domingo, 24 de setembro de 2017

Mãe!


“Mãe!” - “Mother!”, Estados Unidos, 2017
Direção: Darren Aronofsky

Quando tudo recomeça naquele dia, Mãe (Jennifer Lawrence, divina) acorda e procura Ele na cama:
“- Baby?”
Bela, jovem, longos cabelos louros numa trança, vestindo uma camisola branca, ela anda pela casa esperando encontrá-lo.
Abre a porta da frente e vemos uma natureza intocada. Só ouvimos o barulho do vento e o canto dos pássaros. A casa é isolada. Não há caminhos que levem a ela.
Quando ela se volta para entrar na casa, dá de cara com Ele:
“- Por que você não me acordou? ”pergunta Mãe.
“- Precisava clarear as ideias. Ficar só. ”
Ele tinha ido correr. É bem mais velho que ela. Sobe as escadas para tomar um banho e ela, que restaurou sozinha aquela casa depois de um incêndio, dedica-se a uma das paredes.
Estranhamente, um close em seus olhos fechados e em sua mão pousada na parede, leva à imagem de algo pulsando em seu interior. Vida.
Ele (Javier Bardem) é um escritor e está sofrendo um bloqueio criativo. A mãe cuida da casa e dele e se assusta quando, à noite, alguém bate à porta.
Ele vai abrir e um homem (Ed Harris) entra. Ele parece animar-se com essa presença. Mãe não entende por que Ele convida o estranho a ficar na casa.
Os dois conversam muito e o homem fuma e bebe sem parar. Mãe logo o ouve vomitando e vê Ele que o ampara. Ela vislumbra um estranho corte no corpo do homem na altura da costela.
Logo vão chegar outros. A mulher do homem (Michelle Pfeiffer, excelente), invasiva e desagradável com Mãe e os filhos deles (Damhnall e Brian Gleeson), que vão cometer o primeiro crime.
Eu não leio críticas antes de assistir um filme mas é quase impossível deixar de ver as frases nas manchetes. E há chamadas sobre o filme de Aronofsky que falam numa alegoria bíblica. Então, a essas alturas, quem tem instrução religiosa pensa logo em uma metáfora dos primórdios da história da humanidade, tirada do livro do Gênesis: Deus, a Natureza criada que chamamos Mãe, Adão, Eva saída de sua costela, Caim e Abel.
E essa leitura é um “abre-te Sésamo” para o que vem depois, nas imagens terríveis do fotógrafo Matthew Libatique, quase todas em closes. Muitos de Mãe.
Multidões ensandecidas invadem a casa. Todos querem estar com Ele. Mas, ao mesmo tempo, assustam Mãe e começam a destruir a casa. Fanáticos gritam, choram, lutam entre eles. Há medo e caos. E o fogo vai trazer novamente o apocalipse. Nos créditos finais, Patti Smith canta sobre o fim do mundo.
Darren Aronofsky, 48 anos, que além de diretor é também roteirista, produtor e ambientalista, passa sua mensagem ecológica e contra todos os fundamentalismos religiosos, com intensidade e paixão, em “Mãe!”.  Para isso ele utiliza histórias bíblicas, recicladas para o século XXI, com as quais teve contato durante sua educação como judeu nascido no Brooklyn.
“- O meu Deus é sempre o do Antigo Testamento”, diz ele.
O diretor de “Pi”1998, “Réquiem para um Sonho”2000, “Fonte da Vida”2006, “O Lutador”2008, “Cisne Negro”2010 , já tinha em mente mudanças climáticas na origem de catástrofes naturais quando fez “Noé” em 2014.
Em entrevista sobre “Mãe!” ele disse:
“Acho que é a coisa mais forte que já fiz. É a que tem o maior impacto. A ideia é, ao olhar dentro da escuridão, você revela a luz.”
E saber tudo isso de antemão estraga a visão do filme? Ele mesmo responde:
“Não acho que saber a alegoria, e saber onde estamos indo, vá, de alguma forma, afetar sua experiência ao assistir. Ainda será muito intensa.”
Sabendo que se trata de um filme artístico, com alegorias sobre a Bíblia e interpretações magníficas, você não sente vontade de conferir “Mãe!”?
Eu adorei.




