segunda-feira, 29 de julho de 2013

Apenas o Vento



“Apenas o Vento”- “Csak a Szél”, Hungria, 2012
Direção: Benedek Fliegauf

Logo no início somos avisados. Na Hungria, em 2008 e 2009, ocorreram assassinatos de ciganos. Famílias inteiras dizimadas. Mas não vamos ver um documentário. “Apenas o Vento” é um filme de ficção, baseado em fatos reais. O diretor húngaro Benedek Fliegauf também escreveu o roteiro e seu filme ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim.
Um dia nasce. O sol por trás das árvores começa a aquecer a terra. Muitas moscas voam em meio a lixo.
Um menino com o torso nu e o rosto sombrio, escuta pessoas cantando um lamento:
“Eles mataram seu pai
Esconderam sua cova
Seu coração está enterrado
Debaixo das pedras.”
Dentro daquela casa tudo está escuro. Vagamente percebemos pessoas deitadas numa cama. Amontoados.
De repente, uma mulher afasta com delicadeza uma perna de criança pousada em cima da dela. Levanta-se, prepara um prato e alimenta um velho, seu pai.
“- Volto à noite”, avisa.
Duas outras crianças, adolescentes, vão também se levantar daquela cama.
A família de ciganos mora em um casebre junto a outros, na borda de uma floresta.
A mãe tem dois empregos. Seu rosto determinado e duro, responde às agressões que sofre durante o dia com silêncio e olhos baixos.
A mocinha vai à escola e também passa por perseguição. Mas ela é a personagem mais amorosa. Conversa no computador da escola com o pai. A esperança é ir encontrá-lo no Canadá.
“- A família Lakatos foi morta. Destroçados com uma escopeta. Papai, você deveria voltar para casa.”
“- Vocês todos vão vir para Toronto quando sua mãe conseguir o dinheiro. Não se preocupe. Fiquem juntos à noite. Tranca a porta e as janelas.”
Ela desenha bem e promete fazer um bem bonito para as mocinhas de batom preto levar para o tatuador.
Voltando para casa encontra a menina, filha da vizinha drogada e leva ela para um banho no rio. Colhem flores no campo e ela coloca uma coroa na cabecinha da pequena. É o único momento doce e belo do filme.
O irmão dela, Rió, não vai à escola. Perambula pela floresta. Vasculha lixo e casebres abandonados. Abastece seu esconderijo. Fareja o ódio. Parece que sabe que chegou o dia.
A câmara gruda quase o tempo todo nos personagens e isso nos angustia. É anti-natural essa invasão do espaço íntimo de um ser humano. A tentação de ir embora do cinema, para não ver o que vai acontecer, é grande.
Quem fica, sofre com o drama daquela família que representa as outras todas que morreram.
A “limpeza” étnica no Leste europeu assusta e mostra para onde pode caminhar a humanidade, se não estivermos atentos.

sábado, 27 de julho de 2013

Tese Sobre um Homicídio


“Tese Sobre um Homicídio”- “Tesis Sobre un Homicidio”, Argentina, 2013
Direção: Hernán Goldfrid

Detalhes. É com eles que começa o filme argentino que traz o excelente Ricardo Darín (“O Segredo dos Seus Olhos”, 2009) como o professor da Faculdade de Direito de Buenos Aires, Roberto Bermudez.
Assim, vemos uma moeda girando em cima de uma mesa, uma garrafa de uísque tombada, uma mão ferida enfaixada, “slides” antigos, um livro aberto no chão, o apartamento revirado. Darín levanta-se de um sofá de couro e leva as mãos à cabeça. Está tudo ali nos detalhes que a câmara foca. Porém o espectador tem que prestar atenção. Nem tudo é falado.
Vamos assistir a um jogo de “gato e rato”, onde as aparências enganam e antigas rivalidades vem à tona.
Mas há várias maneiras de interpretar o filme.
Pode ser a história de um homem que desmorona e entra num surto obsessivo.
Também pode ser a história de um aluno que desafia o mestre e quer provar que ele não sabe funcionar na prática. Só entende de teoria. Vai fazer o orgulhoso professor cair do seu pedestal.
Em outra camada mais profunda, o filme pode contar a história de um filho que odeia a mãe e o pai e desafia quem ele pensa que verdadeiramente o gerou.
A dúvida é o elemento principal que sustenta a narrativa e prende a atenção do espectador.
O diretor Hernán Goldfrid, nas pegadas de Hitchcock e Brian de Palma, cria intriga e suspense também com as imagens. Tomadas em “close” do rosto de Darín, seus olhos expressando emoções mudas, sua nuca que é o ponto onde a câmara insinua um começo de um estrangulamento, imagens desfocadas e duplicadas em espelhos e vidros, quase que alucinações e delírios.
Um assassinato, cometido com requintes de perversidade, acontece no estacionamento, em frente à sala da Faculdade onde o professor Bermudez e o aluno Gonzalo (Alberto Ammann), filho de antigos conhecidos do professor, se enfrentam, duelando teorias sobre a justiça.
Quem é o assassino da borboleta? O professor tem razão em desconfiar do aluno ou está novamente equivocado como no caso Latorre, citado muitas vezes ao longo do filme?
Calu Rivero como Laura, empresta seu encanto e juventude e faz o pomo da discórdia, seduzindo os dois homens, professor e aluno.
Baseado no livro do mesmo nome de Diego Paszkowski, admirado autor argentino, “Tese Sobre um Homicídio”, com roteiro de Patricio Veja, é um “thriller” intrigante e bem realizado.
E novamente, o cinema argentino mostra o seu valor.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Amor Pleno


