quarta-feira, 29 de março de 2017

A Bela e a Fera


“A Bela e a Fera”-  “The Beauty and the Beast”- Estados Unidos, 2016
Direção: Bill Condon

Que alegria rever “A Bela e a Fera” depois do livro, do musical da Broadway, do desenho animado de 1991, todos com o tema sempre presente no imaginário popular. Desde criança conhecemos essa história e não nos cansamos dela.
O filme da Disney é tanto um presente para as meninas que só viram o desenho quanto para as mulheres maduras que já viram tudo. Porque o conto é universal. Ensina que o amor vê com os olhos do coração.
E o visual do filme é caprichado. Bill Condon, roteirista de “Chicago” de 2002 e diretor de “Dreamgirls” de 2006, entendeu que a história com o tema da beleza e da esquisitice, tinha que ter um visual que prendesse a atenção. Ou seja, tanto Aghata, a fada disfarçada de velhinha que vai amaldiçoar o príncipe por não ser compassivo, quanto a rosa que vai fenecer e trazer medo e castigo, quanto a Bela, diferente das outras moças da aldeia e a Fera que amará a Bela, tem que ter um “look” de chamar a atenção. E acertou. O filme enche nossos olhos.
O castelo amaldiçoado, as pessoas que viraram coisas que cantam, dançam e se lembram dos velhos tempos, são o ponto alto. A Sra Bule e seu filho, xícara travessa, o relógio, o candelabro Sr Lumière, a soprano cômoda e o piano maestro são verdadeiros achados na composição do vestuário e da coreografia.
Emma Watson, como a Bela, tem o poder de transformá-la numa garota menos fútil, mais normal e, ao mesmo tempo, mais sofisticada do que as outras Belas que conhecemos. Ela convence como a mocinha que tem empatia pelo sofrimento de outras pessoas e que não se deixa seduzir só pelos belos olhos e a adulação de um homem. Ela gosta de ler. E quer encontrar alguém que a compreenda. E que seja tão esquisito quanto ela é aos olhos do pessoal careta da aldeia.
Por falar nisso, o amigo do narcísico Gaston, M. Le Fou, pode se dar ao luxo de ser um tanto “gay”. Esse é o  diferencial da história contada aqui. Cada um como Deus o fez.
E as canções que conhecemos, criadas por Alan Menken e Howard Ashman, como as novas que foram criadas para o filme, fazem parte importante do espetáculo. Tem até um momento “Noviça Rebelde”, com a Bela no alto da colina.
Vá ver “A Bela e a Fera” e se encantar, como a menina sentada na minha frente no cinema que exclamou “Maravilhoso!”, quando o filme acabou. Tive vontade de fazer coro com ela! 