sábado, 23 de setembro de 2017

As Duas Irenes



“As Duas Irenes”, Brasil, 2017
Direção: Fabio Meira

Aquela garota de costas para nós, magrinha, está com uma pedra na mão. Olha fixamente a janela de uma casa simples. Quando ela atira a pedra e quebra o vidro da janela, percebemos a raiva que não sabemos de onde vem.
Pedalando sua bicicleta ela parece mais leve.
Estamos numa cidadezinha de ruas de pedra, ladeiras, no interior do Brasil. A menina Irene (Priscila Bittencourt) é a segunda filha do casal que tem três filhas e mora numa casa maior e mais bonita que a da janela de vidro quebrado. Vemos a família almoçando. Mas Irene, calada, não está bem. Há um turbilhão dentro dela e quando coça a cabeça, irrita a mãe (Susana Ribeiro):
“- De novo com piolho, Irene?”
Ela é a filha “sanduiche” e sente-se rejeitada. A conversa na mesa é sobre o vestido de Solange, a mais velha, que vai debutar. E a menor é a gracinha do pai.
Irene, 13 anos, magrela, não gosta do que vê no espelho. E pior. Outra coisa a incomoda. Descobriu que o pai (Marco Ricca) tem outra família e outra filha de 13 anos. A outra Irene (Isabela Torres).
Daí a pedra na janela.
Mas não é tão simples. A raiva de Irene se mistura com uma curiosidade de saber como vive a outra, como ela é. Sente-se atraída pela outra casa do pai.
E ela segue em frente com seu plano de aproximação. Neusa (Inês Peixoto, ótima atriz), a mãe da outra Irene, é costureira e lá vai a nossa pedir que faça uma blusinha para ela.
“- Me chamo Madalena”, mente ela, usando o nome da boa empregada da casa dela.
E quando a outra Irene chega e conta que vai ao cinema, quem sabe levando o pai, Irene aparece por lá, como quem não quer nada:
“- Você não vinha com seu pai? ”, pergunta.
“- Ele não podia vir... Sabe que você é bonitinha? Poderia participar do concurso lá do meu bairro. ”
Irene já andara espiando escondida o tal concurso e vira o pai jogar beijos e levar flores para a outra Irene.
Mas o que parecia uma raiva invejosa daquela outra Irene, bonita, corpo desenvolvido e despachada, vai se transformando numa aliança. Uma amizade que traz para a nossa Irene aquilo que lhe faltava: um modelo a ser imitado.
A outra Irene é o espelho no qual a nossa Irene gosta de se ver. Vai ficando mais solta, mais risonha, mais livre.
A Dona Mirinha, arrogante e encantada com a filha mais velha, “a cara da mãe”, é o contrário do que Irene quer ser. É por causa dela que o pai arranjou outra. Na casa da outra, a mãe é mais simples, mais carinhosa e nada mandona. Lá há cantos e danças. Por isso Irene até entende o pai. Mas, assim mesmo, há mágoa.
Há uma sede de vingança mas mais dirigida contra a mãe do que ao pai. Este ofereceu o motivo e é por aí que a nossa Irene vai conseguir o quer: que a casa caia.
“Duas Irenes” é o primeiro filme do goiano Fabio Meira, que diz ter se inspirado numa história familiar para escrever o roteiro. O filme ganhou quatro Kikitos em Gramado: melhor ator coadjuvante (Marco Ricca), roteiro, direção de arte e melhor filme da crítica.
A fotografia de Daniela Cajías é elegante, criando quadros encantadores que emolduram o espaço feminino das duas meninas.
E o final do filme é surpreendente.



quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Columbus



“Columbus”- Idem, Estados Unidos 2017
Direção: Kogonada

Só vai gostar de “Columbus” quem aprecia arquitetura?
Prefiro pensar que talvez, quem vai apaixonar-se pelo filme de estreia de Kogonada, será quem tem uma queda por experiências estéticas que sejam vividas através das emoções e não da razão.
Ou seja, olhos que conduzem ao coração. Não é coisa só de gente sofisticada e viajada. Não. “Columbus” é para os sensíveis à arte e à complexidade da natureza humana. Porque os personagens principais vivem, em meio à beleza da cidade, uma experiência simples e, ao mesmo tempo marcante, um com o outro.
Jin (John Cho) e Casey (Haley Lu Richardson) encontram-se por acaso em Columbus, cidade americana no estado de Indiana, que possui edifícios assinados por grandes arquitetos modernistas como o finlandês Eliel Saarinen (1873- 1950) e seu filho Eero Saarinen (1923- 1961) e I.M.Pei.
Casey trabalha como guia que leva os turistas a conhecer tais edifícios célebres. E Jin, que é tradutor na Coréia do Sul, teve que viajar para Columbus porque seu pai, famoso professor de Arquitetura, após um desmaio, entrou em coma e está no hospital em Columbus, sem poder viajar de avião de volta para Seul.
Os dois passeiam pela cidade, seus prédios, ruas, parques e jardins e conversam. Dessas trocas, tímidas a princípio, vai surgir uma amizade e um querer bem que irá ajudar aqueles dois a vencer obstáculos em suas vidas atuais.
Jin sempre achou que seu pai não se interessava por ele e que nunca conseguiram conversar. Casey, garota brilhante, passou por um período ruim em sua vida de adolescente quando sua mãe viciou-se em anfetaminas. Ela parou os estudos e trabalha agora como guia e também na biblioteca. Não pode pensar em sair da cidade para fazer uma faculdade de arquitetura, sua paixão, porque não tem dinheiro mas principalmente porque acha que precisa cuidar da mãe (Michelle Forbes).
Casey é quem traz para a conversa com Jin a ideia de que a arquitetura seria “curativa”. Para ela, desde os tempos de menina, a visão de uma certa obra de Saarinen pacificava suas angústias. Essa qualidade “curativa” da arquitetura se aliaria ao abrigo e acolhimento aos seres humanos que as obras modernistas ofereceriam em seus interiores, sejam casa, banco, igreja, ponte, escola ou hospital.
“- Meu pai iria te adorar”, diz Jin que desenvolveu uma defesa afetiva contra a paixão do pai, que parece ir diminuindo com os passeios com Casey.
Cada um deles tem outro amigo mais antigo. Casey gosta da companhia de Gabe (Rory Culkin) que é um aluno com mestrado e é colega dela na biblioteca. Enquanto que Jin tem a antiga aluna e companheira do pai dele, Eleanor (Parker Posey), por quem teve uma paixonite aos 18 anos.
Rogonada, que nasceu na Coréia do Sul mas foi criado nos Estados Unidos, dirigiu, escreveu o roteiro e montou seu primeiro longa. Ele, que era crítico de cinema, estreia como cineasta assinando esse filme independente, belo e original.
A fotografia de Elisha Christian convida à contemplação da beleza dos edifícios e seus ângulos mais inusitados, a descansar a vista nos jardins de gramados manicurados, salgueiros melancólicos e composição de árvores, tanto como interiores com objetos escolhidos a dedo e um surpreendente rio cor de chá.
Mas captura também o instante que vivem os personagens, na pele dos atores, em seus “closes” emoldurados de luzes, refletidos em espelhos e até mesmo desaparecidos na tela e presentes no som de suas vozes. Há sempre uma imagem com detalhes interessantes que nosso olhar quer descobrir.
Aventure-se e vá viver no cinema momentos de emoção e pura contemplação com esse singelo e extraordinário “Columbus”.





