terça-feira, 28 de abril de 2015

Frank

 
“Frank”- Idem, Inglaterra, Irlanda, Estados Unidos, 2014
Direção: Lenny Abrahamson

Parece incrível, mas é verdade. Existiu um músico inglês “cult”, “punk-rocker” e comediante, que o público conhecia como Frank Sidebotton, que usava uma cabeça imensa de “papier-maché”, com enormes olhos azuis arregalados, cabelo pintado de preto e boca vermelha. Seu nome era Chris Sievey (1955-2010). Jon Ronson, que o conheceu, co-escreveu com Peter Straughan o roteiro do filme de Lenny Abrahamson.
“Frank” usa esse personagem para montar uma fábula que trata sobre temas como arte, originalidade, enganação, doença mental, megalomania, depressão, perversão. Tudo sem muita profundidade e sem respostas cabais para nada. O tom é o de uma comédia com tintas de tragédia.
Talvez Frank use aquela cabeça enorme porque tem medo de ser ele mesmo, uma nulidade. Todos usamos máscaras sociais mas Frank é o auge disso. Claro que ele é psicótico e o filme o cerca de tantos personagens malucos que formam a banda, que Frank é disputado por todos eles. Todos querem o amor de Frank. No fundo todos querem ser como ele, o líder, o admirado, o que canta, o que compõe. Mas alguém sabe quem é Frank na verdade?
 No fundo, ele é um grande manipulador. E quer ser um ídolo, apesar de inicialmente não admitir isso. E torna-se um elemento enlouquecedor por causa dessas mensagens contraditórias.
Michael Fassbender interpreta Frank de maneira genial. Modula a voz e sua expressão corporal é tão boa, que ele não precisa do rosto para passar o que personagem pensa. Ginga o corpo, usa os braços e as mãos de forma eloquente, como só um grande ator, que ele é, consegue fazer.
O resto da banda serve para ilustrar outros tipos de seres humanos surtados, manipulados por Frank. Um jogo perigoso, que se torna mortal.
Assim, Jon (Domhnall Gleeson) é o que conta a história toda e entra na banda por acaso porque o tecladista tentou o suicídio. Ele é catapultado da casa dos pais e um emprego burocrático para viver com Frank e o resto da banda no campo, onde irão gravar o disco fundamental. Tem também o gerente Don (Scoot McNairy), a percussionista Nana (Carla Azar), o francês do baixo, Baraque (François Civil) e a siderada por Frank e ciumenta Clara (Maggie Gyllenhaal).
Mas “Frank” é para poucos, apesar do sucesso que fez nos festivais de filmes independentes. Ou até por causa disso mesmo. Diferente de tudo que se vê, não se pode negar originalidade ao diretor irlandês. E tem Michael Fassbender. Não se esqueçam disso.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Pássaro Branco na Nevasca



“Pássaro Branco na Nevasca”- “White Bird in a Blizzard”, França, Estados Unidos, 2014
Direção: Gregg Araki