segunda-feira, 20 de março de 2017

Personal Shopper



“Personal Shopper”- Idem, França, 2016
Direção: Olivier Assayas

Espíritos? Fantasmas? Coisas proibidas?
Desde que o mundo é mundo, o homem tentou entender se existe vida após a morte. Todas as religiões tratam desse assunto. E sabemos que existem tabus.
Por isso não é de se estranhar que Maureen (Kristen Stewart, ótima atriz), garota americana que vive na Europa, se interesse por esses assuntos. Quanto mais que ela teve um irmão gêmeo, Lewis, que morreu recentemente de uma deficiência congênita no coração, que ela partilha. Os dois fizeram um pacto. O primeiro que morresse, daria um sinal ao outro de vida após a morte.
Ambos acreditavam que eram médiuns, se bem que Maureen sempre achasse que Lewis era melhor que ela para fazer esse tipo de contato.
É nesse clima estranho que tudo vai se passar. Mas não se trata de um filme de terror. Longe disso. É bem mais sofisticado. É sobre o medo e o desejo que as coisas proibidas acendem em nós.
Maureen é uma “personal shopper” ou seja, compra coisas luxuosas e caríssimas para uma “top model” que não tem tempo para se ocupar com isso. Kyra (Nora von Waldstatten), viaja o tempo todo atrás dos desfiles de moda e das celebridades, que é o mundo ao qual pertence.
Maureen anda de “scooter” em Paris levando joias suntuosas da Cartier para Kyra escolher. Ou viaja até Londres para trazer o vestido que a outra vai adorar e aparecer com ele em todas as revistas que cobrem o mundo “fashion”.
Kristen Stewart é a garota descolada, que sabe o que escolher entre as coisas mais caras que estão à venda. Não é pelo preço que ela compra. Porque não tem que se preocupar com isso. É Kyra que paga e, ao mesmo tempo, exige que ela não experimente nada. E aí está o sinal de “proibido” que acende o desejo.
Mas Maureen não admite esse porém. Compra mas não experimenta. Pensa que está acima dessas futilidades. Até que acontece. Ela se olha no espelho e se vê como Kyra.
Quem a incentivou a fazer isso, transgredir, foi alguém que a persegue no “whatsapp” e ela não sabe quem é. Nem mesmo se é morto ou vivo. Porque ela transita entre esses dois mundos ou pensa que sim.
Há nesse filme de Olivier Assayas (prêmio de melhor direção em Cannes no ano passado) uma alusão ao nosso mundo contemporâneo que inventa objetos do desejo para o nosso consumismo, que é uma fuga do medo de nos pensarmos frágeis e mortais. Quem não tem acesso a esse mundo de coisas, contenta-se em explicar que é daí que vem a angústia. De não ser diferente. De não ser alguém.
E os fantasmas? Ectoplasmas? Ruídos em casas mal assombradas? Tudo isso está dentro de nós, mortais amedrontados que somos.
Como sair dessa? Cada um que procure e ache sua resposta, parece dizer o responsável por “personal shopper”, Olivier Assayas.
É um filme intrigante e envolvente.












domingo, 19 de março de 2017

Souvenir



“Souvenir”- Idem, Bélgica, França, 2015
Direção: Bavo Defurne

Isabelle Huppert é uma atriz tão divina que só mesmo ela pode fazer de maneira tão comovente, e nada piegas, o papel de Laura, uma cantora que conheceu a fama mas caiu no esquecimento.
A pobre tem uma vida de rotina repetitiva e monótona, sem nenhum brilho nem criatividade. Trabalha numa fábrica de patês e se encarrega, com outras mulheres, da decoração final com folhas e frutinhas, antes da embalagem do produto. Um trabalho maquinal que deve levar à loucura.
Em casa, quando chega, senta-se na frente da TV para ver os mesmos programas e beber o mesmo uísque, enquanto fuma e olha a telinha sem ver.
Até que um dia, Jean Leloup (Kevin Azais) chega e muda tudo. Lilianne (Laura era o nome artístico) é reconhecida.
O pai dele era fã de Laura e até hoje a mãe de Jean tem ciúmes quando o marido se lembra dela.
Jean tem apenas 22 anos, é boxeador, vive com papai e mamãe e se apaixona loucamente por Lilianne. Ela está há tanto tempo adormecida, que só mesmo ele, com uma perseverança paciente e fogosa, consegue despertá-la para a vida.
“Souvenir” é um conto de fadas para adultos. O mito da fênix, que renasce das cinzas depois que todos a acreditavam morta, é antigo e eterno. E aqui, é representado com graça por Isabelle Huppert.
Ela é uma diva que pode se permitir todas as artes, Canta afinada, aproveitando-se de um gestual teatral personalíssimo e coquete.
Seu corpo magro e flexível, com um vestido de paetês dourado, à luz dos refletores, leva a plateia ao delírio.
Das bolhas do remédio efervescente para a ressaca matinal, às bolhas da champanhe dos vencedores, assim caminha Laura nos braços de Jean, deixando a plateia seduzida e cantarolando com ela o refrão da canção “Jolie Garçon”(“Garoto Bonito”): “Je dis oui!”
Sim! Ela diz sim aos seus braços fortes e a seu coração doce.
Sorte do diretor belga Bavo Defurne para quem Isabelle Huppert também disse sim.
E o nosso sim, mil vezes sim, para a atriz talentosa e famosa que não se importa em aparecer num filme pequeno, de baixo orçamento, sem pretensão e que faz tudo brilhar com a sua presença solar.




quarta-feira, 15 de março de 2017

Mulheres do Século XX



“Mulheres do Século XX”- “20th Century Women”, Estados Unidos, 2016
Direção: Mike Mills

