sábado, 29 de novembro de 2014

Elsa & Fred



“Elsa & Fred”- Idem, Estados Unidos, 2014
Direção: Michael Radford

Mas já não vimos esse filme?
Já. Em 2005, Marcos Carnevale dirigiu a co-produção Espanha e Argentina, que fez sucesso de público e crítica, com China Zorrilla fazendo Elsa e Manuel Alexandre como Fred. O filme recebeu aqui o título “Elsa & Fred – Um Amor de Paixão”.
Nove anos depois, a mesma história é refilmada pelo inglês Michael Radford (de “O Carteiro e o Poeta – Il Postino”1994), com uma dupla conhecida: Shirley MacLaine, 80 anos e Christopher Plummer, quase 85. Os dois oscarizados. Ela por “Laços de Ternura”1983, ele por Beginners – Toda Forma de Amor”2010.
Mesmo sendo a mesma história, do viúvo rabugento que muda para o apartamento vizinho de Elsa, uma senhora excêntrica, fã de “La Dolce Vita” que Fellini dirigiu em 1959, o filme americano tem seu charme.
Só de fruir do privilégio de ver esses dois “monstros sagrados” atuando juntos, já vale a ida ao cinema.
Ela, que já foi “Irma La Douce”em 1963, empresta a Elsa uma sedução e encanto próprios, o que faz a plateia rir e se deliciar com as tiradas engraçadas da sua personagem, com toques que só Shirley MacLaine poderia dar.
Ele, apesar da extensa lista de filmes para o cinema e TV e peças na Broadway, talvez seja mais conhecido por seu papel em “Noviça Rebelde – Sound of Music”1965, o Capitão Von Trapp, pai dos meninos cantores que se casa com Julie Andrews, a governante. Com aquela voz doce e característica, faz com talento a passagem do velho pessimista para o homem gentil que aprende a apreciar a vida com Elsa.
A cena na Fontana di Trevi, em Roma, que no filme de Fellini mostrava Anita Eckberg sendo olhada em extase por Marcello Mastroianni, é repetida em “Elsa & Fred” com tanta doçura e graça, que a mudança da cor para o preto e branco da cena original, só percebemos um pouquinho depois. Como Marcello, só temos olhos para Shirley MacLaine, no vestido preto decotado chamando Fred para perto dela.
O elenco com bons atores como Marcia Gay Harden que faz a filha prepotente e George Segal como o médico amigo de Fred, ajudam a criar diálogos e situações que dão ritmo ao filme.
O amor aos 80 anos, já não causa tanto alarde como causou em 2005 com o primeiro filme. As novas plateias, que talvez nem conheçam a primeira versão latina, poderão emocionar-se com “Elsa & Fred” e perceber que a vida pode trazer boas surpresas até o fim.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Sétimo


“Sétimo”- “Septimus”, Espanha, Argentina, 2013
Direção: Patxi Amezcua

Na manhã e do alto, vê-se uma cidade com prédios, um parque, trânsito. Quando a câmara se aproxima de um carro, identificamos Ricardo Darín, que faz um advogado portenho. Conversa no celular com seu escritório, flerta galante com a secretária e ficamos sabendo que ele é separado.
Nesse dia, o escritório onde trabalha vai ter uma audiência num caso importante, que envolve pessoas endinheiradas mas não de boa fama. Precisam dele lá.
“- Todos tem direito à defesa”, responde ele à ex-esposa (Belén Rueda), que o questiona.
Todo dia, antes do trabalho, ele vai buscar os filhos na casa da ex e os leva para a escola.
Pela conversa dos dois, enquanto esperam as crianças se aprontarem, deduzimos que foi ela que quis a separação e que quer voltar para a Espanha, onde mora sua família.
Seu pai está doente e precisa dela.
Mas Sebastián não quer separar-se dos filhos e não concorda em assinar os papéis necessários para tal viagem.
As crianças, um menino e uma menina chegam e lá se vão correndo pelas escadas do prédio, enquanto o pai desce de elevador. É um jogo deles. Apostam para ver quem chega primeiro lá embaixo, na saída para a rua.
E começa um angustiante pesadelo para Sebastián. Quando ele desce, não encontra os filhos. As crianças desapareceram.
Ele sobe e desce as escadas à procura delas, chamando alto, pois pensa que estão brincando, mas não é brincadeira. Sumiram.
O telefone celular para emergências, que o filho tem na mochila, está desligado. O zelador do prédio, que estava na portaria, não viu as crianças passarem.
De agora em diante, todos são suspeitos para Sebastián.
O diretor catalão Patxi Amezcua, co-autor do roteiro, realiza um bom trabalho na criação do suspense. Atiça a curiosidade do espectador, que se envolve com o mistério. Afinal, o que pode ter acontecido com as crianças entre o sétimo andar de onde sairam correndo e o momento em que não foram mais vistas?
Ricardo Darín é daquele tipo de ator que preenche a tela. Seu pai amoroso, que ele coloca na frente do advogado, comove. As expressões faciais, o nervosismo, a impulsividade frente a cada novo suspeito, tudo ele desempenha com perfeição.
Contar com Ricardo Darín é um trunfo para o diretor, mesmo que haja falhas no roteiro.
“Sétimo” é um suspense bem feito, com um ator que é um monstro na interpretação de qualquer papel.
É bom entretenimento.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Boa Sorte




