segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A Luz no Fim do Mundo



“A Luz no Fim do Mundo”- Light of My Life”, Estados Unidos, 2019
Direção: Casey Affleck

Um pai precisa proteger sua filha de um imenso perigo que ignoramos. Ela é um tesouro, descobrimos depois. É a única, ou pelo menos uma das únicas que sobraram depois da peste que eliminou do mundo quase todas as mulheres.
Pai e filha estão numa tenda numa floresta fria de outono. Ele conta histórias para ela dormir e para, talvez, esquecer de seu próprio medo. Conta da Arca que tinha um par de cada espécie de animal que existia na Terra:
“- Eu sou a única da minha espécie. Não conheço outras”, diz Rag, que tem o cabelo bem curto para que ninguém veja que ela é uma menina.
“- Virão outras e você vai conhecer”, responde o pai.
O pai é o professor da filha, que pergunta coisas e ele sempre responde. Faz ela soletrar palavras difíceis e conversam sobre os livros que ela lê. De vez em quando vão até um lugarejo no meio do caminho para buscar mantimentos. Poucas pessoas vivem por ali mas o pai sempre tem muito cuidado. Evita homens perigosos. Essa é a maior preocupação do pai. Fogem cada vez que avistam alguém.
Um dia Rag vomita:
“- Pai? Eu tenho a peste? ”
“- Não querida. Você é imune.”
Dá pena ver a solidão daqueles dois. E Rag não vai ficar para sempre uma menina. Suas formas de mulher vão aparecer. Será que o pai vai escondê-la para o resto da vida?
Houve uma mãe (Elizabeth Moss). O pai tem lembranças dela. Mas Rag não se lembra de nada.
E ficamos pensando. Será que Rag nunca vai poder conhecer outros homens e mulheres? Dizem que há lugares seguros onde vivem mulheres.
Mas parece que o pai não aguenta perder o seu bebê. Mesmo quando conta a ela de uma maneira atrapalhada que seu corpo vai começar a sangrar mensalmente, não diz nada sobre os filhos que ela pode ter.
Afinal Rag é como se fosse Eva. A continuidade da espécie depende das meninas que sobreviveram à peste.
O roteiro e a direção do filme são do próprio Casey Affleck, que faz o pai e suscita mais perguntas do que respostas.
Protegendo tanto sua filha, fugindo da convivência humana, será que ele não desempenha, até sem perceber, o papel de um pai ciumento, que quer a filha só para ele, só para o seu amor exclusivo, impedindo-a de conhecer uma vida de mulher? Poderia ser uma encenação de um incesto inevitável?
“A Luz no Fim do Mundo” é um filme raro, com dois atores fantásticos, Casey Affleck que ganhou um Oscar por “Manchester à Beira Mar” e Anna Pniovsky, uma maravilhosa revelação.