Estamos em Santa Barbara, Califórnia, em 1979. Dorothea Fields (Annette Bening, atriz maravilhosa), e Jamie (Lucas Jade Zumann), seu filho de 15 anos, olham o Ford Galaxy que queima no estacionamento do supermercado.
“- Era o carro do meu ex-marido. Nele trouxemos nosso filho da maternidade. Eu tinha 40 anos... Desde então, somos só nós dois”, diz ela em “off”, fumando o tempo todo.
Moram os dois numa casa grande construída em 1904. Está sendo restaurada aos poucos por William (Billy Crudup), que também mora lá.
Dorothea nasceu em 1924, passou pela Grande Depressão de 39, pela Segunda Guerra e pelo divórcio e agora enfrenta a adolescência do filho único, com a impressão receosa de que ela não conseguiria fazê-lo tornar-se um homem.
Para tanto, recruta duas mocinhas que estão sempre pela casa. Abbie de 19 anos (Greta Gerwig, ótima) que aluga um dos quartos e a bela Julie (Elle Fanning) de 17 anos, que é amiga de Jamie desde que eram pequenos e que dorme escondida, toda noite, na cama dele, como irmãos. Conversam e se apoiam mutuamente. Ela é filha de uma terapeuta mas não se dão bem. Aliás Abbie também tem problemas com a mãe.
Assim, Dorothea funciona como mãe para Abbie e Julie busca Jamie para fazer o papel de irmãozinho. As duas garotas são muito carentes.
Jamie é apaixonado por Julie mas ela é complexa e egoísta. Parece que não percebe o quanto Jamie precisa controlar seus impulsos amorosos e o quanto sofre ao saber que ela transa por aí com outros garotos.
Estamos no final dos anos 70 na Califórnia e a contracultura é o que impera. Dorothea tem a mente aberta, sente-se bem como divorciada mas não consegue gostar das bandas punk que Abbie e Jamie adoram.
Na TV lá está o presidente Jimmy Carter fazendo seu discurso sobre a confiança e só Dorothea curte.
Vemos os trechos do documentário “Koyaanisqati” que mostra pessoas agitadas com a câmara acelerada seguindo o ritmo do shopping center, das escadas rolantes, do consumismo e da alimentação “fast food”.
As cores da natureza nas estradas à beira mar já são psicodélicas, saturadas, arco-íris.
E o feminismo entra pela casa de Dorothea nos livros de Susan Sontag e Simone de Beauvoir que as garotas leem e emprestam para Jamie, que é o centro de atenção da casa.
Às vezes parece que ele está cansado de conviver com tantas mulheres. Mas quem sabe já não é um precursor dos homens sensíveis ao feminino que John Lennon cantará em “Woman”em 1980?
O material do filme parece vir direto das experiências do diretor Mike Mills, às voltas com a complexidade de sua mãe. E Annette Bening se apropria do papel com tanta energia e graça que não podemos deixar de simpatizar com ela.
O forte do filme são os personagens e como enfrentam seus problemas dentro do clima familiar que a mãe Dorothea comanda nas conversas ao redor da mesa do café da manhã ou do jantar.

“Mulheres do Século XX” é um filme gostoso, de afetos calorosos.

A Negação


“A Negação” – “The Denial”, Reino Unido, Estados Unidos, 2016
Direção: Mick Jackson

