A tela é escura. Vozes se entrecortam. Os letreiros aparecem em amarelo. Alguém reclama das algemas em seu pulso. Sentimos, no escuro, que o medo é o melhor aliado da sobrevivência.
Nesse primeiro impacto já se anuncia a saga do anti-herói Malik, um menino francês de origem árabe em Paris, que sai do reformatório e vai direto para a prisão cumprir pena de seis anos porque ficou adulto. Passa pela “cidade das luzes” no breu de um carro de polícia.
Pouco ou nada sabemos desse garoto que não conseguimos ver nas imagens indistintas e tumultuadas que abrem o filme “O profeta”. Mas o mais importante é o que se percebe desde o início: sua história lê-se no corpo magro marcado por cicatrizes profundas. Foi muito castigado.
Nada possue, a não ser uma nota de 500 euros que esconde com cuidado e da qual é despojado na entrada da cadeia. Revistado em todos os buracos de seu corpo, onde se esconde a sua alma?
Talvez seja esse o principal fio condutor para entender Malik: ele procura saber quem é. Solitário, não tem amigos nem identidade. Mas, precisa ter, para sobreviver naquele mundo onde mandam os chefes das máfias, corsos e árabes, que orquestram o crime organizado de dentro da cadeia.
Tarefa árdua para quem não sabe responder às perguntas do funcionário da prisão:
- Qual a sua língua materna?
Ele balbucia algo como “não tenho”...”reformatório”... “francês”...”árabe”...
-Mas se você preencheu a sua ficha de modo incompleto, você estudou um pouco, não?
-Até os 11 anos...
Ele é semi-analfabeto. Aliás pode até conhecer algumas letras mas nada faz muito sentido para ele. Ele até aprende a ler e um ofício na prisão. Mas é muito pouco.
O diretor Jacques Audiard conta essa história com cores rebaixadas e cortes abruptos. A ação não é interrompida por explicações. Cabe ao espectador acompanhar a descida aos infernos de Malik (Tahar Rahim).
Os modelos que ele segue na prisão, para colar-se neles porque não sabe o quê fazer, são os disponíveis. Para quem precisa de pai, ele encontra um patrão perverso, o corso Luciani (Niels Arestrup):
- “Acha que vai durar aqui sem proteção? Você vai fazer o que eu mando. Você vai matar o árabe. Você consegue. Vamos ajudar. Mas saiba de uma coisa. Se você não matá-lo, sou eu que mato você.”
Na cadeia, a desgraçadamente famosa “escola do crime”, em busca de proteção, apego, identidade, Malik vai conhecer o mundo das sombras dentro dele. E vai ter relances do que poderia ter sido, se o destino não o colocasse em situações-limite nas quais as reações são às cegas e o medo da morte rege a mente.
Malik se apega a seus demônios internos na falta de uma tábua de salvação. Mas ele já afundou e não sabe.
Há momentos de lirismo e quase felicidade quando Malik voa de avião pela primeira vez em sua vida, quando conhece o mar ou nina o bebê, filho do amigo Ryad. Mas ainda é muito pouco.
Malik é a presa no mar de lama e sangue onde afundou. Por isso percebe o perigo que correm as gazelas na estrada que corta o bosque e por onde transita um carro a toda velocidade. Massacre.
-Como adivinhou Malik? Você é profeta?
E na cena final somos nós que, com horror, percebemos o perigo que ronda um Malik que, finalmente liberto da prisão, acha que se encontrou e que vai ter e dar amor.
Alguém canta de um modo sarcástico a canção “Mack the Knife” da “Ópera dos três vinténs” de Brecht que fala de um tubarão que esconde os dentes...
“O profeta” ganhou o “Grand Prix” do Festival de Cannes em 2009 e confirmou sua carreira de sucesso com nove Césars, o Oscar francês, entre os quais o de melhor filme, melhor ator para Tahar Rahim, melhor ator coadjuvante para Niels Arestup, melhor argumento original e melhor cenografia.
É um filme duro, difícil de ver mas obrigatório para quem quer pensar as questões humanas em boa companhia.
O Profeta - “Un prophète”
França/ Itália, 2009
Diretor: Jacques Audiard
Elenco: Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adel Bencherif, Hichem Yacoubi, Reda Kateb, Jean-Philippe Ricci
Produção: Lauranne Bourrachot, Martine Cassinelli, Marco Cherqui
Roteiro: Thomas Bidegain, Jacques Audiard
Fotografia: Stéphane Fontaine
Trilha Sonora: Alexandre Desplat
Classificação: 12 anos
Em cartaz
Veja o trailler
Eleonora Rosset é psicanalista.
Nesse primeiro impacto já se anuncia a saga do anti-herói Malik, um menino francês de origem árabe em Paris, que sai do reformatório e vai direto para a prisão cumprir pena de seis anos porque ficou adulto. Passa pela “cidade das luzes” no breu de um carro de polícia.