“Boa Sorte”- Brasil, 2014
Direção: Carolina Jabor

Toda Julieta tem o seu Romeu. Quase todo mundo conhece a história trágica desses dois na famosa peça de Shakespeare. É o primeiro amor, sendo vivido com beleza e drama.
Mas em “Boa Sorte”, a história de uma Julieta e seu Romeu, tem detalhes diferentes.
Nossa Julieta tem trinta anos e sabe que vai morrer logo. Está envenenada por um virus que não consegue combater. Os remédios não fazem bem a seu corpo depauperado e belo.
Romeu aqui tem a idade certa, 17 anos e ela, apesar de mais velha do que ele, vai ser o seu primeiro e grande amor.
Tudo se passa numa clínica psiquiátrica, onde ela está internada por causa de sua dependência de drogas.
Os pais de João, o Romeu de nossa história, preocupados com sua depressão, que ele combate misturando Frontal e Fanta Laranja, resolvem interná-lo na mesma clínica em que a avó excêntrica de Judite (Fernanda Montenegro, sempre o máximo), colocou a nossa Julieta.
Aliás as drogas, leves ou pesadas, são presença na vida de todos os personagens de “Boa Sorte”. Essa é uma pergunta que o filme faz: por que tanto remédio?
Deborah Secco teve que emagrecer onze quilos para ser Judite. Sua beleza ganhou ângulos, seu corpo perdeu curvas mas a sedução continua intacta, realçada pelo talento da atriz que se entrega com amor à personagem.
A câmara mostra o corpo dela sempre que pode e, mesmo magrinha e abatida pela doença, Judite resplandece com Deborah, com seu jeito de menina sexy que nunca perde a vontade de brincar e rir.
Já seu parceiro João (João Pedro Zappa), perdidamente apaixonado, vai viver meses, maravilhado, naquela clínica, paraiso de onde não quer sair, por causa dela.
A diretora Carolina Jabor, 39 anos, casada com Guel Arraes, também diretor e filha de Arnaldo Jabor, em seu primeiro longa de ficção, nos envolve com essa história de amor.
Com delicadeza, ela vai mostrando as cenas que, muitas vêzes, parecem sonhos. Amorosos mas também divertidos. Seus personagens não são amantes trágicos.
O roteiro de Jorge e Pedro Furtado é leve e jovem, apesar do tema dramático. Baseia-se num conto de Jorge Furtado “Frontal com Fanta”.
E as ilustrações de Rita Wainer são deliciosas.
“Boa Sorte” comove na medida certa. Não tem tristeza de mais nem de menos.
Vemos na tela a vida, com os elementos que não devem faltar para ela ter sentido: amor e sofrimento que leva a crescimento.
E saímos do cinema pensando nisso, ao som de Caetano Veloso, sempre um precioso detalhe a mais.