É sempre difícil atravessar a adolescência.
Mas, na vida de Kat, 17 anos, é a mãe dela que parece estar vivendo sérios problemas. Eva Connors é uma bela mulher e perfeita dona de casa mas, aos olhos da filha, sempre pareceu fora de prumo.
Uma das recordações mais antigas da garota é o porquê do nome dela, Katherine:
“- Ela me deu esse nome para poder me chamar de Kat. Eu era o gatinho dela. Por anos pensei que eu fosse um animal de estimação.”
Kat acha que a mãe nunca gostara dela. Cabelos muito lisos e gordinha na infância, desagradava à mãe que a queria parecida com ela, esbelta e elegante. Mas, quando sua gordura derreteu na adolescência e apareceu um corpo bonito, isso também não agradou à mãe, que Kat achava que a invejava.
Curiosa sobre a vida sexual dos pais, como toda a criança, a adolescente se lembra de uma gaveta secreta do pai com revistas de mulheres nuas e na gaveta da mãe um livro sobre como atingir o orgasmo:
“- Foi perturbador descobrir a péssima vida sexual deles.”
E, quando Kat tinha 17 anos, a mãe desaparece sem deixar bilhete, nem vestígios. Mas não sem confessar antes à filha, com rancor, que nunca amara o marido:
“- Eu tinha medo que ela enlouquecesse e sufocasse meu pai com o travesseiro ou pusesse fogo na casa. Mas, ao invés disso, ela sumiu.”
E Kat começa a ter sonhos perturbadores. Sempre no meio da neve e do gelo, a mãe aparece chamando por ela. Culpa e negação da realidade parecem motivar esses sonhos, que ela conta para uma terapeuta, aparentemente desatenta, como a mãe dela.
O pai, que ela vê como um sujeito submisso e apático, também não parece ser de grande ajuda para Kat.
O namorado, um garoto vizinho (Shiloh Fernandez), filho de uma cega, não está muito interessado sexualmente nela. Ironicamente ela escolheu o mesmo tipo de homem que a mãe escolhera e desprezava?
Tal mãe, tal filha?
O filme “Um Pássaro Branco na Nevasca”, do diretor Gregg Araki, que também produziu e escreveu o roteiro adaptado do livro de Laura Kasischke, é surpreendente. Um ótimo elenco, fotografia com tons que sugerem as emoções das cenas, “flash-backs” que vão desvendando aos poucos o segredo que envolve o desaparecimento da mãe de Kat e direção de arte e trilha sonora que embrulham bem o suspense com um final inesperado.
Eva Green está deslumbrante como a bela mulher decepcionada com a vida, agressiva e contundente, egoísta e surtada. Mas Shailene Woodley (“A Culpa é das Estrelas”) é quem rouba muitas cenas e mostra porque é um nome em ascensão no mundo do cinema, aos 22 anos.
Gregg Araki é reconhecido por cinéfilos e disputado por bons atores.
Mas não pense que o filme é complicado ou tem final aberto. É o contrário disso e há críticos que não gostaram do que chamaram de filme para a TV.
Eu achei “Pássaro Branco na Neblina” intrigante e muito bem feito. Vá ver e opinar você também.

O Diário da Esperança



“O Diário da Esperança”- “A Nagy Fuzet”, Hungria, Alemanha, Áustria, França, 2013
Direção: János Szász

A Segunda Grande Guerra foi palco de muitos dramas. Como em toda guerra, a humanidade do inimigo desapareceu ou quase, e viveu-se um dia a dia de busca de sobrevivência e medo.
A história dos gêmeos de doze anos que são deixados no campo pela mãe, com a avó, que ela não vê há muito tempo, em si mesma já é dramática. Por que aquela filha se afastou assim dos pais? E para onde segue?
“- Por anos você não me escreveu e agora quer que eu a ajude?” pergunta a mãe da mãe.
“- Só quero que você proteja meus filhos.”
“Será que pelo menos eles tem um pai? Não fui convidada para o casamento... Vou por os dois para trabalhar. Comida não é de graça.”
E aquela velha baixinha e mal vestida, que mora numa casa pequena e suja e é intratável, vai infernizar a vida dos gêmeos.
O pai deles dera aos filhos um caderno, antes de voltar para a guerra. E a mãe pedira que eles fossem fortes e continuassem os estudos.
Aquele diário será preenchido com relatos da vida dos meninos. Terá marcas e restos de penas, sangue e desenhos, retratando os horrores a que presenciam. Ouvimos em “off” a voz de um deles que vai narrando os acontecimentos registrados no diário.
O diretor János Szász adaptou o romance de Agota Kristof (1935-2011), com fotografia de Christian Berger, que deu uma beleza flamenga aos retratos da natureza, sob o sol ou a neve, sem que com isso se esconda a podridão que ronda e que vai transformar aqueles meninos em sobreviventes sem sentimentos ternos.
Para ficar mais resistentes, os gêmeos resolvem treinar o corpo para não sentir dor. Todos batiam neles sem precisar de nenhuma razão. Então, eles vão endurecer, esquecer que tem mãe, pai ou que passam fome e sede.
“- Precisamos esquecer das palavras doces de mamãe porque aqui ninguém nos trata assim e porque recordá-las dói muito.”
O oficial alemão, comandante do campo de concentração além da fronteira e que mora numa outra casa da avó, pergunta:
“- Por que vocês batem um no outro?”
“- Para nos acostumarmos com a dor.”
“- Vocês gostam da dor?”
“Não. Só queremos vencer a dor, o frio, a fome.”
Colocando uma couraça invisível, os dois só tem um ao outro, para poder sobreviver naquele inferno. Mas até isso será tirado deles, por eles mesmos.
Resta alguma piedade nos gêmeos porque não são maus. São apenas duas crianças fazendo o que podem para enfrentar homens em guerra.
Haverá esperanças de dias melhores?
Nós, adultos, precisamos pensar no que fazemos com nossas crianças e o que ensinamos a elas com os nossos exemplos. “O Diário da Esperança” fornece um bom material para esse exame de consciência necessário.

