necessário para suplantar uma dependência mórbida e escapar do egoísmo extremo que nos aprisiona e nos tranca fora dos prazeres quotidianos nas trocas com outros seres humanos.

“Já conheço os passos dessa estrada,

Sei que não vai dar em nada,

Seus segredos sei de cor...

Já conheço as pedras do caminho

E sei também que aí sozinho, eu vou ficar

Tanto pior...”

Elis Regina canta “Retrato em branco e preto”de Tom Jobim e Chico Buarque na abertura do filme. A música vai soar ao longo dessa história e acompanhar a dor dos “embates amorosos catastróficos”, como diz Julia.

Mas nos letreiros finais, k. d. lang fecha o filme com “Coming home”que canta uma tristeza doce, despertada pelas lembranças de infância de Julia que vão certamente ajudá-la a melhor conhecer a si mesma, libertando-a para novas escolhas.

O maior mérito de “Como esquecer” é humanizar preconceitos e por isso mesmo, desconstrui-los.

domingo, 17 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2



“Tropa de Elite 2 “- Brasil, 2010

Direção : José Padilha





“Apesar de possíveis coincidências com a realidade, este filme é uma obra de ficção”, adverte o letreiro que aparece na tela ainda negra. E já nos assalta no escuro o barulho de armas pesadas sendo carregadas.

Com quase três milhões de espectadores na semana de lançamento, “Tropa de Elite 2” é um campeão de bilheteria no mercado brasileiro de cinema. E, para evitar a pirataria que aconteceu com o primeiro filme, esse aqui foi distribuído pelo próprio diretor, José Padilha.

Esse sucesso nacional é um filme cruel, violento e competente. São imagens que petrificam, suspendem a respiração, grudam espectadores em suas poltronas. Assustam.

Muito sangue, barulho ensurdecedor de tiros, homens de uniforme preto armados correndo atrás de homens de shorts e camiseta armados, blindado negro subindo o morro e passando por cima de tudo, helicóptero qual ave de rapina matando sem dó nem piedade, o horror de corpos incinerados... Guerra.

O capitão Nascimento está de volta. Wagner Moura faz o personagem com o talento de sempre mas, há um tom diferente em sua voz grave, em “off”, narrando os acontecimentos. Coronel do Bope e logo Subsecretário de Segurança do Rio, ele mudou e vai mudar ainda mais durante o decorrer dos anos que o filme cobre.

O contraponto ao coronel Nascimento é o Fraga (Irandhir Santos), o defensor dos diretos humanos. No início do filme parece que ele é o palhaço da história. E o público ri do gordo na TV “macaqueando” o Fraga. Mas a trama desse filme é mais complexa que a do primeiro. Agora, o coronel Nascimento vai ter que rever muito daquilo em que acreditava piamente. Uma das certezas que vai ser abalada envolve seu filho que agora mora com a ex-mulher e seu marido, que, por ironia do destino é o Fraga, defensor dos direitos humanos desprezados por Nascimento.

Em “Tropa de Elite 2” há uma luta pessoal do ex- capitão do Bope contra o que ele chama de “sistema”, o maior responsável por tudo que há de ruim no Rio e que detém o poder e o dinheiro do tráfico. “O inimigo agora é outro” é o subtítulo do filme. Nascimento abriu o olho.

Na história da bandidagem e seus chefões no Rio de Janeiro houve uma troca de poder. Os traficantes deram lugar às milícias de policiais corruptos, protegidos e a mando de um poder político ganancioso e covarde, que compra votos, traindo a democracia. Essas odiosas milícias cariocas extrapolam o tráfico de drogas e hoje controlam tudo no morro e periferia do Rio.

Mais assustadores até que o próprio tráfico, vendem proteção. A máfia carioca.

E o povo da Cidade Maravilhosa?

Os moradores das favelas do Rio, na sua maioria gente de bem, que trabalha e sobrevive com dificuldade, aparece de relance no filme, assustados, se escondendo dos “manda-chuva” do crime, que encenam batalhas campais, matando quem se opõe a eles.

O povo carioca é a grande vítima desse “sistema” que enlouqueceu, perdeu os limites e institucionalizou o deboche, a malícia e o cinismo.

Mas a pergunta é: todo político é venal? Claro que não. Como quase todos os moradores do morro também não são bandidos. E esse é o limite de “Tropa de Elite 2”. Quando generaliza demais, perde a consistência e o poder de denúncia.