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O Ciúme


“O Ciúme”- “La Jalousie”, França, 2013
Direção: Phillipe Garrel

É inevitável. Com o amor, vem o ciúme. Um misto de sentimento de posse, medo de ser rejeitado, competição com os outros pela atenção do ser amado, traumas infantís e muito mais. O ciúme normal é sempre personalizado.
Já o ciúme doentio, traz com ele a marca da insanidade, da doença. Mostra melhor sua ligação com a inveja, o desejo de destruir.
Phillipe Garrel, no seu filme “O Ciúme”,  para falar desse sentimento, tem que falar daqueles que proclamam seu amor.
Clotilde chora. Percebe que Louis não a ama mais. A separação é o fim daquele casamento, uma prisão para Louis.
A filha pequena ouve as discussões e o choro da mãe, entre preocupada e ansiosa. Olha pelo buraco da fechadura. Vai perder o pai? Vai ganhar o pai só para ela?
Pai e filha se entendem. O Édipo saudável é vivido com intensidade pela garota, que faz alguns amuos ciumentos frente à nova mulher do pai, mas é facilmente conquistada pela habilidosa Claudia.
E os novos amantes fazem o roteiro de todos os que vivem a lua de mel do começo.
Mas logo, ela que é atriz desempregada, tem mais tempo para fabricar ciúmes. Sua auto-estima está baixa e não suporta que ele fale da nova peça que ensaia com Lucie, que não é indiferente a Louis.
Ele atrai a atenção das mulheres mas permanece fiel.
E Claudia começa a descompensar. E como pensa em deixar Louis, agarra-se a ele e faz cenas de ciúmes. O amor é para ela  uma necessidade de ter companhia, alguém que a cuide com mimos.
Vai a um teste para um papel no cinema mas é rejeitada. Então começa a atrapalhar a vida de Louis. São pequenos detalhes, mas adivinhamos que a ciumenta é quem vai trair.
Essa primeira parte do filme tem o título “Guardei os anjos” e a segunda, “Fogo na pólvora”, quando os sentimentos se intensificam.
Há um personagem marcante que aparece aqui. Um velho professor responde a Louis quando ele reclama de Claudia:
“- Ela te ama na medida da capacidade de amar que ela tem. Todos vivemos uma história pessoal. Barreiras, receios, dificuldades... Existem limitações  no amor...”
E quando Louis diz que ele não tem limites em seu amor por Claudia, o velho responde:
“- Cuidado Louis. Isso é perigoso...”
Phillipe Garrel, diretor do filme, é pai de Louis Garrel, o protagonista (ele também está em “Saint Laurent”, o filme de Bertrand Bonello). Anna Mouglalis, uma atriz sedutora, faz a amada de Louis e já foi Coco Chanel no filme de Jan Kounen.
Em preto e branco, “O Ciúme” é um filme curto, sofisticado e dirigido para plateias interessadas em investigações sobre a natureza humana.