domingo, 27 de outubro de 2019

Downton Abbey



“Downton Abbey”- Idem, Reino Unido, 2019
Direção: Michael Engler

Quando a música da série enche nossos ouvidos no cinema, uma emoção singular aparece em todos aqueles que acompanharam as seis temporadas. Percebemos que nos fizeram falta aqueles personagens, o castelo, o parque grandioso.
Porque é como se reencontrássemos algo que foi nosso e perdemos. O certo é que vivemos com esses personagens a história da Inglaterra, a Primeira Guerra e vimos o mundo com os olhos deles, tanto os dos aristocratas quanto os dos simples plebeus do condado e os dos empregados do castelo. E estão todos ou quase todos na telona, sendo interpretados pelos mesmos atores.
Assim, acompanhamos a bela Lady Mary ( Michelle Dockery), que se envolveu em apuros na juventude quando um turco morreu na cama dela e casou duas vezes. Sua irmã menor Lady Sybil, que morreu no parto, é lembrada através do motorista irlandês que casou com ela e entrou na família, Tom Branson (Allen Leech). A outra irmã, Lady Edith (Laura Carmichael), que teve uma filha fora do casamento e se casou depois com Bertie (Harry Hadden-Paon). Todas filhas de Lord e Lady Grantham (Hugh Bonneville e Elizabeth McGovern).
Uma personagem que conquistou e fez rir a todos foi a avó, mãe de Lord Grantham, Lady Violet (a maravilhosa Maggie Smith), sempre implicando com Isobel (Penelope Wilton), mãe do primeiro marido de Lady Mary.
Os empregados nos interessaram tanto quanto os nobres. Desde Charlie Carson (Jim Carter), o primeiro mordomo, que se casou com a governanta (Phyllis Logan), até o charmoso Thomas Barrow (Robert James-Collier), que sofre com sua preferência sexual que era crime na época. E não esquecemos de Daisy (Sophie McShera) a ingênua, que vai se transformando, ajudante da cozinheira baixinha, Sra Patmore (Lesley Nicol) e Anna (Joana Frogatt), criada de quarto de Lady Mary e que participava ativamente na vida dela. De 1912 a 1926, vivíamos com eles, capítulo por capítulo, em suas alegrias e dores.
Julian Fellowes é o criador de “Downton Abbey’, a série premiadíssima e foi o roteirista do filme.
Agora, o acontecimento em torno do qual gravitam os personagens é uma visita real a Downton Abbey em 1927. O rei George V, avô da atual rainha Elizabeth II (Simon Jones) e a rainha Mary (Geraldine James) vão a Yorkshire para um baile e uma visita à filha (Kate Phillips), princesa Mary e se hospedam por uma noite no castelo de Lord Grantham.
E para que isso aconteça da maneira certa e precisa, com elegância e requinte, todos se envolvem e novamente estamos lá com esses personagens que nos encantam.
Gostar de rever os personagens da série em novas histórias seria fugir da realidade? Reviver contos da carochinha? Certamente. Mas por que não? Quem não precisa de duas horas de descanso do nosso mundo turbulento de hoje?

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Malévola: Dona do Mal



“Malévola: Dona do Mal”- “Maleficent: Mistress of Evil”, Estados Unidos, 2019
Direção: Joaquin Ronning

Durante o tempo longo em que assisti “Malévola: Dona do Mal”, me deu muitas saudades do primeiro filme de 2014. Nele, Angelina Jolie era o centro das atenções e dona da tela. O reino dos Moors com seus encantos era solar, colorido e engraçado. Aurora, a rainha benfazeja. Era um filme feminino, de emoções delicadas.
Essa sequência, também dos estúdios Disney, ao contrário, é masculina, noturna e fria. As emoções são raivosas e aguerridas. A mulher aqui, representada pela rainha Ingrith, é falsa e segue o modelo de destruir para conquistar.
Elle Fanning repete o papel de Aurora, criada pela madrinha Malévola e vive no reino dos Moors. O príncipe (Harris Dickinson) continua apaixonado e quer casar com ela.
Mas o foco da história está na sogra de Aurora, a mãe do príncipe, a nova vilã, que ocupa mais espaço do que Malévola. Michelle Pfeiffer, toda de branco e pérolas, outras vezes de branco e diamantes, é má e ardilosa. Seu intuito secreto é acabar com as criaturinhas do reino dos Moors e, principalmente, derrotar Malévola.
Para isso, traça planos complexos e é ajudada por uma assistente antipática de cabelos cor de fogo e um duende sinistro que habita um porão escuro e tenebroso. A passagem secreta da rainha para esse mundo da maldade, onde se urdem artefatos mortais, é pelo “closet” dela, onde brilham seus vestidos. Mas ela está mais preocupada em destruição do que em ser bela.
Malévola, na pele de Angelina Jolie, continua sendo uma figura que parece ser do mal mas que nunca foi. Seus chifres de Ibex (uma cabra que vive no Himalaia) e asas negras de grifo (uma ave mitológica) são iluminados por olhos verdes sedutores e uma boca vermelha bem delineada. Mas ela não é de risadinhas tolas. Tem até que ensaiar o sorriso que vai usar no jantar no castelo de Ingrith, já que não gosta dessa ideia.
Dessa vez Malévola visita o reino dos seres alados parecidos com ela. E que também vão enfrentar as hostes inimigas da rainha Ingrith.
Mas onde está a magia? Só os pós vermelhos da bruxa de branco ganham destaque na parte final, que  transforma tudo num filme de ação repetitivo. Guerras e lutas já vistas.
Ora... ora..., como diria Malévola, quando vamos voltar à imaginação e ao esplendor dos contos de fada? Talvez no Malévola 3?