As Maravilhas



“As Maravilhas”- “Le Meraviglie”, Itália, Suiça, Alemanha, 2014
Direção: Alice Rohrwacher

Vamos assistir a um filme de uma diretora talentosa que, em seu segundo longa, fala do feminino usando de metáforas da natureza e ao mesmo tempo se utilizando de um registro naturalista, próprio do cinema tradicional italiano. Ao mesmo tempo, há uma preocupação com mudanças perigosas, enganos, rupturas, desaparecimento de uma cultura, desastres.
Uma atmosfera de sonho angustiado cerca as primeiras cenas do filme, quando faróis de carros, como olhos luminosos no escuro, brilham na tela. Cães farejam na noite. Há homens armados. O que está acontecendo?
A câmara mostra casas num lusco-fusco e, numa delas entra em um quarto, outro. Uma menina dorme só de calcinha. Mas há mais gente por ali.
“- Aonde você vai?” pergunta quem supomos ser a mãe (Alba Rohrwacher, irmã da diretora).
“- Preciso fazer xixi”, responde a menina.
O homem que supomos ser o pai (Sam Louwyck) está em outra cama.
“- Os caçadores atiraram?”
Há uma ameaça que pesa sobre aquela família.
De chofre, sem qualquer explicação, somos jogados dentro dessa casa.
Depois percebemos que são pai, mãe e quatro filhas. A mais velha é Gelsomina (mais prática que a de Fellini em “Noites de Cabíria”), Marinella é a segunda, a mais alegre. Catherina e Luna são as menores. Recolhem o mel de colméias de maneira artesanal.
Há uma constante preocupação com o balde para onde escorre o mel. Quando está cheio, as meninas o esvaziam num reservatório maior, de onde vai para os potes que as pequenas rotulam.
Gelsomina é a lider do trabalho. Lida com as abelhas ajudada pelo pai. Mas a menina nunca é picada. É ela que tira os ferrões das costas do pai.
O pai usa o italiano mas palavras em alemão se intrometem em sua boca. Com a mãe fala em francês. Por que? Não sabemos.
E todos os dias são iguais até que chega a dona do “País das Maravilhas”.
A fada-deusa, vestida de sedas e ouro falso, interpretada pela bela Monica Bellucci, comanda um programa de TV que propõe um concurso entre as propriedades da região. O cobiçado prêmio em dinheiro irá para o melhor show. As meninas logo se interessam pela novidade, apesar da proibição do pai.
Na necrópole etrusca, no meio do lago, as velhas do lugar vão cantar antigas canções, mocinhas vão dançar com fantasias improvisadas, e Gelsomina vai trazer seu rosto, escondido entre suas mãos, onde abelhas passeiam com intimidade.
As paredes daquele cemitério milenar vão reviver com a luz de fogueiras e já não sabemos em que época estamos. E o amor acontece.
O filme de Alice Rohrwacher 32 anos, ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes 2014. Único representante da Itália na mostra competitiva, tem elementos da própria biografia da diretora e roteirista, criada na Toscana, numa família de apicultores.
Mas “As Maravilhas” é um filme misterioso. Como o povo etrusco que habitou naquele lugar, como as abelhas que produzem mel há séculos e começam a desaparecer, como aquela família que aparece sem apresentações e desaparece numa bela cena final, onde uma cama única os acolhe, ao relento, como um barco num mar imenso, à mercê das marés do tempo.

domingo, 19 de abril de 2015

O Sal da Terra


“O Sal da Terra”- “Le Sel de la Terre”, França, Itália, 2014
Direção: Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado

O documentário começa com a voz de Wim Wenders definindo o que é um fotógrafo, já que vamos ouvir falar de um deles, o famoso Sebastião Salgado, 72 anos. Então a palavra que junta luz e desenho, trata de alguém que “escreve e reescreve o mundo em luz e sombras”, diz um dos diretores, o grande cineasta de “Asas do Desejo” de 1987 e de “Pina” 2011.
Wenders conta que foi há 20 anos que viu uma foto de Sebastião Salgado que o fez chorar: a tuaregue cega. Logo, ele entendeu que as pessoas eram importantes para o fotógrafo. E conclui “afinal, elas são o sal da terra.”
E a câmera do alemão foca no rosto do seu fotógrafo, de quem ele vai ouvir histórias sobre sua vida e suas fotos. E o faz com ternura, sem pressa, deixando que ele fale num francês com sotaque mineiro.
Rosto de pele queimada de sol, olhos claros, cabeça pelada, sobrancelhas brancas e abundantes. Olhar sereno:
“- Não é só o fotógrafo que tira a foto. A pessoa dá a foto para o fotógrafo.”
E vamos ver desfilar um universo: pessoas ambiciosas, com “o vício do ouro”, como as de Serra Pelada, aborígenes da Indonésia, o povo sofrido do Nordeste do Brasil no século passado, aqueles que habitam os Andes há milênios, índios mexicanos, o povo de Sahel, refugiados da África, os Médicos sem Fronteiras, os bombeiros de Calgary, os mortos de Rwanda, um genocídio no Congo, a guerra cruel na Croácia, Bósnia e Sérvia, no fim do século XX.
“- O inferno tinha tomado conta do paraíso”, diz Salgado que confessa que, na África, tinha que colocar sua máquina no chão da estrada para poder chorar.
“- Nós somos um animal terrível... Extremamente violentos.”
Voltou de lá com a alma doente.
“- Sebastião tinha visto o coração das trevas”, emenda Wim Wenders.
E o outro diretor Juliano Ribeiro Salgado, o filho que reencontrou o pai, conta e mostra a Fazenda Salgado em Minas, onde o pai nasceu e do projeto de recuperação da Mata Atlântica, o Instituto Terra, ideia da mãe. Um milagre.
E o fotógrafo reencontra o prazer de fotografar com o seu projeto “Genesis” (2003-2004).
“- Quis fazer uma homenagem ao planeta.”
E imagens deslumbrantes e tocantes mostram a pata da iguana e a tartaruga de Galápagos, as focas, leões marinhos, flores, ilhas, mares, elefantes, gorilas, uma baleia amiga, icebergs, os “nenets” e suas renas e na Amazonia, os índios descritos pelos jesuítas.
“- Genesis ia ser uma carta de amor ao planeta. Seu “opus magno”,” pontua Wenders.
E a lição maior de “O Sal da Terra”: em qualquer lugar, a terra destruída pode virar florestas.
O documentário foi indicado ao Oscar 2015. Não ganhou mas o público desfruta do privilégio de conhecer de perto Sebastião Salgado, brasileiro de dar orgulho na gente.

Um Fim de Semana em Paris

 
 
“Um Fim de Semana em Paris”- “Le Week-End”, Reino Unido, França, 2013
Direção: Roger Michell

Quem não adora Paris?
Para os britânicos é só pegar o trem em Londres e logo se chega lá.
Meg e Nick vão comemorar seus 30 anos de casados na Cidade Luz. Mas, se tudo neles é antecipação, uma nota dissonante já se faz ouvir:
“- Você está com os euros?”pergunta ela. “Você perde tudo!”
“Daqui a pouco perco você”, responde ele, meio brincando, meio sério.
Mas, quando chegam, os rostos iluminados, aproveitam do céu azul e brincam que sabem falar francês.
Na frente do hotel que reservaram, porque foi lá que passaram a lua de mel, há decepção nos olhos de Meg.
Parece que o passado traz lembranças de um outro hotel mais... Meg não sabe bem o quê.
Mas, definitivamente, a cor das paredes do quarto no último andar, por onde se sobe levando as próprias malas, por uma escada íngreme, porque ninguém ajuda, não é a mesma.
E Meg decide ir embora, Nick atrás, ouvindo as últimas desculpas e promessas do diretorzinho jovem do hotelzinho chinfrim.
Pegam um táxi e o “tour” por Paris traz novamente energia ao casal. E o Arco do Triunfo, a Place de la Concorde, a Notre Dame, tudo enche os olhos de Meg, que não se cansa de pedir outra volta ao taxista,
E, de repente:
“- Pare!”
E deixa o marido para discutir o preço da corrida com o taxista. Alguém já pega as malas.
Ela vai direto à recepção do Plaza Athenée. Uma moça elegante responde que, infelizmente, estão lotados.
 A decepção carrega o semblante de Meg mas Nick  olha todo aquele fausto e fica aliviado. Sentam-se no sofá de veludo do hall do hotel e estão trocando farpas, quando a mesma moça aproxima-se deles:
“-Vocês estão com sorte. Temos uma suíte por dois dias.”
E, do luxo da escadaria, com seus bronzes, mármores e passadeira macia, vão direto à suíte onde orquídeas, frutas exóticas e almofadas de seda os esperam. Ao sair ao balcão, a Torre Eiffel é vizinha deles:
“- É maravilhoso! Vamos brindar”, diz Meg, pegando um champagne e taças no frigobar.
“- Vai com calma...Já gastamos muito. Como vamos reformar o banheiro? Precisamos falar sobre a escolha dos azulejos.”
“- Ladrilhos?”, fala Meg com enfado.
E o casal vai continuar assim, indo do céu ao inferno, no meio das frases trocadas.
Nick parece ser um homem amedrontado, apesar de guardar ainda um charme juvenil quando quer usá-lo.
Percebe-se que adora Meg e que ela, de um jeito majestático, aceita a adoração. Mas sua beleza também está indo embora e o sexo que ele pede, ela pode dar mas nega, com a certeza de que ele vai ficar ali com ela.
Há amor entre eles mas sustentado por um clima agridoce.
O diretor Roger Michell (de “Um lugar chamado Nothing Hill”)1999, escolheu ótimos atores para viver o casal inglês, Lindsay Duncan e Jim Broadbent, maravilhosos e convincentes.
O roteiro é um acerto de Hanif Kuraishi.
Jeff Goldblum, o ex-colega de universidade, é o peso que vai desequilibrar algo que está por um fio.
Meg e Nick existem na vida real. Isso incomoda o espectador desavisado que pensa que vai ver Paris e suas luzes e acaba testemunhando um longo casamento que se alimenta de uma cumplicidade necessária.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Amor à Primeira Briga

