Não é um filme para multidões. Porque, como tudo que sai da câmara de Lars Von Trier, tem de ser decodificado. Neste sentido, Anticristo participa da natureza da arte conceitual contemporânea que não é para ingênuos.
Por outro lado, há uma comunicação intuitiva com a plateia, que se incomoda. Porque o filme trata, por meio de imagens concretas, de realidades psicológicas comuns a todos nós.
As cenas iniciais em preto e branco são oníricas, poéticas, perfeitas. Mais parecem pertencer ao mundo do faz-de-conta da propaganda.
Charlotte Gainsburg, que ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes por esse filme, e Willem Dafoe são o casal que transa enquanto o filho pequeno abre a janela de seu quarto e se joga, embalado pela neve que cai, com uma expressão de prazer no rostinho.
E é aí que entram em cena os personagens enigmáticos do filme, os três mendigos: Dor, Luto e Destruição. Como bibelots colocados na mesa diante da janela que permite o vôo da criança para a morte, antecipam o horror que vai acontecer.
A mãe é internada e tratada com remédios e o pai, que é psicólogo, interrompe o tratamento e a leva para a cabana deles na floresta. Lá, tenta lidar com a depressão da mulher por meio de técnicas de psicologia comportamental. Pagará caro por sua arrogância porque o caos vai surgir nessa floresta filmada em tons terrosos e escuros.
Freud morreu? O inconsciente não existe mais?
Pois é no Éden (como eles chamam essa floresta) que vão aparecer para o casal os moradores do mundo interno: os demônios que nos assombram por dentro.
A mãe desenvolveu um luto patológico, uma melancolia que tem suas raízes na psicose encoberta com a qual ela convive. O marido ignora tudo isso.
A tese sobre a caça às bruxas na Idade Média que ela tentou escrever nessa mesma cabana no verão passado, acompanhada pelo bebê, deflagrou nela uma identificação com o mal. O que era para ser criticado com a razão torna-se possessão.
As imagens de tortura que ela cola nas paredes da cabana a impressionam e fazem surgir uma culpa persecutória com raízes em suas fantasias infantis.
Melanie Klein, psicanalista que fundou a psicanálise infantil, descreveu essas fantasias nas quais a mãe-má é contraponto para a mãe-boa. Na ausência dessa mãe-fada ocorrem as fantasias sádicas sobre ataques com dentes e garras à mãe-bruxa. E se enraíza em nós a culpa persecutória.
É uma descida aos infernos que acompanhamos com terror, como se fôssemos crianças ouvindo os contos dos irmãos Grimm, antes de dormir com pesadelos. Os bichos-fêmea que contracenam com o casal parecem saídos das ilustrações de livros infantis do século XIX.
“É o caos”, informa a raposa que devora as próprias entranhas.
A culpa projetada no marido transforma a mulher em torturadora e assassina. As cenas de mutilação são terríveis e a morte é o destino da mulher-bruxa.
A cena final lembra o mito da expulsão do Paraíso: o homem, amparado em muletas, abandona o Éden onde ele era uma criança ingênua. E parte, ferido, para a realidade.
Acompanhado por uma multidão de mulheres silenciosas (as bruxas resgatadas de suas fogueiras?) ele se prepara para refletir sobre a vida, o amor e o ódio.
COMENTÁRIOS:
ResponderExcluirRaphael Silvestre Molesim, em 22 de outubro de 2009, às 12:04
Eu particularmente não gostei do filme, achei que misturar realidade e fantasia da forma que foi feita não foi uma boa. Sem falar que o filme não passa nenhuma grande mensagem, a mensagem do filme: "Se seu filho morrer enquanto você trepa você pode ficar louco(a)" e o resto do filme é a loucura de um dos personagens.
Achei pretencioso demais, fazendo várias metáforas e sem falar que aquele final ninguém entendeu!
Sylvia Manzano, em 21 de outubro de 2009, às 20:51
Eu adoro uma leitura psicanalítica de filmes, romances, poesias, música...
Estreou com nota 10, Eleonora.
Anticristo foi postado originariamente em 5 de outubro de 2009, às 16:00, no MPost
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