“- Onde estão as provas de que Auschwitz existiu?”
É assim que a jovem e bonita ruiva, professora Deborah Lipstad (Rachel Weiz), questiona seus alunos da Universidade de Emory em Atlanta, Geórgia. Ela ocupa a cadeira de Estudos Judaicos e do Holocausto. E vai fazer uma palestra no lançamento de seu livro “Negando o Holocausto - O assalto crescente à verdade e à memória”.
Chega o dia e ela começa a palestra, quando um homem se levanta e a interpela. Trata-se do historiador britânico David Irving (Timothy Spall) que em seus livros nega que o Holocausto tenha acontecido. Ele é simpatizante de “skinheads”, grupos de extrema direita, neonazistas e apoiador do Terceiro Reich.
“- Não discuto com pessoas que negam o Holocausto. É um fato. Não discuto fatos.”
Mas ele continua interpelando-a, não a deixando continuar sua exposição e mais, levado pela segurança, anuncia em altos brados que seus livros estarão na saída e serão oferecidos gratuitamente a quem quiser, com seu autógrafo.
Trouxe uma equipe para filmar sua performance e sai dizendo:
“- Meus livros são baseados em fatos. Não contam histórias sentimentalóides.”
Dois anos depois, em 1996, Deborah recebe uma intimação. David Irving abriu um processo de difamação contra ela na Alta Corte de Londres.
Uma repórter pergunta:
“- O que foi que você escreveu contra ele?”
“- Que ele é partidário de Hitler e que distorceu evidências a fim de chegar a conclusões historicamente insustentáveis.”
Em 1998 começa o processo de “Davi contra Golias”, como Irving diz, fazendo piada. Ele mesmo vai defender-se sozinho no tribunal.
Deborah escolhe Anthony Julius (Adam Scott), famoso e comentado por ter sido quem fez o divórcio da princesa Diana. Ele explica para sua cliente que na Grã Bretanha a justiça funciona diferente dos Estados Unidos. O réu é que tem que provar a mentira do acusador num processo de difamação.
Mulher e judia, Deborah, cujo nome significa “guerreira defensora de seu povo” queria participar ativamente do processo mas vai ter que ficar calada. O advogado Richard Rampton (Tom Wilkinson) escolheu uma defesa baseada num argumento de que Irving, deliberadamente falsificava a verdade para propagar o anti-semitismo e ganhar simpatia para o Terceiro Reich.
Isso vai custar a Deborah Lipstadt aprender que ganhar o processo era mais importante que repetir o que sabia sobre David Irving e pior, não poderia permitir que os sobreviventes de Auschwitz falassem.
“- Irving vai humilhá-los. Não precisamos disso,” diz o advogado.
O filme do britânico Mick Jackson tem um excelente elenco e traz uma história real desconhecida do grande público, que mostra que a verdade não é facilmente derrotada. Traz esperança para esses dias de meias verdades ou mesmo mentiras deslavadas em que vivemos.



quinta-feira, 9 de março de 2017

Fatima




“Fatima”- Idem, França, 2015
Direção: Philippe Faucon

Existem pessoas invisíveis ao nosso redor. Não as vemos mas são úteis a todos que vivem em sociedades ocidentais. São os que fazem trabalhos que ninguém mais quer fazer.
Aqui entre nós, essas pessoas pertencem a classes sociais inferiores, não tiveram acesso a quase nenhuma educação e fazem trabalhos braçais. O mesmo sucede na Europa, onde se passa o filme “Fatima”, na periferia da cidade de Lyon, na França. Lá os invisíveis são imigrantes vindos de países que antes foram colônias francesas.
Fatima nasceu na Argélia, veste o véu, muçulmana e tem duas filhas nascidas na França. O preconceito as atinge já na abertura do filme quando um apartamento para alugar passa a ser uma dificuldade.
Existem bairros que aceitam esse tipo de pessoas, outros não. 
Mas conseguiram um lugar para viver e as filhas de Fatima se sentem mais francesas do que a mãe. Estão na escola, andam com os iguais a elas e também com alguns franceses.
Percebe-se que as meninas amam a mãe que vive em função delas mas se ressentem de Fatima falar apenas algumas frases em francês, apesar de viver há tempos na França, vestir o véu e querer que elas se comportem como se estivessem na aldeia natal. Além disso é separada, o pai vê pouco as filhas e não ajuda em quase nada. Uma conversa num restaurante ou no carro, um presentinho de vez em quando e só. Ele tem uma nova família.
Às vezes não compreendem a própria mãe, o que ela pode estar sentindo. Egoísmo próprio da geração delas.
Nesrine, a mais velha, é séria, estudiosa e prepara-se para entrar na faculdade de medicina. Ela sabe que tem que estudar muito mais que os outros, que serão os preferidos para as vagas e está bastante motivada. Mas pede para a mãe um dinheiro extra para poder compartilhar um outro apartamento com uma colega porque precisa de silêncio e concentração.
Por isso Fatima vai trabalhar como faxineira numa casa francesa. Mas fica pouco tempo lá, porque não se sente respeitada. Por sorte consegue outro trabalho no município. Sai às 6 da manhã de casa e só volta à noitinha quando o segundo turno a espera. Arrumar, lavar, passar, cozinhar.
A filha mais nova, Souad, vai mal na escola, não se esforça e um dia diz para a mãe que cobra dela mais empenho:
“- Você é uma incapaz. Nem sabe ler o francês. Como vai me ajudar nos deveres da escola?”
Essa frase fere Fatima lá no fundo porque é assim mesmo que ela se vê.
“- Vou ao encontro com os professores de minha filha mas não sei falar francês...Só escuto e observo. Eu precisava aprender...”, comenta com a colega faxineira.
As outras mulheres da comunidade que vivem perto delas tem inveja de Fatima porque suas filhas estudam e a mais velha vai ser médica. Elas não tiveram essa escolha e inventam mexericos sobre Nesrine.
Mas a vida de Fatima vai mudar quando ela sofre um acidente e começa a escrever tudo que está trancado em seu coração até aquele momento. A dor física faz com que ela se dê conta de outras dores. E entende que precisa se esforçar para poder pertencer ao lugar onde mora e onde suas filhas vão viver. Fátima quer provar que não é incapaz:
“O medo começou a recuar e reencontro confiança em mim mesma”, escreve ela.
Sua intifada começa. Sem bombas, nem ódio. Fatima vai conquistar seu lugar naquela sociedade que a excluía até então. E entende que a educação é inclusiva.
É preciso compreender a cultura em que se vive para poder participar. E isso não quer dizer virar as costas para a cultura onde se nasceu. Uma convivência saudável tanto com as pessoas, através da língua, como consigo mesma, com sua autoestima aumentada.