domingo, 20 de outubro de 2019

O Profissional




“O Profissional”- “Léon”, Estados Unidos, França, 1994
Direção: Luc Besson

Prepare-se para ver um filme brilhante. Tem ação, passa-se em Nova York, há assassinatos e sangue, muitos tiros e droga. Policiais corruptos. Mas não é só isso.
Tem também um personagem que ninguém diria que é assassino profissional, traumatizado por uma vida difícil mas que mantém um coração sensível. Sua melhor companheira é uma planta que ele cuida todo dia, põe no sol, limpa as folhas, conversa com ela. Léon é imigrante italiano e vamos conhecê-lo no restaurante de Tony, que guarda o dinheiro que ele ganha com seus “trabalhos”. Ele é calmo e confiante. E é analfabeto.
Léon (Jean Reno, ótimo) é vizinho de uma família rude, num prédio de apartamentos bem modesto. Ele passa calado pela porta deles, trazendo sua maleta com seus objetos de trabalho e compras do mercado. Gosta de leite.
Num desses dias, encontra no vão da escada uma menina tristinha, que acaba de levar um tapa do pai, traficante que está na mira dos policiais corruptos. Ela o acompanha com o olhar e pede para não contar ao pai que está fumando:
“- Não fale para o meu pai. Ele já tem preocupações demais. ”
Mathilda é uma menina de uns 13 anos (Natalie Portman, em seu primeiro papel no cinema, cativante) e vai ter toda a família assassinada pelo policial perverso  e seus asseclas, que matam até o irmãozinho de Mathilda de 4 anos. Tudo isso acontece quando ela está fazendo compras.
Quando ela volta a chacina já aconteceu mas os assassinos ainda estão lá. Horrorizada, ela bate na porta de Léon, no desespero de não ter onde se esconder dos policiais que já a procuram.
No começo, perturbado pela presença da menina, não acostumado com companhia, aos poucos vamos ver florescer uma relação afetiva entre Léon e Mathilda, que só tem um ao outro. Brincam, treinam tiro e ela ensina Léon a ler e escrever.
E Mathilda, numa interpretação intensa da atriz, se afeiçoa cada vez mais a Léon que ela vê ora como um pai, ora como seu primeiro amor, confundindo a gratidão que ela sente por ele com outros sentimentos que nunca tinham sido vividos por ela, filha de um pai agressivo e grosseiro, morando com gente estranha que o pai impunha a ela.
Afeiçoada a Léon, quer ser como ele e matar os que assassinaram o pai e seu irmão.
O policial corrupto e perverso, interpretado com talento por Gary Oldman, é o objeto de ódio de Mathilda.
É tão raro um bom roteiro como este, escrito pelo próprio Luc Besson, que aprofunda a psicologia dos personagens, que nos envolvemos com esse filme, considerado por muitos como a obra prima do diretor de “Imensidão Azul” 1998, “Lucy” 2014 e o recente Anna - O Perigo tem Nome”, para citarmos só alguns de sua carreira.
Não perca “O Profissional”, uma joia do cinema.