domingo, 17 de setembro de 2017

O Jantar


“O Jantar”- “The Dinner”, Estados Unidos, 2017
Direção: Oren Moverman

Numa miscelânea de imagens, que mais tarde vamos entender, pratos sofisticados são preparados, uma bola voa, um saguão de mármore é iluminado por castiçais com velas, um antigo cemitério é mostrado, estátuas remetem a personagens heroicos.
Depois, um rap invade nossos ouvidos e jovens estão numa festa, se divertindo com bebida, drogas e risadas. Três deles saem pela noite e o negro vomita.
Paul Lohman (Steve Coogan) quarenta e tantos, faz um monólogo que ouvimos em “off” sobre gregos antigos e romanos, a idade de ouro de nossa civilização para ele, que é professor de História do ensino médio e fala sozinho para jovens entediados. Personagem com uma forte misantropia, em seu discurso não esconde uma depressão raivosa. Soa como se tivesse perdido todas as batalhas de sua vida.
“- Não vou. Não quero ver essas pessoas. Esses vermes, macacos. Vamos cancelar ”, diz ele para sua mulher (Laura Linney) que continua a se maquiar e não o leva em consideração.
Toda essa negatividade é dirigida ao irmão de Paul, o bonitão e bem sucedido Stan (Richard Gere), que é deputado, em plena campanha para governador. Ele é casado com Kately (Rebecca Hall), sua segunda mulher, uma esposa troféu, nas próprias palavras dela.
Os dois casais vão jantar num restaurante cinco estrelas, caríssimo e pomposo. Numa casa enorme, várias salas recebem clientes elegantes com um batalhão de garçons e um “maitre” que discorre sobre a comida com um linguajar pedante que exulta os produtos diminutos nos pratos, onde quase tudo é decorativo.
Paul e Claire são os primeiros a chegar e, em meio às reclamações do irmão menos dotado, que a mulher trata como se fosse uma criança, chega Stan, o mais velho. Kate senta-se mas o marido dela cumprimenta várias pessoas, em ritmo de campanha política.
“- Irmão, pensei que não ia conseguir atravessar a sala. Pronto. Pode parar de sorrir. Somos só nós aqui ”, diz Paul irônico, quando Stan chega finalmente à mesa.
Em vários “flashbacks” vamos entendendo o relacionamento entre esses dois irmãos, diferentes em tudo, até no carinho da mãe quando eram crianças. Paul parece ter herdado um traço de instabilidade mental, presente na família. Está sempre armado e raivoso. Stan tenta conciliar os ânimos exaltados mas levanta muitas vezes da mesa para atender o telefone e confabular com sua assistente (Adepero Oduye). Esse vai e vem deixa todos nervosos.
Mas por que tinham ido jantar juntos?
O casal Claire/Paul tem um filho adolescente Mike (Jesse Dean Peterson) e Stan/Kate tem Ricky (Seamus Davey-Fitzpatrick) e Beau (Miles J. Harvey), uma criança negra, que tinha sido adotado pela primeira mulher de Stan, Barbara (Chloe Sevigny), que se mudara para a Índia.
Os primos de 16 anos eram aqueles que vimos saindo da festa e eles vão se meter numa encrenca trágica, que é o motivo daquele jantar. Mas demora para que os pais tenham espaço para falar sobre os filhos.
O diretor e roteirista israelense, radicado nos Estados Unidos, Oren Moverman, adaptou o livro best-seller do holandês Herman Kock, mostrando que gosta de deslindar a complexidade da natureza humana. A fotografia caprichada é de Bobby Bukowski que usa o cenário do restaurante para aludir às sombras da mente que vamos ver surgir durante aquela noite.
O elenco é de estrelas e as interpretações são preciosas. O texto tem diálogos inteligentes que mostram claramente que cada adulto naquele jantar só pensa em si mesmo.
Narcisismo, famílias disfuncionais, racismo, poder do dinheiro, horror ao diferente, maldade, educação baseada em superproteção, tudo isso virá à tona.
E como não há julgamento nenhum no roteiro, a reflexão é do espectador. Que vai para casa tendo que pensar sobre o lado podre da nossa civilização.
“O Jantar” é um filme que não tem medo de ser indigesto.
De vez em quando é salutar pensar em ética. Concordam?