 
“Amor à Primeira Briga”- “Les Combattants”, França, 2014

 Direção: Thomas Cailley

A juventude é uma época de incertezas. Sempre foi e será assim, porque é próprio de um momento da vida onde acontecem mudanças no corpo e na vida.
Arnaud, uns 18 anos, acabou de perder o pai, trabalha com o irmão mais velho na marcenaria que herdaram e a presença da mãe ao lado deles não é opressiva.
Madeleine, tem a mesma idade, é bonita, musculosa e brava. Falta nela um pouco de descontração, talvez um quê de feminilidade. Está sempre na defensiva.
Quando os dois são escalados para fazer um combate corpo a corpo na praia, ela, que parece mais forte do que ele, vai vencer a luta mas, surpreendentemente, ele morde o braço dela.
Vemos o olhar de surpresa que ela lança para ele. Mas não denuncia o golpe baixo. Ao contrário, aquela mordida provocou algo nela.
E a vida vai aproximando os dois, ou melhor, Arnaud vai se chegando e ela, sempre muito fechada.
Em meio a um trabalho de marcenaria que os irmãos fazem no jardim da casa de Madeleine, ele salva uma fuinha que caiu na piscina e a leva para Madeleine que não conseguira o resgate:
“- Vamos devolvê-la à vida selvagem”, diz Madeleine.
“- A mãe vai rejeitá-la. Está com cheiro de cloro. Vai morrer de fome. Você não quer adotá-la? Ser a mãe dela?”
“- Não posso. Em setembro vou para o exército” e devolve o bichinho para ele.
“- Tudo bem. Vou cuidar dela.”
E Madeleine, que está curiosa sobre Arnaud, mas não dá o braço a torcer, leva pintinhos congelados para a fuinha dele e aceita o convite para jantar que a mãe faz.
Conversando, Madeleine mostra seu medo do futuro, onde ela imagina que a espera um mundo agressivo e destruído. Não é só a crise que acontece na França que ameaça os jovens com desemprego. Ela vê realmente, um mundo sombrio à sua frente, com contaminação nuclear, seca, fome e epidemias.
Por isso resolveu alistar-se no exército, onde pensa que vai aprender a sobreviver num mundo hostil.
Na verdade, Madeleine teme o mundo dos afetos e posa de valentona. Arnaud, que parece frágil, convida a moça para dançar, ser mais alegre, mais feminina. Ele a convida para o amor.
Uma lição importante vai ser aprendida. A sobrevivência precisa ser vivida plenamente, senão qual é a graça?
O filme do jovem diretor e roteirista Thomas Cailley, 36 anos, mostra que acreditar nos estereótipos sobre o macho e a fêmea impede uma plena possibilidade de amadurecimento. E os jovens atores Kévin Azaias e Adèle
Haenel são excelentes. Ela ganhou o César, o Oscar francês de melhor atriz e o filme levou todos os prêmios da mostra “Um Certain Régard”, para primeiros filmes.
“Amor à Primeira Briga” foi um sucesso de público na França, valendo-se do boca a boca.
 Agradará a brasileiros também.