Uma vida melhor espera por Fatima.


quarta-feira, 8 de março de 2017

Fome de Poder



“Fome de Poder”- “The Founder”, Estados Unidos, 2016
Direção: John Lee Hancock

O sonho americano do sucesso é perseguido por muitos. Aliás quem quer ser um “looser”? No capitalismo, as regras são ganhar sempre e então você será um “winner”(vencedor) ou um “looser”(perdedor).
Ray Kroc, 52 anos, um vendedor de produtos aparentemente inovadores, rodava os Estados Unidos à cata de compradores para uma máquina de fazer “milk-shakes”. Ele tem uma boa lábia e sabe vender seu produto que é diferente dos outros do mercado. Faz mais, com menos tempo. Porém vende um aqui, outro acolá. O mercado é restrito.
Até que em 1954, ele entra em contato com um comprador que encomendara seis multimixers. Ele liga, certo de que se tratava de um erro da secretária. Mas não, era verdade. Dick McDonald precisava de oito daquelas máquinas.
Ray olha o mapa e de Illinois vai até San Bernardino pela Route 66, atravessando planícies imensas, perseguindo sua intuição. Quem será esse tal de McDonald?
No quarto de motel onde se hospeda para passar a noite, Ray ouve discos de auto-ajuda que vendem “O Poder do Pensamento Positivo”. São frases como “Nada no mundo substitui a persistência” ou “Um homem é aquilo que ele pensa o dia todo”.
Ray come em drive-ins pelo caminho e se irrita com a espera pela comida. Isso quando não vem errada.
Quando chega ao quiosque McDonald fica encantado com o que vê. Filas que andam rapidamente. Clientes satisfeitos. Limpeza. E comenta com o sujeito que varre o chão:
“- Foi o melhor hamburger que já comi”.
“- Sou Mac, quer fazer um tour pelo nosso quiosque? Vou apresentar meu irmão Dick para você”, diz sorrindo um dos donos da lanchonete que não serve em pratos. Só embalagens de papel e cada um come seu hamburguer onde quiser.
A linha de montagem dos irmãos Dick (Nick Offerman) e Mac (John Carroll Lynch), o cérebro e o coração do McDonald, é perfeita. Em 30 segundos sai um sanduiche feito com cuidado e habilidade. Vendem também batata frita e refresco.
“- Quero ouvir a história de vocês. São o melhor restaurante que eu conheço. E olha que eu conheço bem a área alimentícia!”, diz Ray simpático.
Aí começamos a entender como foi possível partir de um quiosque para um império bilionário, presente em todo os Estados Unidos e em 100 países do mundo.
Raymond A. Kroc cedeu a uma ambição desmedida e tirou, sem dó nem piedade, os “dois caipiras”, como chamava os irmãos, da empresa que eles haviam imaginado e montado. Em seu cartão lê-se “Founder” da “The McDonald Corporation”, que alimenta 1% da população mundial diariamente.
Ficou casado com a mulher Ethel (Laura Dern) até a sua morte, para não dar para ela nenhuma ação da empresa e casou-se com Joan (Linda Cardellini), que se afinava mais com sua maneira de pensar e agir:
“- Contratos são como corações. Feitos para serem quebrados.”
O diretor John Lee Hancock conta essa história, que quase ninguém conhece, de maneira correta.
Michael Keaton está ótimo e passa para a tela a ambiguidade de Ray Kroc, um homem batalhador mas pouco atento à ética de suas ações. O roteiro de Robert Siegel mostra a escalada da ambição de Ray e o lugar cada vez mais remoto que a preocupação com os outros ocupa em sua mente.
Para muitos ele será sempre admirável, um verdadeiro “winner”. Para outros, um sujeito sem moral, que passou por cima dos verdadeiros donos do negócio, aproveitando-se de sua boa fé.
Será verdade aquilo que dizem que por trás de um negócio bilionário tem sempre um jogo sujo?