Sabemos todos que temos uma saída dessa situação perversa. Por exemplo, as Unidades Pacificadoras já instaladas nos morros cariocas. De dentro, protegem os cidadãos.

Mas não sejamos ingênuos. Claro que todos sabem que essa deturpação do estado de coisas na qual a polícia é que é o bandido, só vai acabar no dia em que a polícia for mais valorizada, bem paga e controlada por um Estado que exige ordem e recompensa quem faz a proteção do cidadão.

O Mal sempre vai existir entre nós. Mas vontade política do Bem também existe e existirá sempre.

Cabe a cada um de nós informar-se, abrir os olhos, separar o joio do trigo e exercer o direito do voto de forma consciente para eleger políticos que tenham ética, responsabilidade e, principalmente, compaixão do pobre povo brasileiro que não merece sofrer nas mãos de oportunistas.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Comer Rezar Amar



“Comer Rezar Amar” – “Eat Pray Love”, EUA, 2010

Direção : Ryan Murphy





A vontade de sair mundo à fora para buscar respostas quando se vive uma crise, já passou pela cabeça de muita gente. Aliás, o tema inspirou a criação de personagens célebres que fizeram viagens iniciáticas tanto em livros quanto em óperas e filmes.

Elizabeth Gilbert, escritora e habitante de New York, uma das cidades mais cosmopolitas do mundo, também teve a idéia, fez a viagem e escreveu o livro.

“Comer Rezar Amar” virou bestseller e encantou principalmente leitoras no mundo todo.

Agora é filme, dirigido com bom gosto por Ryan Murphy, que veio do seriado de sucesso na televisão, “Glee”, e é estrelado pela charmosa e simpática atriz Julia Roberts e pelo “gatão” latino Javier Baden.

Quase nove milhões de livros vendidos até agora, falam a favor da escritora que sabe seduzir, principalmente leitoras. Até por isso alguns críticos chamaram “Comer Rezar Amar” de “filme de meninas”. Mas acho que meninos também podem gostar. Afinal, belas paisagens em lugares românticos e histórias de amor agradam a todo mundo que vai ao cinema.

Dividido em três partes, o filme, muito fiel ao livro, conta o ano sabático de Liz Gilbert, através de peripécias acontecidas na Itália, India e Indonésia. A escritora escolheu o roteiro enquanto convalescia de um complicado divórcio. Conta ela no livro que emagreceu sofridos quinze quilos no processo, o que explica o foco em comida como sua primeira escolha de trajeto.

E preparem-se para um festival de closes apetitosos em massas, risotos, pizzas e sorvetes. Tudo lindamente apresentado e comido com gosto por uma Julia Roberts fazendo uma mulher que recupera o viço e o prazer de viver. E mais ainda, enquanto comia, Liz aprendia o italiano, língua que lhe dava tanto prazer quanto a comida e a reconciliava com os afetos e a comunicação gestual, nas fotogênicas vielas romanas. Uma festa para os sentidos.

A India, objeto preferido de consumo de todo “globetrotter” minimamente sofisticado, inspira a parte mística do filme, já que Liz resolve ficar no “ashram” de uma guru famosa, desistindo do turismo. Nem Taj Mahal, nem Ganges, nem Rajastão.

No livro, a escritora passa para o leitor suas experiências com a descoberta da meditação e da sabedoria do hinduísmo. E os sacrifícios envolvidos nisso. Horas e horas em posição de lótus, acordar às 4:30 da manhã para rezar, agüentar picadas de mosquitos famintos em um calor de rachar além de lavar todo o dia o chão do templo, acabam mostrando a Liz o que ela viera procurar na India.

No filme, a ênfase é posta em sua relação com o texano melancólico Richard (feito por Richard Jenkins, ator sempre competente), que promove “insights” em Liz com seus comentários bem colocados e a garota Tulsi, que dá o colorido indiano ao filme.

E na terceira parada, a ilha de Bali, na Indonésia, com praias e campos de arroz de um verde inesquecível, é o cenário perfeito para Liz colocar em prática tudo que tinha aprendido em sua peregrinação até aqui.

Afinal, amar e ser amado é coisa primordial para seres humanos que buscam realização. E, para ela, é o reconhecimento de que suas feridas amorosas estavam curadas.