sábado, 19 de outubro de 2019

Pavarotti




“Pavarotti”- Idem, Estados Unidos, Reino Unido, 2019
Direção: Ron Howard

Eram os anos 80 e um grupo de amigos meus resolveu ir ver e escutar, ao vivo, o grande tenor Pavarotti, que se apresentaria em Buenos Aires no Teatro Colón.
Estávamos no pequeno hall de entrada do Hotel Plaza, todos preparados para a noite de gala, quando nos surpreendemos com o elevador se abrindo e era ele em carne e osso na nossa frente.
A morena mais bela do grupo teve suas mãos beijadas com elegância pelo tenor vestido a caráter, com um “foulard” protegendo o pescoço. A emoção foi grande em tê-lo assim tão perto. Levou um tempinho para o grupo se refazer do encontro tão inesperado. Depois que ele se foi, houve um momento de silêncio de puro espanto e deleite.
A noite foi um sucesso, casa lotada, todas as árias conhecidas aplaudidas com energia pelo público refinado. Mas nunca vou me esquecer do impacto de sua presença. Alto e corpulento, ele se movia com inesperada graça e desenvoltura, com aquele sorriso largo, consciente do próprio carisma e de sua capacidade de sedução instantânea.
Eu conto aqui essa passagem para vocês avaliarem o encanto em torno a esse tenor de voz potente e afinadíssimo.
O documentário que é lançado agora, 12 anos depois de sua morte, conta episódios de sua vida e entrevista pessoas famosas que o conheceram.
Todas as árias importantes com sua voz podem ser vistas e ouvidas, algumas pela primeira vez em filmagens inéditas.
Foram também usados filmes caseiros que sugerem a intimidade de Luciano Pavarotti, mas sempre em tom de homenagem. Sua primeira mulher, Adua Veroni, mãe de suas três filhas mais velhas, é a única voz magoada, mostrando ressentimento com as ausências do marido e pai.
Nicoletta Mantovani, a segunda mulher de Pavarotti, o conheceu quando ela tinha 23 anos e ele 58 e passou a ser sua assistente pessoal. Ele ainda era casado e foi um escândalo na Itália. Era 1996.
Depois nasceu Alice em 2003 e as cenas com a bebê são ternas e comoventes.
E eu gostei também de rever “OsTrêsTenores” o mais popular dos projetos de Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras, que cantaram para multidões em grandes estádios.
Luciano Pavarotti morreu cedo (1935-2007) devido a um câncer de pâncreas mas jamais será esquecido pelo mundo da ópera que ele ajudou a popularizar e do qual foi um dos nomes mais brilhantes.
Vá ver o documentário e se emocionar.


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Projeto Gemini



“Projeto Gemini”- “Gemini Project”, Estados Unidos, 2019
Direção: Ang Lee

Um trem em altíssima velocidade segue em direção a um túnel no vale. Um atirador deitado na grama do alto de uma colina prepara-se para o tiro. A imagem é belíssima, ampla, super nítida. Olho na mira, ele hesita porque há uma criança muito próxima do alvo. Mas atira. E acerta um homem, no pescoço, a 2 km de distância.
Porém Henry Brogan (Will Smith) não está satisfeito e diz a seu chefe que vai se aposentar. Ele trabalha para agências americanas como assassino profissional:
“- São já 72 mortes. Quero um pouco de paz. Deseje-me sorte. ”
Mal sabe ele que seus planos vão ser revirados. Além de descobrir que o homem que acabara de matar não era o terrorista que disseram que era, ele começa a ser alvo de emboscadas. Queima de arquivo. Ele sabia demais.
E quando a agente que mandaram vigiá-lo fica sabendo da história, se alia a ele. Henry e Danny (Mary Elizabeth Winstead) saem à procura de um amigo de Brogan que poderia ajudar. O asiático Baron (Benedict Wong) que vive em Cartagena, Colômbia, os acolhe em sua casa.
O cerco a Henry agora é feito por um motoqueiro audaz que encena uma das notas altas do filme. Uma perseguição em motos onde a máquina é usada como arma. As ruas estreitas e coloridas da cidade colombiana são o palco dessa disputa mortal.
Mas o roteiro não tem muitas surpresas.
Iremos ainda para Budapest num Gulfstream e vamos ver uma luta corpo a corpo numa catacumba com muitos esqueletos.
E não é preciso ser um gênio para adivinhar que o assassino que o vilão Clay Verris (Clive Owen), do Projeto Gemini, manda atrás de Henry, é o próprio, só que com 23 anos e a força de um tanque de guerra.
Ang Lee, 64 anos, nascido em Taiwan e radicado nos Estados Unidos é um diretor muitas vezes premiado. Indicado ao Oscar de diretor por “O Tigre e o Dragão” , levou a estatueta dourada duas vezes por “O Segredo de Brokeback Mountain” em 2006 e “As Aventuras de Pi” em 2013. Além disso foi premiado com dois Leões de Ouro em Veneza por “O Segredo de Brokeback Mountain” e “Desejo e Perigo” em 2007. Em Berlim foi premiado com o Urso de Ouro por “Razão e Sensibilidade” em 1996.
Aqui ele parece estar mais interessado em usar uma nova tecnologia, o 3D+, que projeta as imagens a 60 quadros por segundo ao invés dos tradicionais 24 quadros. A imagem é de uma nitidez fantástica. E o jovem Will Smith é criado através da captura de movimentos, sendo o primeiro personagem do cinema totalmente recriado digitalmente.
“Projeto Gemini” é um filme de ação sem novidades no roteiro, mas diverte.
Só que isso é muito pouco para um diretor do nível de Ang Lee.