domingo, 5 de março de 2017

A Jovem Rainha



“A Jovem Rainha”- “The Girl King”, Finlândia, Alemanha, Canadá, Suécia, França, 2015
Direção: Mika Kaurismaki

Aquela que ficou conhecida como Cristina da Suécia é uma personagem com uma biografia historicamente importante e muito peculiar em certos acontecimentos em sua vida (1626-1689).
O filme de Mika Kaurismaki, irmão mais velho de Aki,  também diretor e mais famoso, retrata a figura daquela que, aos 6 anos, herdou de seu pai, Gustavo Adolfo II, o trono da Suécia. Ela era filha única do rei e Maria Leonor de Hohenzoler-Brandemburg, da Alemanha (Martina Gedek).
A primeira cena do filme retrata a loucura da mãe de Cristina, que mandara embalsamar o corpo do marido, cujo coração guardava numa caixa de cristal. Vemos a menina entrando no quarto da mãe e beijando o rosto do pai morto.
“- Boa noite e até amanhã, papai.”
A mãe de Cristina tinha perdido dois bebês sucessivamente e se culpava por não ter dado um filho ao rei. Quando Cristina nasceu, com muito cabelo, foi confundida com um menino e houve festejos no castelo. Outros dizem que o bebê era hermafrodita, odiado por sua mãe.
O certo é que sua educação foi a de um herdeiro do trono. Falava varias línguas, tinha aulas de esgrima, filosofia, artes equestres e tudo mais que o Chanceler Axel Qxenstierna (Michael Nyqvist) achasse importante. A menina tinha uma inteligência acima da média e gostava de estudar.
Mas era avessa a vestidos e penteados. Andava com roupas masculinas e tinha uma personalidade forte e independente.
Foi coroada aos 18 anos e a “Menina Rei”, como era chamada, já que a palavra rainha era usada somente para a mulher do rei, tornou-se Cristina I, com planos de tornar a Suécia, um centro de cultura, a Atenas da Europa. Queria também terminar a guerra com os católicos.
Ora, os suecos, protestantes empenhados há 30 anos em guerra com os católicos, não gostaram dessa ideia. Mas Cristina I teve êxito, assinando o Tratado de Westfália que determinava que cada príncipe poderia impor a seu estado sua própria religião. Dizem que já nessa época, Cristina I se aproximara secretamente do catolicismo por influência dos jesuítas portugueses.
Mas o filme centra-se na amizade de Cristina com o filósofo francês René Descartes (Patrick Bauchau) que a corte conservadora não aprovava. Pior era o fato de que não queria ouvir falar em casamento, o que criava um problema para a sua sucessão. Diga-se de passagem que ela encontrou uma solução surpreendente para essa questão.
Mas o roteiro, saído de uma peça do canadense Michel Marc Bouchard, interessa-se mais em mostrar Cristina I como uma “crossdressing” e uma feminista de vanguarda.  O caso amoroso com sua dama de companhia, a condessa Ebba Spare (Sarah Gadon), é o centro de interesse do filme.
A relação das duas mulheres é mostrada de forma recatada e esteticamente agradável. A atriz sueca morena Malin Bush, faz uma Cristina I bela e autoritária, bonito par romântico com a loura “mignon” e atrevida.
Os figurinos de Marjatta Nissinen são marcantes e sofisticados mas não seguem uma moda de época, parecendo contemporâneos.
“A Jovem Rainha” foi filmado quase que inteiramente na Finlândia, com cenários de inverno realçados pela fotografia de Guy Dufoux.
Enfim, um filme bonito de se ver, com diálogos menos elegantes (dizem que por culpa da tradução do francês para o inglês) mas que agrada a quem gosta de uma aula de história com detalhes picantes.