terça-feira, 12 de setembro de 2017

Uma Mulher Fantástica



“Uma Mulher Fantástica”- “Uma Mujer Fantástica”, Chile, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, 2017
Direção: Sebástian Lelio

O que as Cataratas do Iguaçu tem a ver com aquele homem na sauna, beirando os 60 anos, cabelos grisalhos e óculos? Ele é charmoso (Francisco Reyes).
O vemos num bar, onde canta uma moça atraente, de vestido preto de bolinhas brancas, cinto e colar vermelhos. Parece que ela canta para ele. Ela é bem mais jovem.
Depois vemos o casal num restaurante chinês. É o aniversário dela e os garçons chineses cantam frente a um bolo com velas. Ele passa um envelope para ela abrir.
“- Vale duas passagens para as Cataratas. O que é isso?”
E ela se levanta e vem beijá-lo. Ele retribui o carinho e explica que não sabe onde perdeu as passagens, por isso o vale. Partem em 10 dias. É o presente de aniversário dela.
A comemoração continua na boate onde dançam agarradinhos. E depois a transa apaixonada em casa.
Mas ele passa mal no meio da noite e ela corre com ele para um hospital. Onde tudo acaba. Um aneurisma.
Assim termina o romance de Orlando Onetto e Marina Vidal, que chora escondida no banheiro.
E há algo estranho no jeito do médico que deu a notícia e pede o documento dela, olhando-a de alto a baixo.
Ela liga para o irmão de Orlando e dá a notícia. Alguém tem que vir ao hospital. E ela sai correndo pelas ruas desertas de Santiago, até que um carro de polícia a leva de volta ao hospital. Do que ela tem medo?
Outro policial pede novamente seus documentos no hospital e diz:
“- Enquanto não mudar, seu nome é esse ”, diz severo.
“- Esta situação está em trânsito...”, responde ela sem jeito.
Chega o irmão do morto que a olha com curiosidade:
“- Você é Marina? Sou Gabo, irmão do Orlando. Cuido de tudo. ”
O policial devolve o documento dela e pede o telefone. Há um desconforto geral.
Sebástian Lelio, 43 anos, chileno, diretor do premiado “Gloria”, faz o espectador se intrigar, se surpreender e, por fim, sentir na própria pele o que Marina Vidal, uma mulher transgênero, tem que passar por querer viver o luto e participar dos rituais fúnebres de seu companheiro.
Abrindo um parênteses, lembro que uma pessoa transgênero é alguém que nasceu com um gênero (masculino ou feminino) com o qual não se identifica e então passa a se vestir como prefere ser e busca hormônios e cirurgia. É uma questão que se refere à identidade da pessoa.
Preconceitos contra Marina Vidal? De todos os lados.
A família de Orlando não entende por que ele se separou da mulher (Aline Kuppeheim) para ficar com Marina. A ex dirige-se a ela como se fosse uma prostituta e uma “anormal”:
“- Quando te vejo não sei o que você é. Aliás você é uma Quimera”, referindo-se ao ser mitológico feito de partes de vários animais.
O roteiro do próprio diretor e Gonzalo Maza, ganhou o Urso de Prata em Berlim. Faz uso de cenas da vida real para explicar como se sente Marina, ora duplicada nos espelhos e vidros de vitrines, ora usando de metáforas, como quando ela luta contra um vento tão forte que ela não consegue sair do mesmo lugar, ora vendo seu amado Orlando, parecendo que ele a espera para o adeus final, o que lhe é negado pela família dele.
O fotógrafo Benjamin Echazarreta faz muitos “closes” de Marina, que algumas vezes olha direto para a câmara, para expressar diretamente para a plateia toda a determinação que a move, apesar das humilhações pelas quais passa.
Daniela Veja é uma atriz excepcional e passa uma verdade, que ela mesma deve ter vivido, sendo ela também trangênero, à sua personagem: feminina, gostando de ser mulher, apesar de todos os pesares.
Ao final, de veludo negro, com a bela voz da atriz, Marina Vidal canta no palco de um teatro “Sposa son disprezzata -Sou esposa e desprezada”, ária atribuída a Vivaldi mas que na verdade foi composta por outro músico barroco, Giacomelli. Outro equívoco aproveitado com ironia. E, finalmente, o rosto de Marina mostra toda sua beleza e verdade.