“Amor Pleno”- “To The Wonder”, Estados Unidos, 2012
Direção: Terrence Malick

O amor pode ser tão simples quanto raro. Porque, dependendo da pessoa, torna-se complexo e difícil.
É um sentimento que convida a dar, mais do que a receber.
Terrence Malick, 70, tem ensinado isso, a seu modo, nos seus últimos filmes. “A Árvore da Vida” que ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2011 e agora “Amor Pleno”, falam sobre o amor com beleza, imagem, luz e poucas palavras.
Uma expressiva jovem, com olhos brilhantes, brinca alegre com o namorado, também bonito e jovem, em um trem.
Em “off”ouvimos seus pensamentos:
“Renascida. Abro meus olhos. Eu me afundo. Noite eterna. Uma fagulha. Caio na chama. Você me tirou das sombras. Você levantou-me do chão e me trouxe à vida.”
Paris. E os dois se amam. Deitam-se na grama do parque e trocam sussurros. Na ponte dos cadeados, unem-se aos amantes eternos. E o sol brilha sobre o Sena.
A tapeçaria do unicórnio preso em seu cercado é uma famosa metáfora sobre o amor. Lenda e mito.
E quando eles sobem o Monte Saint Michel, sob a neblina e o rumor do mar, os dois ascendem ao plano mais alto do amor, a “Maravilha”.
Em “off” ela pensa:
“Subimos s degraus. Mãos se unem. Para a Maravilha.”
No pátio interno do convento, um jardim de rosas. Ela as acaricia com luvas e pousa sua cabeça no ombro dele, que roça a nuca dela com a boca.
“O amor nos faz um”, pensa ela.
Rosas vermelhas crescendo na neve. Outra metáfora sobre o amor. Espinhos e frio. Dificuldades.
“Nunca pensei amar novamente. Irei onde você for”, ela pensa.
Malick, nesse prólogo, mostra o amor em imagens. Os dois amantes, seus gestos e olhares e a câmara dançando em torno a eles. Metáforas tentam traduzir o que é o amor.
A primeira etapa é sempre a idealização.
“Meu doce amor. Finalmente. Minha esperança.” É ele que diz isso em “off”. Mesmo que não se entregue como ela.
Malick sugere aqui que, quando nasce, o amor prescinde de palavras ditas, preferindo os suspiros do coração e o corpo que fala. Não há razão. Só emoção.
Mas, como muitos de nós sabemos, é preciso trabalhar o amor, abrir os olhos e enfrentar as dificuldades. Porque só sobrevive o amor que não tem medo de tempestades nem de dúvidas.
Em “Amor Pleno”, além do amor humano (Olga Kurylenko, Ben Affleck e Rachel McAdams), vamos acompanhar o amor ao divino com o padre católico, interpretado por Javier Bardem, excelente na dor e expressivo nas reflexões sobre suas dúvidas.
Terrence Malick é considerado um gênio por muitos que prezam seus filmes como verdadeiras obras primas.
Sua carreira de 40 anos no cinema, conta com apenas seis filmes. Sempre indicado para prêmios em todos os festivais dos quais participou, ganhou a Palma de Ouro em 2011 e o Urso de Ouro em Berlim por “The Thin Red Line” em 1999.
Pouco dado a entrevistas, ele é também roteirista de seus filmes e filmes de outros diretores e é produtor. Nascido no Texas de um pai geólogo, com ascendência sírio-libanesa cristã, Terrence Malick é principalmente um humanista.
“Amor Pleno” agradará a quem aprecia belas imagens
(fotografia esplêndida de Emmanuel Lubezki), música celestial (Hanan Townshend é responsável pela música original mas a trilha sonora vai de “Parsifal” de Wagner a Haydin, Berlioz, Sostakowitch, Rachmaninov, Tchaicovsky,Dvorak) e uma reflexão sem respostas sobre a humanidade, seus erros e também a vontade de acertar.
Nos créditos finais ao som da natureza, suas águas, vento e pássaros, Malick agradece à “Embaixadora da Boa Vontade”, Alessandra Malick, sua mulher. Esse detalhe diz muito sobre esse homem raro e sábio. E sobre seu filme “Amor Pleno”.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Truque de Mestre