sexta-feira, 3 de março de 2017

Aliados



“Aliados”- “Allied”, Estados Unidos, 2016
Direção: Robert Zemeckis

Um filme de amor? Um filme de guerra? Nem um, nem outro mas tem tudo isso no mais novo trabalho de Robert Zemeckis, que assina muitos filmes. Ganhou o Oscar com “Forrest Gump, o Contador de Histórias”.
A dupla romântica é o suprassumo da elegância. São da elite do cinema: Marion Cotillard, Oscar por “Piaf” e Brad Pitt, sem Oscar mas com muitos outros prêmios. Ela interpreta Marianne Beauséjour, francesa e ele Max Vatan, canadense, que se encontram durante a Segunda Guerra, em 1942, no Marrocos, na época Protetorado Francês.
E aqui, entra outro elemento interessante: espionagem e suspense. Os dois vão se empenhar em eliminar um general alemão, numa festa luxuosa na embaixada alemã em Casablanca, que vira um campo de guerra, com a vitória para a dupla que foge para a Inglaterra.
Lá eles se casam, tem uma filhinha e vivem uma felicidade de apaixonados numa casa em Londres.
Tudo parecia perfeito e só faltava a guerra acabar, quando o serviço de contraespionagem inglês acusa Marianne de ser uma espiã alemã. Será possível? O tenente-coronel Vatan faz tudo que pode para provar o contrário.
O roteiro de Steven Knight é baseado numa história real que ele ouviu contar há mais de 30 anos. O suspense é bem armado e a dupla, principalmente Marion Cotillard, comove e envolve a plateia.
Há cenas espetaculares como a de abertura do filme, em que Brad Pitt desce de paraquedas no deserto, entre as dunas amarelas ao sol brilhante e é recolhido por um carro. Lá dentro, abre uma valise e verifica documentos falsos, armas e dinheiro. O motorista passa uma caixinha de veludo para ele, onde brilha uma aliança. E diz:
“- Sua esposa o espera. Cherchez le colibri (procure o beija-flor).”
E, num clube noturno todo de mármore, cristais e elementos art-deco, lá está ela, deslumbrante, com o beija-flor bordado num xale de seda.
Aliás, os figurinos são um dos pontos altos do filme. Joanna Johnston foi indicada ao Oscar de melhor figurino, não ganhou mas fascinou quem gosta de moda com os vestidos de Cotillard. O sedutor peignoir de seda bordado com flores, o de paetês negro com decote nas costas, o verde água de cetim longo, com uma “basque” na frente e o bordado de uma pluma no ombro, distraem a atenção, de tão maravilhosos que são.
Marion Cotillard resplandece na tela, grávida de dois meses, segundo filho dela e do seu companheiro Guillaume Canet, ator e diretor francês.
Só isso já desqualifica o boato, que atrapalhou o filme, de Brad Pitt estar tendo um caso com ela. Diziam que havia detetives no estúdio onde eram rodadas as cenas. Aliás, isso deve ter contribuído para seu desempenho rígido e forçado, sem verdadeira entrega, destoando do estilo de Cotillard, que palpita tão verdadeira na pele da sua personagem.
O fato é que ela parece feliz e realizada e ele tenso e distante. A vida real apareceu nesse filme sem ser convidada. O casal Brangelina não existe mais. Acontece todo dia mas na realeza hollywoodiana isso faz manchete no mundo todo.
De qualquer modo, “Aliados” é um filme com uma pegada antiga que cai bem.