“Uma Mulher Fantástica” é um filme delicado e sofisticado que trata com empatia um assunto contemporâneo, sem vulgaridade.


domingo, 10 de setembro de 2017

Bingo - O Rei das Manhãs


“Bingo - O Rei das Manhãs”, Brasil, 2017
Direção: Daniel Rezende

Nos anos 80, o apresentador do jornal da TV pergunta:
“- Quem é o homem por trás da máscara? ”
Referia-se ao famoso palhaço Bingo (o nome Bozo não foi usado no filme por problemas de marca), que dominava a audiência das manhãs com seu programa infantil. Por contrato, o palhaço não podia revelar sua identidade.
E esse foi o problema central na vida de Augusto (Arlindo Barreto na vida real) que conseguira o lugar do famoso palhaço da TV americana. Porque atrás da maquiagem e peruca de cabelos azuis, existia um ex ator de pornochanchadas que queria ter sucesso também como ele mesmo. Os holofotes iluminavam o palhaço e feriam cada vez mais o narcisismo de Augusto, levando-o a extremos no uso de drogas, bebida e frequentação da mulherada.
Pior. Isso também ocorria a poucos passos das câmaras de TV, nos intervalos do programa.
E foi o descontrole que empurrou o pobre Augusto de volta ao lugar de onde tinha vindo, o anonimato. Um dia, chegou no estúdio e foi avisado pela diretora do programa (a ótima Leandra Leal), que um outro já vestia a fantasia. Estava despedido.
Por causa da fama que lhe subira à cabeça, tanto que queria mais, sempre mais, numa compulsão poderosa, afastara-se do filho pequeno (Cauã Martins) e da mãe (Ana Lúcia Torre, que faz o papel de Marcia de Windsor, atriz que acabou decadente, como jurada na TV).
Essa compulsão por fama e falta de crítica, fez Augusto inserir piadas e falas fora do roteiro e mais, até convidar Gretchen (a única que aparece com seu nome real, interpretada por Emanuelle Araújo), uma de suas namoradas, a rebolar e cantar “Conga, Conga, Conga” para as crianças.
Vladimir Brichta faz muito bem o homem ávido por fama e reconhecimento. Em sua atuação, transparece claramente a complexidade da personalidade de Augusto. Aparecem as camadas infantis que facilitavam sua comunicação com as crianças e um outro lado perverso, que também passava através das palhaçadas e que acabaram produzindo uma atitude onipotente que foi a sua ruina.
Uma nota de tristeza é a presença de Domingos Montagner que faz a plateia sentir saudades desse ótimo ator que nos deixou de forma trágica e a quem o filme é dedicado.
Daniel Rezende, em seu primeiro longa, mostra sua familiaridade com o cinema, montador que foi de diretores famosos como Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”, montagem indicada ao Oscar), Walter Salles (“Diários de Motocicleta”2004), José Padilha (“Tropa de Elite”1 e 2, 2007 e 2010) e mesmo o diretor americano “cult”, Terrence Malick (“Árvore da Vida”2011).
Auxiliado por Lula Carvalho e sua fotografia talentosa, uma reconstituição de época excepcional e o roteiro do excelente Luiz Bolognesi, o filme de Rezende se destaca na filmografia nacional porque mostra que, para agradar às plateias mais diversas, não precisa apelar para a vulgaridade.
Excelente trabalho.



quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Atômica


“Atômica”- “Atomic Blond”, Estados Unidos, 2017
Direção: David Leitch

Mesmo quem não gosta de filme de ação, poderia se render e apreciar esse aqui. Porque ninguém fica alheio quando a sul-africana Charlize Theron está na tela. Em “Atômica” ela interpreta uma heroína de quadrinhos em uma história que se passa em 1989, no fim da Guerra Fria, “The Coldest City”.
O filme é um “flashback” contado por Lorraine Broughton, uma agente inglesa enviada a Berlim na semana em que o Muro caiu, para resgatar uma lista com o nome de todos os agentes ocidentais, que está nas mãos de um espião russo. Encontra David Percival (James McAvoy), agente inglês que deveria ajudá-la na missão e se envolve com uma agente francesa (Sofia Boutella), em cenas quentes, nunca vulgares.
Como em todo filme de espionagem, há reviravoltas. Ninguém sabe ao certo quem é quem. Agentes duplos podem estar agindo e atuando para atrapalhar os dois lados.
E Charlize Theron é fera. Quando aparece nua naquela banheira com gelo, seu belo corpo hipnotiza a plateia. Loura, alta, linda, músculos delineados e olhar sedutor, sabendo que é tudo isso, segura de si, assusta qualquer um que se mete com ela. Agressiva como uma leoa, o balé da força dela desaba sobre o agressor como um raio.
As cenas de luta, coreografadas para parecer extremamente violentas, são muito bem dirigidas por David Leitch, um ex dublê que entende do assunto. Destaque para a cena na escada, no prédio vazio, seguida de uma perseguição em carros que é de tirar o fôlego, aparentemente filmada em uma tomada só da câmara.
Charlize bate e apanha. E o ritual da banheira de gelo ajuda na recuperação de seu corpo. No dia seguinte, ela caminha soberana, com passos elásticos, para enfrentar outra meia dúzia de homens que também vão se dar mal. E as marcas deixadas em seu rosto aparecem na tela. Ela não esconde.
Sempre muito bem vestida, elegante e sexy, muito sexy, ela está deslumbrante tanto nos vestidos de noite, decotados, quanto na saia curta, botas longas e o “trench coat” branco.
Instintos à flor da pele, ninguém brinca com ela. Lorraine não descansa enquanto não consegue o que quer. Não veio a Berlim a passeio. Ela está sempre em prontidão para a luta e não importa quantos são. Ela dá conta.
“Atômica” tem ação contínua e variada. Luzes coloridas e ruas molhadas são usados com competência e estilo, Se há dublês não dá para notar. Aliás, contam que Charlize Theron quebrou dois dentes durante o filme. E ela está quase todo o tempo em cena, gostando de exibir sua força e graça felina.
Ela já foi a “serial killer” gorda e patética de “Monster – Desejo Assassino” e ganhou o Oscar. Em “Mad Max – Estrada da Fúria”, seu visual de mulherona, dentes à mostra, arrepiava.
Charlize Theron também produziu “Atômica” e dá o sangue para tudo sair na perfeição. E conseguiu. Maravilhosa.