domingo, 12 de abril de 2015

Em um Pátio de Paris


“Em um Pátio de Paris”- “Dans la Cour”, França, 2014
Direção: Pierre Salvadori

Todo mundo tem seus momentos de tristeza. Coisa passageira, com motivos.
Mas, quando não passa e se aprofunda, chamamos de depressão, que pode ser uma doença ou um estado normal do ser humano, uma fase que nos assusta e a quem está por perto.
Esse filme francês “Em um Pátio de Paris”, mostra de uma maneira simples e, com uma certa ternura, porque a depressão numa pessoa pode afastar os outros e levar a pensar que ela precisa de remédios ou até de internação.
Antoine (Gustave Kerten), uns quarenta e poucos anos, forte, barbudo, cabelos grisalhos, semblante sem expressão, larga sua vida de vocalista de uma banda, sem maiores explicações. Simplesmente vai embora.
Sentado no banco do parque, na verdade não está ali. Parece alheio a tudo.
Em seguida, o vemos numa agência de empregos onde tentam ajudá-lo. Consegue o de zelador e porteiro de um prédio de classe média:
“- Limpar, arrumar um pouco e dormir, é tudo que eu quero.”
“- Mas não vá dizer isso. Assusta as pessoas! Você tem que passar uma ideia de que é prestativo, gosta de contato humano, senão não vão dar o emprego para você”, avisa a moça da agência.
Mas tem mais gente deprimida nesse mundo do que Antoine imagina. Consegue o emprego e passa a conviver com os moradores.
Mathilde, mulher de meia idade, aposentada, bonita ainda (afinal, a atriz é nada menos do que a eternamente bela Catherine Deneuve), foge da depressão falando no telefone sem parar, se ocupando com uma associação, lendo para o vizinho cego, ou ainda se preocupando às 3 da manhã, em medir as rachaduras que apareceram na sala, alimentando ideias delirantes de que o prédio vai cair.
Antoine faz faxina e não dorme. Mathilde também não.
Outro dos moradores é um ex-jogador de futebol (Pio Marmai) que teve seus dias de glória e agora afunda na cocaína. Logo estão cheirando juntos, ele e Antoine.
Um dos visitantes, que acaba morando escondido no prédio é Lev, um sem teto que vende livros e filmes de uma seita estranha. Tem um cachorro enorme e não consegue outro lugar para dormir. Antoine não sabe dizer não.
Quando Mathilde piora muito e seu marido quer interná-la, ela vai se refugiar com Antoine, o único que a compreende. Os dois estão no mesmo barco.
Pessoas deprimidas estão com muita raiva comprimida dentro de si mesmas. Quando essa raiva se vira contra a própria pessoa, torna-se perigosa.
Pierre Salvadori, diretor e roteirista, 50 anos, faz um filme que, aparentemente, é comédia mas com toques de tragédia.
É a vida, sem muitos enfeites para  disfarçar o humano. Bom para aprender uma ou duas coisas sobre as outras pessoas e nós mesmos.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O Ano Mais Violento



“O Ano Mais Violento”- “The Most Violent Year”, Estados Unidos, 2014
Direção: J.C. Chandor