domingo, 16 de novembro de 2014

Trinta


“Trinta”- Brasil, 2014
Direção: Paulo Machline

Quem nunca se empolgou com um desfile de escola de samba no Rio? A emoção daquele povo brilhando na avenida, ao som da bateria e do samba enredo, arrepia, quando dá certo.
Todo brasileiro, goste ou não de Carnaval, já ouviu falar de Joãosinho Trinta (1933-2011). Foi ele que mudou a cara dos carros alegóricos e dos sambistas. Seu trajeto foi duro, mas ele venceu. Consagrou-se como o maior carnavalesco do Brasil.
E “Trinta” conta a história, que pouca gente sabe, dos inícios da vida desse homem, que veio do Maranhão para ser bailarino no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Auto-didata, conhecia óperas, teatro, literatura e sonhava em dançar nos grandes balés, encenados no palco daquele teatro vermelho e dourado onde o filme tem início, com ele fazendo uma grande reverência para uma plateia virtual.
Foi nos anos 60 que tudo começou na vida dele. Muito “plié”, “grand jetés” e barra, para ficar sempre no fundo do palco? Pudera, ele tinha 1,48 m, físico pouco apropriado para um bailarino “étoile”.
Mas ele insistiu. E enfrentou o preconceito dos parentes, injuriados porque ele preferiu o balé ao emprego arranjado.
“- Em São Luís tá todo mundo falando que você é baitola. Uma vergonha para a sua família, João. Largou o emprego para quê? Para dançar? Por maquiagem na cara?” pergunta indignado o parente (Marco Ricca) que veio do Maranhão para censurá-lo.
Mas a estrela de João iria brilhar logo. Era seu talento que não cabia naquela repartição, nem no fundo do palco. Foi subindo e passou dos adereços e figurinos à cenografia do Municipal.
Foi então que aconteceu a grande virada. Fernando Pamplona (Paulo Tiefenhaler) brigou com o manda-chuva da Salgueiro e abriu o caminho para Joãozinho Trinta, que era seu assistente.Tinha sido a mulher de Pamplona, a primeira bailarina Zeni (Paola Oliveira) que aproximara os dois.
Quem fazia alegorias, passou a carnavalesco da escola vermelho e branca. Inspirou-se nas lendas que escutara quando criança no Maranhão natal e fez a Salgueiro campeã do carnaval de 1974.
No começo, parecia que tudo estava dando errado. Plumas não havia, espelhos também não.
“- Intelectual é que gosta de miséria. Pobre gosta de luxo!”exclamou irritado frente à má vontade de alguns.
A frase que o consagrou foi a alavanca para ele transformar o lixo em luxo e, ainda por cima, ganhar a admiração e o carinho do povo da escola.
Matheus Naschtergaele vive Joãosinho Trinta com força e emoção. O diretor Paulo Machline, que conheceu bem o personagem, não se enganou na escolha do ator.
E a trilha sonora do filme é outro acerto. Ouvimos de tudo, de Verdi a Noel Rosa, de Cartola a Chico Buarque. A música original é de André Abujamra, que pontua com eficácia a emoção ou o “stress” do momento.
“Trinta”, com uma impecável direção de arte e reconstituição de época, é uma homenagem merecida a um talento da arte popular brasileira.
Emociona.

sábado, 15 de novembro de 2014

Saint Laurent



“Saint Laurent”- Idem, França, Bélgica, 2014
Direção: Bertrand Bonello

Ele criou um estilo. Vestiu as mulheres com calças, com seus famosos “tailleurs-pantalon” e o “smoking”. Enfeitou-as de ciganas “bohémiennes” e luxuosas russas. Criou capas, “sahariennes”, casacos de pele coloridos, xales, botas, perfumes, bijuterias. O que você quisesse, tinha na butique “Rive Gauche”. Era a novidade do “pret-à-porter”, sofisticação da alta costura a preços acessíveis.
A história de Yves Saint-Laurent (1936-2008) já foi contada no filme de Jalil Lespert, no começo de 2014. Agora, o filme é de Bertrand Bonello, também de 2014 e vai representar a  França como candidato a uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro na cerimonia em Los Angeles em fevereiro de 2015.
De certa forma, os dois filmes se complementam. Contam quase que as mesmas passagens, as crises, as drogas, o sucesso financeiro graças a Pierre Bergé, seu companheiro e sócio de toda a vida, mas com quem teve uma relação conturbada. Também lá estão Betty Catroux, Loulou de la Falaise, Marrakesh, a mãe e os amigos dele.
Mas são filmes diferentes.
O primeiro, narrado por Pierre Bergé, depois da morte de Yves Saint-Laurent e no momento do leilão das peças do apartamento de Paris, é quase que só reverente.
O segundo, mostra o outro lado do estilista, com mais nuances. Não há narrador. Os anos aparecem na tela em  vermelho mas não seguem uma sucessão cronológica.
O primeiro começa em 1957, quando o rapaz, vindo da Argélia, entrou no atelier da Casa Dior em Paris.
Já o de Bonello, de chofre, leva-nos a um quarto de hotel em 1974, quando “M. Swann” (Proust inspira a escolha do nome) concede uma bombástica entrevista por telefone, contando sua dependência das drogas, que começou na época da guerra da Argélia, quando foi convocado pelo exército francês e a internação com eletrochoques para uma depressão que o levou a pesar 39 quilos.
Nunca publicada, proibida por Pierre Bergé, a entrevista levanta o véu que cobre a sombra, o lado escondido daquele que conheceu o labirinto das paixões, sua natureza tímida e frágil levando-o a se entregar a uma auto-destruição, nos braços dos mais fortes do que ele.
Mas, como já disse, a narrativa não segue cronologias. E voltamos ao atelier onde Yves Saint-Laurent avalia a “toile” de um vestido do qual arranca as mangas:
“- Agora sim. Simples, limpo e preciso como um gesto!”
Todos ali falam baixo, escutam música clássica e ele ajuda a montar o “look” de uma cliente que prova um terno de lã:
“- Acho um pouco masculino...”diz ela.
Um toque na gola, colares, um cinto brilhante e ele pede a ela (Valeria Bruni Tedeschi) que solte os cabelos:
“- Et voilà!”
A cliente muda, frente nossos olhos. Mais feminina e sensual.
Noites Chez Castel com Loulou de la Falaise (Léa Seydoux) e Betty Catroux (Aymeline Valade), a amizade com Andy Warhol e a mãe dele, sempre na primeira fila dos desfiles (Dominique Sanda). E o encontro com Jacques de Bascher (que dizem ter sido o grande amor de Karl Lagerfeld), de “summer”, bigode e sorriso perverso. É ele que vai apresentar Yves ao sexo sem nome e brutal. Bebida e pílulas à vontade.
Há algumas cenas na réplica do apartamento parisiense, decorado por Jacques Grange, de um bom gosto e classe inesquecíveis.
E o grande final é o desfile de 1976, a coleção russa, quando a tela se divide para que nossos olhos possam detalhar a beleza dos brocados, das sedas, das peles nos chapéus e nos coletes, xales com franjas, turbantes dourados e as mais belas cores nascidas de seus “croquis” de Marrakesh. Mas, ele mesmo, já não estava envolvido.
“Saint Laurent” mistura cenas da infância à velhice (Helmut Berger) desse ícone da moda, que marcou seu nome na história da imaginação e da elegância.
Bertrand Bonello fez um filme sem preconceitos e mergulhou fundo nos conflitos e desafios de seu personagem.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Uma Viagem Extraordinária