Pouco ou nada sabemos desse garoto que não conseguimos ver nas imagens indistintas e tumultuadas que abrem o filme “O profeta”. Mas o mais importante é o que se percebe desde o início: sua história lê-se no corpo magro marcado por cicatrizes profundas. Foi muito castigado.
Nada possue, a não ser uma nota de 500 euros que esconde com cuidado e da qual é despojado na entrada da cadeia. Revistado em todos os buracos de seu corpo, onde se esconde a sua alma?
Talvez seja esse o principal fio condutor para entender Malik: ele procura saber quem é. Solitário, não tem amigos nem identidade. Mas, precisa ter, para sobreviver naquele mundo onde mandam os chefes das máfias, corsos e árabes, que orquestram o crime organizado de dentro da cadeia.
Tarefa árdua para quem não sabe responder às perguntas do funcionário da prisão:
- Qual a sua língua materna?
Ele balbucia algo como “não tenho”...”reformatório”... “francês”...”árabe”...
-Mas se você preencheu a sua ficha de modo incompleto, você estudou um pouco, não?
-Até os 11 anos...
Ele é semi-analfabeto. Aliás pode até conhecer algumas letras mas nada faz muito sentido para ele. Ele até aprende a ler e um ofício na prisão. Mas é muito pouco.
O diretor Jacques Audiard conta essa história com cores rebaixadas e cortes abruptos. A ação não é interrompida por explicações. Cabe ao espectador acompanhar a descida aos infernos de Malik (Tahar Rahim).
Os modelos que ele segue na prisão, para colar-se neles porque não sabe o quê fazer, são os disponíveis. Para quem precisa de pai, ele encontra um patrão perverso, o corso Luciani (Niels Arestrup):
- “Acha que vai durar aqui sem proteção? Você vai fazer o que eu mando. Você vai matar o árabe. Você consegue. Vamos ajudar. Mas saiba de uma coisa. Se você não matá-lo, sou eu que mato você.”
Na cadeia, a desgraçadamente famosa “escola do crime”, em busca de proteção, apego, identidade, Malik vai conhecer o mundo das sombras dentro dele. E vai ter relances do que poderia ter sido, se o destino não o colocasse em situações-limite nas quais as reações são às cegas e o medo da morte rege a mente.
Malik se apega a seus demônios internos na falta de uma tábua de salvação. Mas ele já afundou e não sabe.
Há momentos de lirismo e quase felicidade quando Malik voa de avião pela primeira vez em sua vida, quando conhece o mar ou nina o bebê, filho do amigo Ryad. Mas ainda é muito pouco.
Malik é a presa no mar de lama e sangue onde afundou. Por isso percebe o perigo que correm as gazelas na estrada que corta o bosque e por onde transita um carro a toda velocidade. Massacre.
-Como adivinhou Malik? Você é profeta?
E na cena final somos nós que, com horror, percebemos o perigo que ronda um Malik que, finalmente liberto da prisão, acha que se encontrou e que vai ter e dar amor.
Alguém canta de um modo sarcástico a canção “Mack the Knife” da “Ópera dos três vinténs” de Brecht que fala de um tubarão que esconde os dentes...
“O profeta” ganhou o “Grand Prix” do Festival de Cannes em 2009 e confirmou sua carreira de sucesso com nove Césars, o Oscar francês, entre os quais o de melhor filme, melhor ator para Tahar Rahim, melhor ator coadjuvante para Niels Arestup, melhor argumento original e melhor cenografia.
É um filme duro, difícil de ver mas obrigatório para quem quer pensar as questões humanas em boa companhia.
O Profeta - “Un prophète”
França/ Itália, 2009
Diretor: Jacques Audiard
Elenco: Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adel Bencherif, Hichem Yacoubi, Reda Kateb, Jean-Philippe Ricci
Produção: Lauranne Bourrachot, Martine Cassinelli, Marco Cherqui
Roteiro: Thomas Bidegain, Jacques Audiard
Fotografia: Stéphane Fontaine
Trilha Sonora: Alexandre Desplat
Classificação: 12 anos
Em cartaz
Veja o trailler
Eleonora Rosset é psicanalista.
Vilmar Milagre]
ResponderExcluirA televisão brasileira devería passar filmes que não fossem produzidos em Hollywood para ver se diversifica a nossa cultura.Tenho visto películas produzidas na África do Sul, no Irã,na Europa e na América Latina,que são de alta qualidade. Fica de olho TV Brasil para que deixemos de ser a perifería dos Estados Unidos.
16/07/2010 02:58
16/07/2010 02:58
ResponderExcluir[joubert]
...ainda estamos e vivemos neste mundo de sombras como malik dentro desta colmeia de 500anos onde cada favo é uma incerteza e la fora onde cada flor é esperança alimentando esse sistema de incertezas....incertezas que sòmente a nossa revolução pode dar conciência, vida e liberdade a esses milhões de favos....