“Truque de Mestre”- “Now You See Me”, França/ Estados Unidos, 2013
Direção: Louis Leterrier

Você se lembra da primeira vez que ouviu alguém dizer
“abracadabra” e o coelho branco que tinha sumido da caixa apareceu na cartola negra? Os mágicos habitam nossas memórias de infância e tem ainda o poder de nos encantar.
A antiquíssima arte da magia seduz multidões desde os tempos de Houdini (1874-1926), o maior mágico e ilusionista de todos, o primeiro que soube usar a mídia para promover sua reputação. Virou lenda.
Pois “Truque de Mestre” brinca com essa ideia da criança em nós e do poder de sedução que a magia tem. Além disso, o filme procura mostrar a diferença entre o engano que o mágico habilidoso provoca para obter aplausos e a enganação de charlatães, usada apenas para prejudicar os outros, o truque sujo.
Quatro ilusionistas, jovens e talentosos, são reunidos através de um convite escrito em cartas do tarô, por um alguém misterioso. Saberemos depois que esse personagem, que ninguém sabe quem é, quer fazer justiça e castigar pessoas inescrupulosas.
Dois homens que não são o que aparentam ser, vão aprender uma lição severa mas de maneira divertida para quem vê o filme. Michael Caine e Morgan Freeman, atores tarimbados e bem conhecidos do público, estão ótimos e conferem credibilidade à trama.
Cada um dos quatro jovens escolhidos tem uma especialidade e tudo vai ser usado em três grandes espetáculos. Daniel Atlas (Jesse Eisenberg) é mestre com cartas de baralho. Merrit (Woody Harrelson) usa a hipnose para adivinhar segredos e influenciar pessoas. A bela Henley (Isla Fisher) consegue escapar de algemas e correntes. E Jack (Dave Franco) é um exímio larápio que usa técnicas ilusionistas.
Os quatro juntos intitulam-se “Os quatro Cavaleiros” e vão aprontar um espetacular e anunciado roubo a banco durante um show diante de milhares de pessoas.
E por isso atraem a atenção do FBI (o agente é Mark Ruffalo) e da Interpol, que manda uma linda e loura parceira (Mélanie Laurent). Os dois querem saber o que há por detrás desses espetáculos dos mágicos e desconfiam que boa coisa não é.
Muita ação, reviravoltas e surpresas no roteiro de “Truque de Mestre”, dirigido com competência por Louis Leterrier, que realmente cativa a atenção do espectador, mantendo um ritmo alucinante o tempo todo.
Mas não se esqueçam de levar dentro de vocês aquela criança que se lembra do coelho branco na cartola do mágico. Ela vai se encantar e não vai deixar você fazer muitas perguntas para que tudo fique bem explicadinho, porque senão o filme perde a graça.
E por que estragar um bom divertimento?

quinta-feira, 11 de julho de 2013

O Cavaleiro Solitário


“O Cavaleiro Solitário” – “Lone Ranger”, Estados Unidos, 2013
Direção: Gore Verbinski