“Uma Viagem Extraordinária”- “The Young and Prodigious T.S. Spivet”, França, Austrália, Canadá, 2013
Direção: Jean-Pierre Jeunet

Aparentemente, este é um filme para crianças ou adolescentes. Ou para adultos com espírito juvenil, já que as aventuras mostradas são as de um garoto antiquado.
Nada disso. “Uma Viagem Extraordinária” é o oposto do que parece ser. E, para entender o filme dessa maneira, precisamos prestar atenção em quem é o narrador. O menino prodígio T.S. Spivet, 10 anos, vive um drama que se passa em cenários internos, em sua alma.
A família dele vive numa fazendinha no oeste dos Estados Unidos, mostrado por ele num mapa enorme.
Ilustrações infantis e outras inscrições que parecem complicadas vão aparecer ao longo do filme, como um charme a mais, muito bonitas no 3D.
Mas, a primeira coisa que ficamos sabendo, é que ele tem um irmão, Layton, gêmeo não idêntico.
Estranhamente, vemos uma cena onde T.S. faz uma apresentação de uma luta marcial, com a espada, num cenário vermelho.
“- Infelizmente, eu sabia que nunca seria um guerreiro...” comenta ele.
E vamos entender que o comentário tem a ver com o irmão, que é o preferido do pai, sempre com uma espingarda a tiracolo.
“- Ele atirava em tudo que se mexia...”
E tememos pela vida do gato na mira da espingarda, já sabendo quem é o guerreiro a que aludiu T.S.
O pai (Callum Keith Renie), alvo dos ciúmes de T.S., é descrito assim:
“- Meu pai nasceu com 100 anos de atraso. Tinha a alma de um cowboy.”
Seu escritório é uma sala de troféus, com bichos empalhados, que assustam o nosso herói.
A mãe (Helena Bonham Carter, atriz fabulosa), dra Clair, é uma excêntrica e suave especialista em insetos, completamente diferente do pai.
“- Como meus pais se apaixonaram é um mistério...”
E, de supetão, introduz o assunto principal:
“- Layton morreu no ano passado num acidente dentro do galpão. Ninguém nunca fala disso. Eu estava presente...”
E, a história da viagem que ele conta durante o filme, para ganhar um prêmio no Smithsonian Institute em Wahington, parece sair da imaginação de uma criança que quer chamar desesperadamente a atenção, da maneira mais complicada.
Não é à toa que, contando sobre ele e Layton serem gêmeos, ele diz:
“- Fui eu que fiquei com os neurônios.”
Já que o irmão ficara com toda a valentia e com o pai.
E o tal acidente, que faz crescer um clima depressivo na fazendinha, mostrada em cores de cinemascope, é  ponto central do problema de T.S. Spivet.
Sentindo-se culpado desde sempre pelos desejos proibidos de eliminar o irmão e ter pai e mãe só para ele, o menino encarna todas as crianças do mundo, vivendo a rivalidade fraterna.
E com que graça e beleza o diretor Jean-Pierre Jeunet, e co-autor do roteiro, inspirado no livro de Reif Larsen “O Mundo Explicado por T.S. Spivet”, conta essa história na tela. Ficamos encantados com o “Leonardo da Vinci de Montana”. O ator Kyle Catlett atua como gente grande.
E nós, na plateia, certamente vamos relembrar algumas das lutas fratricidas que vivemos. Mas, sem drama, apenas com um sorriso nostálgico. E esperando que elas desapareçam com a idade.