quarta-feira, 1 de março de 2017

O Apartamento



“O Apartamento”- “The Salesman”- “Forushande”, Irã, França 2016
Direção: Asghar Farhadi
A cenografia de um palco de teatro onde será encenada a peça de Arthur Miller, “A Morte do Caixeiro Viajante”, por um elenco iraniano, aparece sendo iluminada. Os atores se aquecem.
Num segundo momento, acompanhamos os moradores de um prédio de apartamentos em Teerã, tendo que deixar suas moradias às pressas. Perigo de desabamento. Nas paredes, enormes rachaduras, vidros que trincam e se espalham pelo chão.
“- Derrubamos tudo, construímos de novo e agora tudo está desabando”, lamenta-se um morador.
Como se trata de um filme do consagrado diretor e roteirista iraniano Asghar Farhadi, premiado em Cannes e no Oscar por “A Separação”, sabemos que não é por acaso que ele escolhe essas imagens, sutis críticas ao governo. O roteiro, premiado em Cannes 2016, tem tudo a ver com a mensagem da peça de 1949 que mostra a decadência do sonho americano.
Fahadi sabe que suas críticas políticas tem que ser transformadas em situações vividas pelos personagens. O velho e patético caixeiro Willy, que já não vende mais nada e não consegue sustentar a família, acaba se suicidando. E seu consolo é que muitos irão ao seu funeral. Mas nem isso acontece. É um perdedor. O sonho americano morreu com ele.
Em Teerã, o regime atual derrubou o Xá, ditador autoritário, mas instituiu, aos poucos, novas regras que não melhoraram a vida do povo como imaginavam os jovens que apoiaram o novo regime no início. Hoje em dia os artistas e os intelectuais são perseguidos e a juventude não é exposta à cultura como antes. O professor Emad (Shahab Husseini, premiado em Cannes ), que também é o caixeiro viajante na peça, esforça-se em abrir a cabeça dos adolescentes mas parece que sem sucesso.
As mulheres parecem ser as mais prejudicadas. O país transpira um machismo ancestral.
O casal Emad e Rana (Taraneh Alidooshi, suave e bela) se muda, sem saber que o apartamento onde estão agora tem uma história ligada à má fama da ex-inquilina. Por causa disso, vai haver um drama.
Rana é atacada e ferida quando toma banho. Abrira a porta pensando que era o marido chegando e o agressor entra e vai ao banheiro. Ela, que faz a mulher do caixeiro viajante na peça, sofre com esse assunto, tanto em suas feridas no rosto e na cabeça, como em sua integridade. Há vergonha em falar sobre o ataque, como com tudo que envolve a sexualidade. Não ficamos sabendo o que aconteceu realmente.
Emad, o marido, antes uma pessoa preocupada em compreender os outros, age de modo ambíguo com sua mulher. Às vezes amoroso e acolhedor, outras irritado e culpando-a pelo acontecido.
Acima de tudo, ele se ressente de que o elenco da peça fica sabendo sobre a agressão. Os vizinhos não se calam sobre o misterioso ataque.
A honra de Emad está manchada. Como ele vai agir? Como o caixeiro da peça, que não consegue alimentar a família, Emad não tem virilidade suficiente para proteger sua casa.
De qualquer forma, com ou sem vingança, o jovem casal envelheceu e não só por causa da maquiagem para representar o velho casal americano. Emad e Rana perderam o viço e a confiança mútua.
Parece que Fahadi acena com um futuro incerto para o casal. Mas também para todos nós. Já que não é somente no Irã que os tempos são de intolerância.
“O Apartamento” ganhou o Oscar 2017 de melhor filme estrangeiro mas, infelizmente, o diretor não estava presente na cerimonia devido à proibição de iranianos entrarem nos Estados Unidos. Outra iraniana, ex-astronauta da NASA, leu umas palavras de Farhadi que tocavam na necessidade de tolerância entre os seres humanos. Será ouvido?