Certas histórias, contadas seja na literatura, TV ou cinema americano, vão sendo aos poucos recontadas com maior precisão histórica. Ou seja, uma outra versão, mais de acordo com os fatos, se impõe. Mas como fazer isso sem chocar uma nação?
“O Cavaleiro Solitário” começa bem. Porque um menino, vestido de “Lone Ranger”, com máscara e distintivo, quer saber mais sobre a história de seu país.
Estamos em São Francisco, 1933 e o garoto entra numa feira e vai visitar o pavilhão “Wild West” (Oeste Selvagem). Em vitrinas, ele vê um búfalo empalhado, um urso idem e se assusta com um velho índio, pintado de branco e com marcas de pintura de guerra, que traz uma ave negra na cabeça e surpreendentemente fala:
“- Vamos fazer uma troca? Você me dá uns amendoins e eu te dou...isto!”, diz, acenando com um ratinho morto que sai de seu bolso.
Johnny Depp, com seu jeito característico de atuar, imediatamente faz uma ligação com a plateia e o filme deveria se chamar “Tonto” porque ele rouba todas as cenas.
É ele que conta a história que começa no Texas em 1868, época em que todos os americanos que lá viviam, andavam armados, disputando o território palmo a palmo com búfalos, ursos e índios.
Muita bandidagem, corrupção e maus instintos, iriam tingir de sangue aquela paisagem singular, suas pristinas areias e rochas solitárias, formando desfiladeiros estreitos que serviam para emboscadas fatais.
E a dupla “Lone Ranger” e Tonto vai entrar em choque justamente com esse lado mau do Velho Oeste.
John Reid, o cavaleiro solitário (Armie Hammer), é um homem que defende a justiça e a lei. Tonto é o último sobrevivente de sua tribo, extinta pela ganância dos homens que queriam suas minas de prata.
Parecem uma dupla estranha mas a vida e os ideais comuns os unem.
“O Cavaleiro Solitário” é um faroeste com tudo ao que o gênero tem direito. Vemos homens e cavalos, os “cowboys”, roubos a bancos, a implantação da ferrovia transcontinental, perseguições loucas em cima dos vagões dos trens e até um bordel, chefiado por uma atraente Helena Bonham Carter, que tem uma perna falsa de marfim, sexy e mortal.
Tem também o lendário Silver, cavalo branco imponente, que ajuda o cavaleiro solitário em apuros. “Aiôôô Silver!” é o grito de guerra do “ranger” (policial), que foi muitas vezes chamado erradamente de Zorro, por causa da máscara negra.
Lançado no feriado de 4 de julho nos Estados Unidos, não foi o sucesso de bilheteria esperado.
Pode ser que a história do país, contada levando em conta a verdade dos fatos, apesar das piadas e situações divertidas inventadas pelo roteiro, ainda é indigesta para os americanos, que preferem heróis mais escapistas e menos melancólicos que Tonto e o “Lone Ranger”.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

A Espuma dos Dias




“A Espuma dos Dias”-“L’Écume des Jours”, França, 2013
Direção: Michel Gondry

Se você acha graça na criação de um universo surrealista onde pernas de mesa usam patins, a comida se mexe no prato onde é servida, alguém apara as pálpebras com tesoura porque cresceram demais, um rato mora em seu buraco que é igual ao apartamento do dono da casa, visita-se Paris em uma nuvem artificial e coisas assim, então você vai se encantar com o mundo de Boris Vian (1920-1959), escritor do livro que deu origem a esse filme, e que era engenheiro, escritor, poeta e amante do jazz. Tocava numa banda no famoso “Le Tabou” e lançou Juliette Grecco, a musa do existencialismo.
Talvez, para gostar desse filme, você tenha que abrir mão do que está acostumado a ver: um faz-de-conta que quer parecer real. Porque em “A Espuma do Dias”, o diretor Michel Gondry (que fez nos Estados Unidos “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” de 2004), quer que as coisas malucas da cabeça de Boris Vian possam se materializar como coisas loucas mesmo. Estamos num mundo onde tudo é possível.
Fala-se de amor, vida e morte, política, filosofia, religião, poesia mas de uma maneira diferente à que estamos habituados.
O herói é Colin (Romain Duris) que vive num apartamento onde tudo foge à lógica da razão. Seu cozinheiro e conselheiro é Nicolas (o talentoso ator Omar Sy de “Intocáveis”) que prepara as tais comidas vivas e que conversa com um chef que às vezes está dentro da geladeira.
O amigo de Colin é Chick (Gad Elmaleh), operário que é vidrado no filósofo Jean-Bol Bartre (irreverência com Jean-Paul Sartre, claro).
Um dia, Colin conhece Chloé (a maravilhosa Audrey Tautou), uma moça sensível como ele e os dois se apaixonam e se casam.
A vida era feliz com idas à patinação no gelo, festas onde as pessoas dançam danças impossíveis que exigem pernas que se alongam e corpos que se equilibram de maneiras estranhas e passeios por Paris.
Até que Chloé fica doente. Uma terrível e estranha doença que faz uma flor crescer em seu pulmão. Colin rodeia Chloé com muitas flores, único remédio para tentar salvá-la. Isso faz Colin conhecer o outro lado da vida.
O apartamento que era cheio de luz, escurece e se contrai, sob o peso das angústias que passam a ser vividas.
A crítica acusou o diretor Michel Gondry de pecar por excesso. Seu filme seria um exagero, difícil de suportar.
Ora, surrealista e anarquista como o autor do texto, Gondry homenageou de Bunuel a Chaplin, Tanguy e Dali, passando pelo cinema americano de Jean Negulesco, “Papai Pernilongo-Daddy Long Legs” de 1955, Peter Pan e muito mais.
Deixou-se literalmente levar pela imaginação mais louca, os truques são antiguinhos e perfeitos (nada de tela azul) e se cercou de bons atores para sair do comum, do já visto.  E conseguiu isso com o que a crítica chamou de excessos...
Para quem gosta de mudar de tom e se espantar, “A Espuma dos Dias” pode agradar e muito. Os conservadores e os que detestam o “non-sense” do surrealismo e metáforas fabulosas, abstenham-se.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Tabu