Tenho ouvido críticas ao sotaque de Javier Baden que faz o brasileiro do filme. Ora, sugiro que prestem mais atenção no de João Gilberto cantando “ ’S Wonderful” que toca como fundo de uma cena romântica. Bem “macarrônico”, o inglês do João em nada prejudica o show de afinação e balanço de bossa que ele dá. Pensem nisso e dêem uma chance ao charme latino.

Aliás, a trilha sonora escolhida é para comprar e ficar ouvindo sem parar. Vai de Mozart à bossa nova.

“Comer Rezar Amar”, sem ser um filme excepcional, agrada a quem também gostaria de fazer uma viagem dessas buscando respostas para seu auto-conhecimento e encontrando ainda mais prazeres na vida.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dois Irmãos






Dois Irmãos - Dos Hermanos, Argentina/ Uruguai/ França, 2010

Diretor : Daniel Burman





Todos nós conhecemos o Caim e o Abel que vivem em nosso mundo íntimo. São eles os responsáveis tanto pelos momentos de amor fraterno, quanto pelo ódio das lutas fratricidas.

Tão universais quanto o Édipo, os irmãos bíblicos são o tema do novo filme do jovem diretor argentino Daniel Burman, conhecido entre nós por “Ninho Vazio”(2008), que trata do casal sem os filhos que partiram para a vida e “Abraço Partido”(2004) que lida com a questão do pai ausente.

Adaptado do livro “Villa Llaura” do escritor e também roteirista Sergio Dubcovsky e filmado em Buenos Aires e Carmelo, no Uruguai, “Dois Irmãos” é uma tragicomédia que conta com dois excelentes atores argentinos, Graciela Borges e Antonio Gasalla.

A história é simples e se ocupa de dois irmãos, já entrados em anos, em tudo opostos entre si. Enquanto Marcos aceita seu destino com o coração aberto apesar de alguma mágoa, Susana tenta, através de perucas, maquiagem, figurinos excêntricos e andar desenvolto, manter a aura de beleza e viço da mulher que ela foi um dia e que quase não está mais ali. Os dois chegaram a uma idade em que, dificilmente, a vida dá uma virada para melhor.

Susana, corretora de imóveis extrovertida e egoísta, passou sempre por cima do irmão Marcos, tímido e generoso, a quem entregou o trabalho de ocupar-se da mãe velhinha. Quando ela morre, Susana vende o apartamento em Buenos Aires, apropria-se do dinheiro e convence Marcos a mudar-se para Carmelo, balneário pobre no Uruguai.

Relutante, Marcos escuta a irmã dourar a pílula, enquanto atravessam o rio da Prata, na balsa que os leva ao país vizinho:

“-Você precisa pensar que, em Villa Llaura, vai passar seus últimos dias em um lugar de sonho.”

Tão dócil com a irmã como tinha sido com a mãe de ambos, Marcos aceita a troca de países e volta ao antigo trabalho de ourives. Mas, genuinamente aberto para a vida, durante um passeio pelo povoado simples, encontra o sonho verdadeiro, que era cruel mentira na boca da irmã mal intencionada.

Mais uma vez, através da personagem Susana, Burman debruça-se sobre o panorama da classe média decadente mas que não perde a pose na cidade portenha.

O Brasil entra na história através de um episódio engraçado em que, em uma festa da embaixada, os irmãos, qual primos pobres, enchem a bolsa e os bolsos de petiscos e frutas brasileiras.

O diretor argentino, como é seu estilo, filma essa história com delicadeza. Há um olhar carinhoso e otimista sobre a vida, com o qual nos conforta, porque faz pensar que a velhice não precisa ser, necessáriamente, feia e solitária.

A cena final encanta pela doçura e pela beleza do rio que se chama da Prata e que aqui faz juz ao nome que tem.

E, quando passam os créditos finais, não saiam correndo do cinema porque os velhinhos se divertem, vestidos a caráter para um sapateado ao som de “Put it on the Ritz”.

E a gente vai para casa acreditando, como Burman, que a vida pode sempre melhorar, dependendo, claro, do nosso talento para tanto.