Enquanto ele corre (Oscar Isaacs, excelente), exercitando
seu corpo de uns quase 40 anos, sua atraente mulher ruiva (Jessica Chastain, bela e boa atriz) se pinta, fumando, na frente do espelho.
Abel e Anna tem duas filhas e acabam de mudar-se para a casa de concreto, vidro e uma porta azul.
Ele vem de família de imigrantes latinos. Foi caminhoneiro quando jovem e apaixonou-se pela filha do patrão. Mas esse homem inteligente e determinado, dirige agora sua própria empresa de distribuição de óleo combustível para calefação, que comprou do sogro. Todos necessitam aquecer suas casas no inverno de New Jersey e Nova York. E Abel Morales sabe vender e ensinar seus novatos a valorizar seu produto.
Mas ele enfrenta um problema grave. Sua carga de óleo está sendo roubada dos caminhões da Standard Heating Oil e os motoristas agredidos covardemente. Apesar de ter informado à polícia, não parece fácil resolver esse problema.
Anna, sua mulher, visita um dos motoristas, Julian, que foi parar no hospital:
“- Quebraram o maxilar dele..., comenta ela.”
E mais baixo para só Abel ouvir:
“- Quer que eu fale com o meu irmão?”
“- Nem com ele, nem com seu pai.”
“- Estamos numa guerra”, responde Anna.
“- Eu não estou”, retruca o marido.
Abel estava prestes a fechar um grande negócio, o sonho de sua vida. Naquele dia, dera o sinal para a compra de um terminal junto ao rio, que iria fazer seu negócio dar um salto. Acesso ao rio, o óleo diretamente despejado em seus tanques, podendo ser estocado:
“- Posso comprar na baixa e vender na alta do preço, com bom lucro.”
Mas há perigo. Não será fácil para Abel ater-se ao seu código de conduta, que não permite aos seus caminhoneiros o uso de armas:
“- Não sou um gangster”.
E o ambicioso promotor negro (David Oyelowo) não acredita que o negócio de Morales esteja correto ou vê nele um bom alvo que o ajude a subir politicamente e o ameaça com acusações de fraude e não pagamento de impostos.
Anna sempre cuidara de toda a contabilidade da companhia, desde os tempos do pai dela. Entendia do negócio que aprendera com ele. Parece haver amor entre o casal mas eles são diferentes. Abel é mais idealista e Anna tem seus pés no chão.
Na hora certa, haverá uma decisão difícil a ser tomada por Abel, que pode arruinar seu casamento e sua vida.
Nova York sob uma luz dourada, vista da terminal do rio em New Jersey, pode ser a realização de um sonho ou o começo de um pesadelo para aqueles dois.
O diretor J.C. Chandor, 40 anos, em seu terceiro filme (“Margin Call”e “All is Lost”), mostra a que veio, fazendo de “O Ano Mais Violento” um filme elegante, com belas imagens e ótimos atores, que deixa algumas perguntas no ar sobre ética e capitalismo.

domingo, 5 de abril de 2015

Vício Inerente


“Vício Inerente”- “Inherent Vice”, Estados Unidos, 2015
Direção: Paul Thomas Anderson

Sei que muita gente vai sair do cinema e dizer que não gostou, que não entendeu nada. Bem, eu precisei ver duas vezes para entender o que tem que ser entendido.
Basta ter paciência e pesquisar um pouco.
Paul Thomas Anderson, ou PTA para os cinéfilos, tem 44 anos e é considerado um dos diretores mais criativos da cena atual.  Bastaria citar “Magnólia”1999, “Sangue Negro”2007 e “O Mestre”2012, para quem gosta de cinema saber de quem se trata.
Só que “Vício Inerente” tem algo diferente. PTA adaptou para o cinema um livro de um autor “cult” americano, que ninguém achava possível colocar em imagens.
Thomas Pynchon, 77 anos, premiadíssimo, não dá entrevistas, não tem foto atual e faz mistério sobre onde ele mora. Mas sabe-se que ele viveu nos anos 60 e início dos 70, do século passado, numa praia da California, onde adotou um estilo de vida “hippie”. Seu livro “Vício Inerente” tem, portanto, a qualidade do vivido. E, como todos os livros do autor, é escrito com uma estrutura complexa, com ligações e referências a muitos assuntos diferentes e personagens que parecem saídos de uma viagem lisérgica.
PTA, admirador de Pynchon, resolveu filmar o livro, reservando-se o direito de colocar no roteiro aquilo que achou mais relevante.
A ação se passa na California, Gordita Beach, início dos anos 70, quando o modo “hippie” de ser estava saindo da moda, a guerra do Vietnam matava garotos e o grupo de Charlie Mason assustava o sonho americano.
O personagem principal é um detetive particular, Doc Sportello (Joaquim Phoenix, doce e extraordinário), que fuma baseados o tempo todo, “para clarear a mente”, explica.
Visitado por sua ex-namorada e sempre amada Shasta Fay (Katherine Waterston, bela e sexy), fica sabendo que ela namora um grande empresário do ramo imobiliário, Mickey Wolfmann (Eric Roberts). Ela pede ajuda a Doc porque acha que a mulher de Wolfmann montou um esquema com seu amante, para internar o marido e roubar todo o dinheiro dele.
A história principal é logo embaralhada com várias outras, às vezes perdidas no meio do caminho, com personagens surreais. Assim, desfilam na tela o policial “Big Foot” (Josh Brolin) que adora bananas cobertas de chocolate, fazendo o durão mas que é frágil e inseguro como uma criança na casa dele, os participantes da Fraternidade Ariana que tem negócios com os Panteras Negras, a prostituta oriental Jade que comanda uma casa de massagens e pede que Doc tome cuidado com o Canino de Ouro, algo que não se sabe o que é, o advogado de Doc (Benicio Del Toro) que parece ser o único a entender o que acontece, um casal que se droga muito (Jena Malone e Owen Wilson), a namorada de Doc que trabalha na promotoria (Reese Whiterspoon), o priápico dr Rudy que chefia um sindicato de dentistas que atende viciados em heroína, com dentes corroídos. Só para citar alguns dos personagens.
A sensação de confusão invade nossa mente e ficamos meio em transe, procurando entender aquilo que sempre nos escapa. Perdemos ou esquecemos de algo importante? Essa é uma possível identificação do espectador com um drogado como Doc, cuja mente não foca  em nada por muito tempo. Se nos deixarmos ir, acontece uma imersão num universo alucinante, paranoico e delirante. É tudo verdade ou eu sonhei?
A única coisa que permanece é o amor por Shasta que nunca abandona Doc. O “vício inerente”, que é um termo que se usa em seguros marítimos para indicar o que não se pode evitar. A voz suave e envolvente da narradora, a cantora e harpista Joanna Newson, chama a atenção para essa ligação forte e cármica.
Coragem. Enfrente esse filme difícil e empolgante e troque um olhar verde e cúmplice com Joaquim Phoenix na cena final.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Cinderela