“Tabu”- Idem, Portugal/ Brasil/ Alemanha/ França, 2012
Direção: Miguel Gomes

A África sempre se prestou a metáforas interessante.
A sexualidade feminina que  desafiava Freud a um difícil entendimento, ele a chamou de "Continente Negro".
Miguel Gomes, o diretor de “Tabu”, parece também partilhar dessa ideia da África simbolizando o lugar de sexo proibido, liberado por uma pressão extrema frente ao selvagem, ao primitivo e assustador.
Na África de “Tabu”, o homem branco colonizador é seduzido pelo mistério de suas profundezas inexploradas, num cenário que o impele a experimentar o proibido.
O amor de perdição, tema tão caro a um dos grandes escritores portugueses, Camilo Castello Branco, titulo do livro de 1862, também inspira Miguel Gomes.
Em “Tabu”, há um prólogo que introduz o assunto, o amor perdido que impele à morte, na figura do português desconsolado que vai para a África para esquecer a mulher morta mas é arrastado para o rio onde espreita a única saída para o esquecimento.
O crocodilo, comedor de homens, animal fetiche, é quem o leva a seu fim.
A primeira parte de “Tabu”, “Paraiso Perdido”, passa-se em Lisboa, onde três mulheres solitárias entrelaçam suas histórias tristes.
Pilar (Teresa Madruga), de meia idade, sozinha no cinema, olha para nós, que somos a sua tela. Quantas vidas assistindo outras vidas, que servirão para nos lembrarmos de nós mesmos.
As outras duas mulheres são Santa, negra africana, que serve de companhia à dona Aurora, uma elegante senhora no fim de seus dias (Laura Soveral).
Ela sonha com macacos que se transformam em homens e tudo é uma desculpa para ela esquecer nas mesas do Cassino do Estoril, aquele amor que vive na África, aos pés do Monte Tabu, na fazenda de seu marido.
Estamos já na segunda parte do filme, “Paraiso”, onde novamente aparece o animal fetiche de Miguel Gomes, o crocodilo, brinquedo perigoso que Aurora (Ana Moreira), recém-casada, ganha do marido (o brasileiro
Ivo Muller).
No sopé do monte imaginário, cercado pela neblina onde os nativos enxergam demônios, a jovem, guiada pelo crocodilo, se deixa envolver pelo amor de Ventura (Carlotto Cota) que a fará viver dias de paraíso e inferno.
O preto e branco, a narrativa em “off” do amor proibido, as cartas trocadas entre os amantes, os diálogos que não ouvimos porque aqui o filme é mudo, só sendo ouvidos os sons da natureza, o vento, o coaxar dos sapos, o murmurar das águas, os grilos na noite e o rock dos anos 50, remetem o espectador ao seu próprio passado.
Miguel Gomes homenageia com seu filme, um grande diretor alemão do passado, F.W. Murnau, que fez “Tabu” em 1931 e “Aurora” em 1927.
“Tabu” de Miguel Gomes foi considerado pela revista “Cahiers du Cinéma”, a bíblia do cinema, como um dos 10 melhores filmes de 2012.
“Tabu” é um momento diferente do cinema a que estamos habituados mas prova que o amor ainda é e sempre será um tema que a todos atrai.
Diz o diretor Miguel Gomes que o verdadeiro paraíso perdido será sempre a juventude, tempo dos amores loucos e das paixões.
Só os mais velhos poderão confirmar isso, lembrando do passado com “Tabu”. Aos jovens, resta pensar que a hora é agora.