sábado, 8 de novembro de 2014

Interestelar


“Interestelar”- “Interstellar”, Estados Unidos, Inglaterra, 2014
Direção: Christopher Nolan

O personagem principal de “Interestelar” lembra Ulisses, o herói grego, no espaço. Mas também lembra o drama dos primeiros homens saindo de suas terras natais, nômades, em busca de um lugar melhor para viver. Pensamos nos vikings em seus barcos, lutando por novas conquistas, nos navegantes portugueses querendo chegar às Índias. E, assim por diante. A história da humanidade foi escrita por pioneiros, homens que ousaram sair de casa e tentaram voltar com boas ou más novas.
Em “Interestelar” o mundo está fadado à extinção. A poeira tudo invade. Voltamos à condição de um povo que vive do que planta mas grandes tempestades de areia ameaçam os homens e o fogo toma conta das plantações.
Cooper (Mattew McConaughey, ótimo), um fazendeiro que já tinha sido piloto da NASA, pai de Tom de 15 anos e de Murph, uma menina inteligente e curiosa de 10 anos, é chamado pelo professor Brand (Michael Caine, sempre convincente), para comandar uma missão destinada a encontrar um lugar para ser o novo lar da humanidade.
Vai com ele, Amélia (Anne Hattaway), filha do cientista, que faz assim a vontade do pai.
Para Cooper, entretanto, é muito difícil deixar a família e ele promete à filha (Mackenzie Foy quando criança e Jessica Chastain como adulta, duas atrizes competentes) que vai voltar.
O visual de “Interestelar” tem algo de “O Mágico de Oz”1939, dá uma piscadela para os velhos seriados da TV em preto e branco como “Star Trek – Jornada nas Estrelas”, inspira-se em “2001 – Uma Odisseia no Espaço” 1968, de Stanley Kubrik e “Solaris”1972, de Andrei Tarkovski e tem coisas de “Gravidade”2013, de Alfonso Cuarón.
Mas “Interestelar” tem vida própria e será lembrado pelas magníficas cenas no espaço, filmadas em cenários, sem recorrer aos efeitos do “chroma-key”, por outras ainda, nos planetas desconhecidos onde ondas do tamanho de montanhas causam mais medo que mil tsunamis e colinas geladas são geleiras sem fim (filmadas na Islândia). Ousa mesmo entrar num buraco-negro, onde Cooper vive uma situação exposta pela Física contemporânea, comunicando-se através de uma dobra no tempo/espaço e contrariando o que vulgarmente pensamos sobre o universo em que vivemos e provando que o amor é a maior força conhecida.
É longo, reclamam alguns. É difícil de entender, murmuram outros.
Mas não será assim para quem sente palpitar em sua alma aquela fagulha que levou a humanidade a sobreviver e progredir. E será comovente para quem sente no coração uma ternura pelo pai que ama a filha da maneira como Cooper ama Murph.
Christopher Nolan, 44 anos, que dirigiu “Inception - A Origem”2010 e a trilogia Batman, escreveu o roteiro com seu irmão Jonathan e mais uma vez encanta a quem é fascinado pelo cinema.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Boyhood - Da Infância à Juventude