domingo, 3 de setembro de 2017

Como Nossos Pais


“Como Nossos Pais”, Brasil, 2017
Direção: Laís Bodansky

Naquele almoço de domingo, uma família de classe média senta-se à mesa. A mãe traz direto do fogão a panela com a moqueca cheirosa, alvoroçando a filha Rosa, seu marido Dado, a duas netas e o filho com a nora dela.
“- Você caprichou ein? ” comenta a filha.
“- Para homenagear seu marido que voltou de uma longa viagem de trabalho! ”
“- E você poderia cuidar mais de nossas filhas... vive viajando. Eu não dou conta de tudo! ”, diz Rosa acidamente, voltando-se para o marido.
E o ambiente, naquele agradável pátio florido, começa a descambar para o azedume.
“- Você prefere que ele fique tomando conta de suas filhas? Ele tem um projeto ambiental maravilhoso! Quanto egoísmo...Fique esperta! “ declara a mãe.
E parecia que as coisas não iam acabar bem, quando cai aquele aguaceiro para esfriar os ânimos.
Depois da sobremesa, Rosa avisa que vai embora mas as filhas querem ficar. Ela não deixa.
“- Você é dura com elas...” reclama a avó.
“- E por que será? “ responde Rosa ironicamente. Meu pai nunca foi duro comigo. Ele era um pai maravilhoso!”
E, das duas histórias que a mãe (Clarisse Abujamra) tinha para contar para os filhos naquele domingo, ela só fala a primeira, que vai ao mesmo tempo esclarecer e perturbar ainda mais a relação dela com a filha Rosa (Maria Ribeiro).
Laís Bodansky, 47 anos, dirige e escreve o roteiro com seu ex-marido Luiz Bolognesi e faz um filme brilhante sobre as relações familiares na classe média brasileira urbana. Centra o foco na mãe e na filha e vai explorar um panorama de conflitos femininos, muitos deles geracionais, ou seja, passam de mãe para filha.
No filme, Clarice, a mãe, está doente e, claramente, numa fase em que a boa saúde da filha a incomoda porque ela vive outra sorte de infortúnio e os problemas de Rosa com o marido e as filhas parecem a ela banais e egoístas.
A inveja que permeia a relação mãe/filha foi muito bem explicada num artigo de Contardo Calligaris (Folha de 31 de agosto de 2017) que comentou “Como Nossos Pais” por esse ângulo.
Aliás, pelos contos de fadas, sabemos bem, desde crianças, das relações de inveja mortal das madrastas, mães más que invejam a juventude de Branca de Neve e Cinderela.
Além disso, no filme, Rosa, alheia aos motivos da mãe que enfrenta a morte de perto, não consegue refrear sua hostilidade e faz da mãe a razão de muitos de seus problemas. Existe aqui uma relação complicada que emerge para ser vivida à luz dos acontecimentos da vida das duas.
E Rosa não percebe que padece do mesmo mal que muitas de nós conhecemos: apesar de tudo, somos nossas mães com nossos filhos, seja no avesso, fazendo o que elas não fizeram, seja repetindo a história delas.
No filme, mãe e filha trabalham para sustentar os filhos, já que os maridos de ambas (Paulo Vilhena e Jorge Mautner) se dão ao luxo de realizar seus sonhos, o que não inclui alimentar a família.
No Brasil, quantos lares tem as mulheres como chefe de família? Em classes sociais menos aquinhoadas, o pai já partiu faz tempo. E a mãe arca com tudo. Para essas mulheres, o feminismo não ajudou em nada. Aliás, o feminismo, novo ou velho, engatinha por aqui. Somos um país machista e tristemente, muitas mulheres se comportam como tal.
Mas, voltando a “Como Nossos Pais”, há uma reflexão sobre realização profissional e no casamento, levada a sério por Rosa, que muitas de nós já viveram ou estão vivendo.
Na verdade, há mais perguntas do que respostas prontas nesse campo dos conflitos femininos.
“Como Nossos Pais” foi contemplado com seis Kikitos no Festival de Gramado como melhor filme, direção, roteiro, montagem e interpretações de Maria Ribeiro (Rosa), Paulo Vilhena (Dado) e Clarisse Abujamra (a mãe magnífica).
Laís Bodansky, que assinou a direção de “Bicho de Sete Cabeças” e “As Melhores Coisas do Mundo”, escolhe falar outra vez com sensibilidade sobre os conflitos do ser humano. O que ela faz sempre muito bem.