Ou, como disse Graciela Borges, a Susana de “Dois Irmãos” em entrevista no Brasil:

”- O tempo nos ajuda se a gente absorve tudo que a experiência nos ensina.”

domingo, 26 de setembro de 2010

Wall Street - O dinheiro nunca dorme






“Wall Street – O dinheiro nunca dorme”, Estados Unidos, 2010

Diretor : Oliver Stone





Os megaespeculadores, assim como os tubarões, nunca dormem. Sempre atrás de fazer dinheiro a qualquer custo, gananciosos e aéticos, se dão bem seja nas “bolhas” do mercado financeiro, seja com as crises que acontecem de tempos em tempos.

Esse é o universo que Oliver Stone revisita em seu “Wall Street – O dinheiro nunca dorme“, ressuscitando seu personagem mais famoso, Gordon Gekko, que valeu o Oscar de melhor ator para Michael Douglas em 1988.

No primeiro filme, Gekko, rei de Wall Street, criava sua célebre frase “a ganância é boa”. Era 1987 e Oliver Stone retratava a época dos “yuppies” e da cobiça pelos bens de consumo. Ter um apartamento no melhor lugar da cidade, o melhor carro, a loura mais bonita e gastar dinheiro à vontade, era o sonho americano da época. Mas para Gekko virou pesadelo e ele acabou na prisão por crimes financeiros.

O novo filme começa em 2001 com o mesmo Gordon Gekko saindo da penitenciária onde ficara por oito anos. Ninguém o espera na saída. Visivelmente decepcionado, toca a vida.

Passam-se sete anos.

Estamos em 2008 e constatamos que, como bom tubarão, Gekko não desanimou. Vende o livro que escreveu na cadeia usando sua frase como título, agora com uma interrogação no final e dá palestras em universidades, divertindo a nova geração com suas tiradas irônicas.

Oliver Stone escolheu, como centro de seu novo filme, a crise econômica global de 2008 que levou ao colapso o sistema bancário americano.

O filme tem o mérito de mostrar claramente, mesmo para quem não entende de altas finanças, como se formou o que ficou conhecido como “subprime”. E Susan Sarandon dá um show de interpretação, fazendo a ex-enfermeira que vira corretora de imóveis e que, entrando no jogo das penhoras em cima de penhoras das casas que compra, se vê obrigada a apelar para o filho, porque chega um momento em que não consegue pagar as prestações no banco.

Mas há uma novidade em “Wall Street 2”. Nesse segundo filme há uma nota de otimismo com relação ao ser humano.

Em Manhattan não há sómente megaespeculadores e jovens corretores ambiciosos querendo ganhar bônus milionários. Gekko tem uma filha, Winnie (Carey Mulligan), que não quer ver o pai nem pintado e que escreve em um site sem fins lucrativos. Ela namora um corretor chamado Jake (Shia LaBeouf), que gosta de dinheiro mas se interessa por energia limpa. Ele se conscientiza da ganância criminosa de seus pares quando o banco em que trabalha é induzido a uma quebra de modo fraudulento. Em conseqüência disso, seu chefe e mentor se suicida (Frank Langella, excelente). Jake quer vingá-lo.

“Essa é uma história de família. Sobre pessoas buscando o equilíbrio entre o seu amor pelo poder e pelo dinheiro e sua necessidade de serem amadas por alguém”, diz Stone.

Dinheiro traz felicidade? Pode até ser. Mas, o jogo voraz da ganância pelo dinheiro a qualquer custo e a qualquer preço, traz também muita desilusão e um vazio feroz. O cínico personagem Bretton James (Josh Brolin) demonstra essa equação em que, da noite para o dia, a queda acontece e ele está sozinho no vácuo que construiu.

A cena mais irônica, na opinião do diretor, passa-se no Olimpo dos poderosos, o Metropolitan Museum, onde acontece um jantar beneficiente. Lá é a arena onde competem os muito ricos, através do brilho coruscante dos quilates nos pescoços e orelhas das mulheres na sala imponente. Desafiam-se e trocam informações privilegiadas que podem levar as ações de uma empresa a subir ou cair vertiginosamente.

Gekko, que conseguiu a entrada de U$10.000,00 com o namorado da filha comenta:

“Se jogassem uma bomba aqui hoje à noite, não sobraria ninguém para governar o mundo.”

