domingo, 12 de dezembro de 2010

Film Socialisme





“Film Socialisme”, França / Suiça, 2010

Direção: Jean- Luc Godard





Livre-se de seus preconceitos. Você não vai assistir a um filme com história, como está acostumado. Você vai ser sacudido da inércia habitual que nos acompanha ao cinema, para pensar, correr atrás de imagens, puxar da memória uma sequência e já ter que esquecê-la para acompanhar outra proposta. Incômodo e instigante.

E a ironia do destino é que quem nos propõe essa aventura é um senhor que acaba de completar 80 anos. Jean- Luc Godard, o francês fundador da “nouvelle vague”, o diretor de “Acossado”(1960) com Belmondo e Jean Seberg, de “Pierrot- le fou – O demônio das onze horas” e “Alphaville”(1965),”A Chinesa”(1967), “Je vous salue Marie”(1985- censurado no Brasil) e tantos outros.

Godard e o português Manuel de Oliveira, de 102 anos, com o seu magnífico “O sorriso de Angélica”, que acaba de passar na Mostra de SP, são, irônicamente, aqueles que propõem um novo cinema, cada um à sua maneira. Saudosismo português e enciclopedismo francês?

O certo é que todos os dois tem uma vantagem sobre nós. Viveram mais tempo, são europeus ligados a uma cultura sólida e testemunharam ao vivo os acontecimentos políticos que abalaram o século XX.

Ambos são pensadores, não meros cineastas.

“Film Socialisme” de Godard e “Um filme falado” de Manoel de Oliveira passam-se em um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Coincidência? Penso que não. Ambos vão nos fazer percorrer o caminho de antigas civilizações que aí floresceram, para pensar sobre a humanidade que virá e refletir sobre as questões ligadas à passagem do tempo.

Não podemos nos esquecer que esses dois diretores estão mais próximos da morte do que seus espectadores mais jovens, se tudo correr bem. E fazem como que uma espécie de balanço do que viveram e do que aprenderam sobre a humanidade. Um testamento em imagens e palavras.

“Film Socialisme” usa várias linguagens de comunicação visual e muitas línguas, nem sempre traduzidas (de propósito) nas legendas. Remete a um mundo caótico, no qual a ordem sistemática só existe na geometria, por exemplo, que é um dos temas das conversas entreouvidas na primeira parte do filme, que se passa no navio.

Enquanto os turistas em atitude bovina comem, bebem, dançam, fotografam, tudo filmado numa imagem de vídeo caseiro, cores saturadas e imagens borradas, há alguns que pensam, lêem livros e conversam sériamente.

Falam de capitalismo (“O dinheiro foi inventado para os homens não abrirem os olhos”), do abandono da África (“A Aids é um instrumento para matar os negros do continente”), justiça (“Tudo bem, guerra é guerra, mas um crime é ainda um crime”), os ingleses na Palestina, as Cruzadas (“Existiram para vingar Cristo”), Husserl, religião e ética (“Cada um pode agir como se Deus não existisse, mas o problema hoje em dia é que os safados são sinceros”), computadores, a Segunda Guerra (“Você sabia que kamikaze quer dizer divindade do vento?”), o ouro de Moscou e Stálin, socialismo (“O dinheiro é um bem público como a água”), Napoleão, Islã, e muito mais.

São associações livres que remetem a assuntos intermináveis. Godard com sua câmara como que faz uma reportagem de TV sobre os humanos. “En passant”, ou seja, sem se deter, nem aprofundar, como é a maioria das informações que nos chegam no mundo de hoje.

Os momentos de grande beleza continuam sendo, como desde sempre, a água do mar eterno com sua espuma branca, o por-do-sol deslumbrante, o ruído do vento captado pelo microfone de Godard, os tubarões que se alimentam dos cardumes na água azul. Permanência.

Na segunda parte (Quo Vadis Europa), a reportagem é sobre as crianças, os que herdarão e vão tentar lidar com os problemas que deixamos para eles. Apesar da aparente dissolução da família, aqui também há permanência, como na belíssima cena do menino que acaricia o corpo da mãe (o Complexo de Édipo, uma homenagem à psicanálise?)

Uma lhama andina e um burrico aparecem na garagem da família. Não são mais animais na natureza ou ajudando o homem a trabalhar. A máquina e o sintético os substituiu e agora só lhes resta ser bichos de estimação.

E na terceira parte, Godard faz um vôo supersônico sobre personagens e lugares míticos. Egito, pirâmides de Sakara, a deusa- gata Bastet, Núbis, o deus da morte (“O sol e a morte não podem ser encarados de frente.”) Escrita árabe e hebraica superpostas. O Muro das Lamentações. Uma coruja branca nos degraus de um templo encara a câmera (personificação da sabedoria de Hera ou companheira de Harry Potter?) Odessa (cenas do filme “Encouraçado Potenkin”). Grécia (“A democracia e a tragédia se casaram na Grécia com Sófocles. A guerra civil foi seu único filho.”) Anfiteatros greco-romanos em ruínas. Estátuas gregas (“Cassandra, por que querias tanto o dom da profecia?) Nápoles e cenas do fim da Segunda Guerra. Barcelona e as touradas.

No final aparece na tela o aviso do FBI contra a pirataria. E alguém diz:

“- Quando a lei não é justa, a justiça passa adiante da lei.”

Essa é uma das leituras possíveis de “Film Socialisme”. Só você indo ver para fazer a sua.

2 comentários:

  1. Eu continuo vendo os filmes tudo atrazado, voltando sp pro blog pra aprender a ver o filme e dando os meus pitacos.
    Boas festas pra vc, Eleonora.
    Aguardarei pacientemente sua volta.

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  2. Minha fiel companheira Sylvia,
    Acho que ainda vou postar mais um filme que vi ontem. Um documentário imperdível. Oceanos.Vá correndo ver!Boas Festas pra vc tb!
    Bjs

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