“Boyhood – Da Infância à Juventude”- “Boyhood”, Estados Unidos, 2014
Direção: Richard Linklater

Prisioneiros do tempo, que segue sempre em frente, nossa vida movimenta-se em vários espaços, que se sucedem uns aos outros.Todo mundo vive assim.
“Boyhood” é um filme simples, porque é como a vida de cada um de nós, já que o ser humano é sempre o mesmo na base. Mas, ao mesmo tempo, o filme é muito sofisticado porque essa visão de um ser humano em perspectiva, através dos anos, é extraordinária.
Vemos desenvolver-se, perante os nossos olhos, acontecimentos escolhidos, com sensibilidade, da vida daquela família de mãe e seus dois filhos, com o pai aparecendo e desaparecendo, e ficamos íntimos daqueles personagens.
Mas claro que o menino é o centro. Mason ocupa o foco. A construção dele como pessoa vai se delineando com detalhes em nossa mente, durante as três horas do filme. Que, aliás, passam rápido como a vida.
Da criança de uns 6 anos, que olha o céu e pensa, não sabemos o quê, ao jovem que, mais apaziguado com os medos da adolescência, aos 18 anos, olha a câmara com um sorriso cúmplice, como se sorrisse para si mesmo, 12 anos se passaram. Não foi fácil em muitos momentos, mas assim mesmo ele chegou alí.
E sentimos uma ponta de pena de não continuar seguindo seus passos.
Richard Linklater tinha filmado “Before Sunrise - Antes do Amanhecer”em 1995 com Julie Delpy e Ethan Hawke, quando começou a pensar em “Boyhood”. E, quando o projeto começou, foram 39 dias de filmagem, quando conseguiam conciliar as agendas de Patricia Arquette, a mãe, Ethan Hawke, o ator fetiche de Linklater que faz o pai de Mason (Ellar Coltrane) e Samantha (Lorelei Linklater, filha do diretor). De 2002 a 2013 eles se reuniam, discutiam o texto escrito pelo diretor e filmavam 3 ou 4 dias. E iam mudando, amadurecendo, envelhecendo.
E, dessa intimidade anual com Ethan Hawke foi que surgiu a ideia de filmar os dois outros filmes da trilogia famosa, “Antes do Por-do-Sol – Before Sunset” de 2004 e “Antes da Meia Noite – Before Midnight” de 2013, sempre com o mesmo casal, um “Boyhood” sobre a relação amorosa.
Richard Linklater, 54 anos, escolheu a trilha sonora para marcar também a passagem do tempo. Assim, ouvimos desde Cold Play, Lady Gaga, Foo Fighters, Bob Dylan, Paul McCartney até três canções do nosso Moreno Veloso.
“Boyhood”, que ganhou o Urso de Prata em Berlim pela melhor direção, é um filme que já nasceu “cult”.

sábado, 1 de novembro de 2014

Mil Vezes Boa Noite


“Mil Vezes Boa Noite”- “A Thousand Times Goodnight”- Noruega, Irlanda, Suécia, 2013
Direção: Erik Poppe