Augustine



 
“Augustine”- Idem, França, 2012
Direção: Alice Winocour

Estamos na França do final do século XIX, 1895, mais precisamente. Em Paris, o Hospital La Salpetrière, tem como um de seus médicos, Jean-Martin Charcot (1825-1893) que aí trabalhava e lecionava. Em 1892, ele tinha fundado ali uma clínica neurológica, a primeira na Europa.
Charcot ficou famoso pela apresentação de pacientes histéricas sob hipnose, com isso mostrando aos outros médicos, que esses sintomas que viam era uma doença do cérebro e não possessão ou bruxaria como pensavam até então.
Os gregos já tinham descrito essa condição e a relacionavam ao “útero ardente”. Daí o nome histeria, de “matriz”, no grego. Hoje sabemos que essa doença nada tem a ver com o útero e que pode ocorrer em homens também.
E quem eram as histéricas de Charcot? Mulheres que apresentavam convulsões, paralisias, dores abdominais e estados de humor exaltados.
E é para o La Salpetrière que mandam Augustine, 19 anos, vinda de uma família pobre, empregada doméstica numa rica casa burguesa. Durante um jantar que ela servia, após ver caranguejos vivos sendo cozidos numa panela, cai em convulsões perante os convidados dos patrões. Leva uma jarra de água no rosto, da patroa escandalizada.
Augustine é uma moça simples, analfabeta mas inteligente e sensível. Levada por uma prima ao hospital, chama a atenção de Charcot, já que apresentava sinais que ele reconheceu como histeria. Além das convulsões frequentes, paralisia da pálpebra direita e falta de sensibilidade na metade direita do corpo.
Levada ao anfiteatro, paramentada com um chapéu de plumas, quando hipnotizada caia ao chão em convulsão, acompanhada de gestos com forte conotação sexual, apresentando o famoso “arco histérico”, que era a postura com as costas dobradas para trás.
Alice Winocour, a diretora e roteirista estreante de “Augustine”, sabendo da responsabilidade de retratar uma figura real e referência até hoje na neurologia, estudou e pesquisou sobre Charcot. Mas acrescenta em entrevista:
“Documentei-me para poder exercer a minha liberdade. Não fiz um documentário, mas uma ficção.”
Assim, o talentoso Vincent Lindon, que faz Charcot no filme, é um homem frio, distante, autoritário, preocupado apenas com sua carreira e em angariar fama. Casado com uma viúva rica (Chiara Mastroianni), ele ambiciona pertencer ao circulo restrito dos médicos da Academia.
Assim, entretém colegas importantes em suas aulas sobre a histeria e ninguém melhor do que Augustine, carente e dependente da atenção de Charcot, para aprimorar cada vez mais sua performance perante o interessado auditório. Percebe-se que ela faria qualquer coisa por ele.
O próprio Freud frequentou as aulas de Charcot e se impressionou com o que viu. De suas reflexões sobre o que ouvia de suas próprias pacientes histéricas, que ele tratava com a terapia da fala e não mais com hipnose, nasceram os primeiros trabalhos da psicanálise sobre o inconsciente e o complexo de Édipo.
O filme desenvolve de maneira interessante a relação do pai da neurologia moderna com sua paciente infantil e imatura e sugere que ele a manipulava como queria. Ou assim pensava.
A fotografia é muito bonita e invernal, refletindo a frieza do hospital e do médico mas explode em cores vibrantes quando Augustine é preparada para se exibir nas aulas-espetáculo de Charcot. A manipulação e o dom de Charcot para ganhar prestígio, às custas de Augustine, ficam ainda mais evidentes.
A diretora optou por incluir em seu filme, testemunhos de mulheres atuais com roupas de época. Ficou artificial e incompreensível para o público. “Fausse note” como dizem os franceses.
A cantora Stéphanie Sokolinski, que é conhecida como Soko, está perfeita no papel da mocinha provinciana que amadurece a duras penas, com o que passa no La Salpetrière.
Alice Winocour fez um filme autoral e pós-feminista, na medida em que cria uma ficção corajosa sobre um relacionamento homem-mulher que reflete sobre sexo e poder. Original e elegante.