Alguns viram no final de “Wall Street – O dinheiro nunca dorme“ um cacoete americano. Para mim, Oliver Stone, que admirava seu pai, corretor da Bolsa de New York dos anos 30 aos anos 70, faz uma homenagem aos homens de bem que, também, como os tubarões, nunca deixarão de existir.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Baarìa - A porta do vento


“Baarìa – A porta do vento”, Itália, 2009
Diretor : Giuseppe Tornatore


A Sicília é uma ilha que hoje faz parte da Itália mas tem história própria de esplendor e decadência.

No Vale dos Templos, próximo a Palermo, podem ser visitadas ruínas que datam do século V AC. Ao longo dos milênios, esses monumentos e outros mais antigos ainda, viram a ilha ser invadida pelos mais diferentes povos: fenícios, gregos, romanos e árabes.

Com todas essas influências, e apesar delas, a Sicília de hoje já viu tempos melhores. Terra de deuses, os heróis ainda caminham por lá, mas perdidos, decadentes, chorando suas derrotas. E o povo siciliano?

Giuseppe Tornatore, o grande diretor italiano de filmes como “Cinema Paradiso”(1988), Oscar de filme estrangeiro, “O Homem das Estrelas”( 1995) e “Malena”(2000) com a belíssima Monica Bellucci, parece querer contar essa história, situando-a durante o século XX, em seu filme “Baarìa - A porta do vento”.

Nascido nos anos 50, na aldeia siciliana que dá nome ao filme, Tornatore abre gavetas e baús da família para contar o passado e diz, aos jornalistas que o entrevistaram, que “Baarìa”é seu filme mais pessoal.

Alguns criticaram o diretor, que também assina o roteiro, dizendo que o filme é superficial, decorativo, que apenas tangencia os episódios históricos e que não aprofunda nada.

Eu discordo porque penso que a intenção de Tornatore não foi contar a história com H maiúsculo. Antes, quer contar casos que ouviu de seus avós e de seus pais e os que viveu, ainda pequeno, em Baarìa, nome em dialeto local para Bagheria, cidadezinha que pertence à província de Palermo.

A memória afetiva, mais rica que a história tradicional, traz à tona uma Sicília que é a terra da infância, da maturidade e velhice de homens e mulheres que lutam para sobreviver com garras e dentes.

Tornatore faz aqui um painel de sua terra e sua gente, pintado com as tintas das lembranças que ele recolheu. Uma arqueologia sentimental.

Com pinceladas de realismo mágico e sob os trovões e dilúvios que se alternam com um sol cruel e tempestades de areia, um fluxo de imagens vai mostrando para os nossos olhos, sonhos e memórias que falam sobre os costumes, as crenças e as superstições do povo de Baarìa.

Assim, ouvimos os registros sonoros de gritos, choro e gargalhadas ecoando personagens de três gerações de uma família siciliana. O avô Cicco (Gaetano Aronica), pastor de ovelhas e cabras que tem paixão por livros, recita o poema épico “Orlando furioso”, para uma platéia de vizinhos fascinados. O filho, Peppino Torrenuova (Francesco Scianna), passa, ainda menino, pelos horrores da Segunda Guerra e do fascismo, testemunha o sofrimento dos camponeses explorados pela máfia, apaixona-se pela política e por Mannina (Margareth Madè, parecida com Sophia Loren e com a nossa Maria Fernanda Candido). E o neto, Pietro, cresce nos anos sessenta, faz passeata e tem paixão por cinema.

Esse retrato lírico da terra natal tem trilha sonora esplêndida de Ennio Morricone e direção de arte impecável de Maurizio Sabatini que reconstruiu Baarìa na Tunísia e sinaliza a passagem do tempo com sutileza e realismo.

Como não poderia deixar de ser, o cinema, paixão de Tornatore, é também personagem em “Baarìa”. E acompanhamos na tela o cinema mudo dos anos 30, os filmes de Fred Astaire nos anos 40, uma filmagem em Baarìa e Fellini sendo citado em uma carta de Peppino à família quando estava em Paris tratando de assuntos do Partido Comunista Italiano.

Uma auto-referência torna-se uma brincadeira com o público e envolve a atriz Monica Bellucci de “Malena”, que é citada na publicidade de “Baarìa”e faz uma micro-ponta, seduzindo os meninos e o professor de uma escola que acompanham mudos, pela janela, uma tórrida cena entre a bela atriz e o pedreiro de uma construção em frente.

Comovente história afetiva de um povo, narrada por um de seus talentosos filhos, “Baarìa”é um filme para ser degustado sem pressa e apreciado pelo coração.