“Cinderela”- “Cinderella”, Estados Unidos, 2015
Direção: Kenneth Branagh

Toda menina sonha em ser Cinderela. E por que?
Creio que o conto, muito antigo, cuja versão mais conhecida é a do francês Charles Perrault de 1697 (mas existe desde a antiga China de 860 AC), revela um desejo muito profundo da natureza humana. Tanto Cinderela como o príncipe querem encontrar uma alma gêmea, fazer par, como a natureza ensina através de um instinto muito forte, para a continuação da espécie.
Mas outras lições, necessárias para a evolução do espírito, aparecem no conto e não foram esquecidas por essa cuidadosa produção dos estúdios Disney.
Na década dos anos 50 do século passado, a minha geração foi levada por suas mães ao cinema para ver a animação da Disney de 1950. Saíamos encantadas, cantando as músicas, dubladas para o português.
E, em nossas brincadeiras, o vestido azul, peça fundamental, não precisava de outros adereços. Cinderela era bela porque era boa e gentil, gostava dos animais e tratava bem as pessoas à sua volta. Sabia lidar com a inveja e era bem humorada e romântica.
Apesar de orfã (e com ela chorávamos a perda da mãe e pai), não se lamentava o tempo todo e trabalho não era castigo para ela.
Seu amor pelos animais e pela natureza faziam dela uma precursora da mente ecológica, tão importante para o planeta em que vivemos.
E essa continua sendo a Cinderela do diretor britânico Kenneth Branagh. Um acerto.
As cenas que abrem o filme atual são quadros impressionistas. Os cenários reais e os detalhes das imagens são tantos, que nossa vista não abarca tudo que aparece na tela na bela fotografia de Haris Zambarloukos. Há uma contemplação de maravilhosos voos sobre palácios, muros e jardins.
A direção de arte do talentosíssimo Dante Ferretti é deslumbrante e os figurinos de Sandy Powell, perfeitos e originais.
Cate Blanchett como a madrasta má, empresta sofisticação e inteligência à megera e sua magnífica presença em tons de verde absinto é uma deliciosa aparição ruiva, com chapéus saídos do chá das cinco de “Alice no País das Maravilhas”.
As irmãs postiças desfilam figurinos “kitsch” e são atrapalhadas na medida certa.
E Cinderela, na pele da britânica Lily James (lady Rose de “Downton Abbey”), é a personificação perfeita da personagem. Nem linda demais, nem exibida, ela irradia juventude e graça.
Os efeitos especiais nos momentos mágicos com a fada madrinha (Helena Bonham Carter, ótima), são divertidos e surpreendentes. Kenneth Branagh brinca com os ratinhos, os lagartos e a abóbora e a magia brilha na tela com leveza.
E “coragem e gentileza”, o lema de Cinderela, não poderia ser mais oportuno para os dias de hoje.
Corram para ver “Cinderela” e voltem para casa um pouco mais esperançosos com a humanidade. Precisamos tanto de sonhos...