A vida de um fotógrafo de guerra é dura e perigosa. Ele precisa estar presente no meio dos acontecimentos, onde a morte ronda.
Rebecca(Juliette Binoche) é fotógrafa profissional. Ela é americana e suas fotos de guerra ou de lugares onde pessoas correm perigo, são vistas em publicações importantes.
Quando o filme começa, ela está em plena ação, no Afeganistão, documentando uma cena estranha. Uma mulher jaz no fundo de uma cova, cercada por mulheres que rezam.
Mas não está morta. É retirada da cova e levada para cumprir um ritual. Ela vai morrer logo. E levar muita gente junto. Ela é uma mulher-bomba.
Numa espécie de transe, ela é colocada num carro e Rebecca pede para ir também, fotografando os últimos momentos da mulher que reza de olhos fechados.
Passam pelo centro de Cabul e logo há uma barreira policial. O carro passa sem problema mas, nesse momento, Rebecca grita:
“- Quero sair! Me deixem sair!”
Vendo ela saltar do carro ainda em movimento, os guardas pedem seus documentos. Ela mostra a credencial da imprensa. E sai correndo:
“- É uma bomba!”, grita Rebecca quando se dá conta de que a mulher vai se explodir na rua cheia de gente, crianças inclusive.
E o pior acontece. Ela é jogada longe com a explosão. A máquina fotográfica rola na areia ensanguentada.
Pânico ao redor. Fogo. Ela está surda. Automaticamente, pega a máquina e fotografa pessoas correndo, levando no colo seus mortos e feridos.
Rebecca cai. Presenciamos as imagens que ela vê  quando vive uma experiência de quase morte.
Acorda no hospital:
“- Onde estou?”
“- Dubai.”
Quando voltar para casa, na Irlanda, com o marido, ao encontro de suas duas filhas, vai começar outra guerra para Rebecca. Íntima e dilacerante.
Ela é considerada uma heroína pelos jornais de Dublin. Mas só os estranhos pensam assim. Não seu marido e suas filhas. Eles se sentem abandonados e rejeitados por ela.
Vai ser duro para Rebecca, interpretada com alma pela maravilhosa Juliette Binoche, pensar em mudar de vida. Afinal, ela é uma das cinco top fotógrafas do mundo, naquela especialidade difícil, de encarar a guerra e a morte.
“Mil Vezes Boa Noite” é um filme sensível, que propõe uma reflexão sobre a paz alienada e a guerra injusta que mata inocentes.

Relatos Selvagens


“Relatos Selvagens”- “Relatos Salvajes” - Argentina, Espanha, 2014
Direção: Damián Szifrón

Freud disse um dia: “O humor é um dom precioso e raro”. O pai da psicanálise mostra o seu humor sarcástico numa história real, acontecida em 1938, quando teve que deixar a Áustria, depois que sua filha Ana foi presa e interrogada pelos nazistas.
Ele foi obrigado a assinar um documento, dizendo que não sofrera maus tratos e, com ironia fina digna do humor negro, acrescentou com sua própria letra:“Posso recomendar altamente a Gestapo a todos.”
Ou seja, fazer humor é saber lidar com o sofrimento através de palavras que fazem rir. É transformar a tragédia em algo risível e assim, triunfar sobre a dor.
Um excelente exemplo desse modo de falar sobre as limitações e os desastres da vida humana é o filme “Relatos Selvagens”, que tem Agustín e Pedro Almodóvar como produtores.
Em seus seis episódios, todos ótimos, rimos da maneira como pessoas como nós mesmos, perdem as estribeiras quando tudo dá errado.
Os episódios, escritos e dirigidos por Damián Szifrón, 39 anos, que também participou da montagem, mostram um humor negro com o qual nos identificamos. Rimos porque nos vemos no papel daquele ser humano que, contrariado em seus desejos, vinga-se com uma graça nada politicamente correta.
Porque bem lá dentro, todo mundo é bastante malvado. E, com o filme rimos, ao invés de atuar essa maldade, que, por um curto espaço de tempo é permitida e incentivada.
“Relatos Selvagens” é imperdível. Não só como catarse mas para apreciar a inteligência de quem imaginou e escreveu histórias tão universais, que estão fazendo sucesso por onde passam.
As fotos de animais da África nos créditos iniciais já brincam com o título do filme. Vocês vão ver quem é selvagem aqui.
Tudo começa com contundência e impacto no episódio do avião, continua com uma mulher que toma as dores da outra, depois na estrada uma rixa deriva para um combate, enquanto que a burocracia leva Ricardo Darín às raias da loucura, num dos episódios mais latino-americanos do filme e um pai se desespera com o filho, para tudo acabar num casamento onde a noiva estressada, a ótima Erica Rivas, derrama sangue e lágrimas, fechando o filme com uma nota de bom coração.
Não dá para não gostar de “Relatos Selvagens”, que concorre pela Argentina a uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Vá ver correndo e solte suas feras, rindo muito com tudo que acontece na tela.