16/07/2010 01:32
ResponderExcluir[Laurindo]
Que boa e trágica informação. Vou assistir, sem dúvida. A resenha feita foi muito boa, na medida, no sentido de instigar a leitura.
Obrigado
15/07/2010 23:41
ResponderExcluir[wilson]
Na dúvida de se ver o filme, quem ainda a tiver, valem as referências de prêmios citados pela Psicanalista.
Eleonora, que sua coluna cinematográfica se multiplique para que possamos “pensar nas questões humanas” em boa companhia.
Eleonora, Zé Dirceu, e seus companheiros(as), desculpem esse comentário em 3 tempos, afinal esse espaço sobre cinema é “avant première” e não tive como segurar a emoção de estar nessa página em “companhia’” de vcs.
15/07/2010 23:40
ResponderExcluir[wilson]
Enfim, quero dizer que ainda não vi o filme, mas se a Psicanalista, que escreve c/ alma seus comentários, diz que “Un Prophète” “...É um filme duro, difícil de ver mas obrigatório para quem quer pensar as questões humanas em boa companhia.”, vou me juntar, o mais breve que puder, aos que vão às salas de cinema e posteriormente aqui aos comentários, esperando ser, pelo menos intenciosamente, tbém uma “boa companhia”. E democratas que somos, na “pior das hipóteses”, o cinema nos une. (continua....)
15/07/2010 23:39
ResponderExcluir[wilson]
Exercitando o prazer diletante pelo cinema, e na busca de alimentar esse prazer, descubro que a Psicanalista Eleonora Rosset, pelo que sei através da imprensa, apaixonada por cinema, está com um comentário sobre o filme “O PROFETA”. Onde? Aqui, no portal do Zé Dirceu. O que o cinema não é capaz de fazer!! Um simpatizante tucano, como eu, no site de um petista visitando uma coluna de dinema, também de uma petista. Pode uma coisa dessa?!....Pode, não pode?! (continua...)
CRUEL, é marca que todo filme de prisão traz, desde os idos de Alcatraz. É um sinete de fogo na “carne carcerária”.
ResponderExcluirDiferentemente de temas similares em que a gente “até torce pelo sucesso do vingador”, nesse filme, não temos essa chance.
Mesmo Eleonora nos avisando de que ”...É um filme duro, difícil de ver mas obrigatório...” acho que a gente não se prepara o suficiente. É cruel e direto, tanto que a sugestão de um possível happy hand – e até certo ponto o é – fica comprometido até que a próxima execução ou até o próximo massacre, nunca último, aconteça, e vai suceder, mesmo mantendo “a família fóra dos negócios”, como sugere a imagem e a música “Mack the Knife”, muito bem lembrada por ela.
Sempre (ou quase!) “...pode-se sair daqui melhor do que quando se entrou...”, antevê O Profeta. De qualquer situação. P/ o BEM ou p/ o MAL. Principalmente se se assume, ou se ouve o lado “solitário”, ou seja, cd 1 sozinho, como ponto de partida. Mesmo obedecendo ordens, Malik se reconhece sempre trabalhando pra si. Tudo o que se precisa é, no mínimo, contar consigo mesmo. A partir daí, as demais articulações. Infelizmente, tudo o que aprendeu pra sobreviver é sair, não pra liberdade dos livros ou de uma profissão, mas sim, pra CASSAR recursos (gente e coisas) que garantam seu espaço de “Vida.” C/ isso,- onde se esconde a sua alma?- endurecendo-a, apenas levemente suavizada na relação c/ seu Amigo, tbém ele PREDADOR. O tumor, talvez, significando essa outra “contaminação”.
Fiquei pensando se O Profeta não é o lado Atento, Centrado, Reflexivo e sobretudo INTUITIVO de cd um de nós. Utilizando até mesmo “...o medo.. como....o melhor aliado da sobrevivência” (sic).
Ajudando a gente respirar um pouco, - porque o filme não dá trégua, - Audiard nos agracia c/ o canto de pássaros no silêncio escuro da 1ª manhã de condicional de Malik, e c/ o mar, a família do amigo, em especial, o bebê no meio disso tudo. Afinal, um núcleo familiar que Malik não teve; uma raiz, tão frágil e tão ameaçada.
O filme de Audiard vale as interpretações todas, (Tahar Rahim “subindo” seu personagem), vale os prêmios e sobretudo sua “coragem” em assisti-lo. Pode até “odiá-lo” (desculpem!), mas é um aprendizado e tanto sobre esse Homo Predator, capaz de se emocionar, diante do castigo infringido ao “...patrão perverso...”, quem sabe o pai, o ”protetor” inexistente.
(Sempre) há uma Esperança, tênue que seja.
Homo Predator: na 1ª cena da estrada, antes dos alces, 2 rápidas imagens em “PP”, mostram o olho e a boca de Malik, parecendo um lobisomen. (Conferem?).
Obrigado, Eleonora, a vc e aos seus/suas seguidoras(es) por esse espaço para, como vc disse, “pensar as questões humanas em boa companhia.“