sábado, 12 de outubro de 2019

Rainha de Copas




“Rainha de Copas”- “Dronningen”, Dinamarca, Suécia, 2019
Direção: May el-Toukhy

O que aconteceu com Anne?
Advogada de sucesso, uns quarenta e tantos anos, casada com um médico sueco bonitão com quem tem uma boa vida, filhas gêmeas de 11 anos e uma casa com uma bela arquitetura, cercada de árvores de um bosque, parecia que ela era feliz. Tinha tudo que o luxo dinamarquês permitia.
Ela (Trine Dynholm, atriz fantástica) e ele (Magnus Krepper) são extremamente dedicados ao trabalho, sendo que Anne exagera quando leva para casa adolescentes que ela defende de abuso sexual e violência doméstica. Está sempre estudando os processos do escritório de advocacia do qual é sócia, chega tarde em casa, muitas vezes depois do marido.
Mas o casamento vai bem.
Porém algo inesperado acontece nesse cenário perfeito, sem problemas.
O marido de Anne teve um primeiro casamento e um filho, Gustav (Gustav Lindh) que, expulso da escola na Suécia, onde vivia com a mãe, vem morar na casa do pai. Era isso ou um internato.
As meninas estão felizes com esse irmão que aparece de surpresa. E Anne tenta acolher o garoto problemático, que se mostra arredio a princípio.
Quando acontece um roubo na casa deles, em pleno dia, sem ninguém em casa, Anne não leva muito tempo para descobrir que o culpado foi o enteado. Mas, ao invés de contar para o marido, ela chama Gustav e abre o jogo com ele. Tudo ficaria entre eles dois, se ele prometesse entrosar melhor na família e tratar bem as irmãs.
E Gustav parece que entendeu o ato de Anne perdoá-lo e devolve com gratidão, tornando-se mais íntimo das irmãs.
Um belo dia de verão, Anne, Gustav e as gêmeas vão para um passeio no lago. E quando ela entra na água, onde está Gustav, as meninas estranham:
“- Mãe você nunca quer nadar...”
E foi ali que Anne se entregou a uma parte dela que não media as consequências de seus atos. Esse lado a empurra para a cama do enteado. É ela que o seduz. Logo ela que protegia crianças e adolescentes de adultos perversos.
A cegueira ética que a invade é comandada por uma parte dela, altamente destrutiva, liderando uma sabotagem disfarçada de liberdade.
Seu narcisismo a impede de ver o estrago que poderia causar na vida de toda a família e principalmente na dela.
Anne não avalia os prejuízos que poderiam vir com esse relacionamento, que era incentivado não tanto pelo sexo, mas para preencher sua insegurança com seu poder de sedução. Coisa que não raro acontece entre as mulheres e os homens de meia idade.
Essa história contada com talento pela diretora May el-Toukhy é um triste exemplo, valioso para uma séria reflexão sobre temas importantes na vida de todos nós.


terça-feira, 8 de outubro de 2019

Encontros




“Encontros”- “Deux Moi”, França, 2019
Direção: Cédric Klapish

Os românticos vão adorar essa história dirigida por Cédric Klapish (“O Albergue Espanhol” 2002, “Bonecas Russas” 2005, “Paris” 2008), sobre dois jovens solitários em Paris, morando em prédios vizinhos, que procuram um ao outro, sem saber.
Mélanie (Ana Girardot) é uma linda mulher de mais ou menos 30 anos, que trabalha num laboratório de pesquisas farmacêuticas mas que reflete em toda sua postura algo que está errado nela. No momento está muito preocupada porque precisa fazer uma apresentação dos resultados de sua equipe perante um auditório de especialistas. Sente-se incapaz.
Rémy (François Civil) é um jovem atraente, também de mais ou menos 30 anos, que anda desmazelado, encolhido, com um olhar para baixo, nenhuma segurança em si mesmo e dificuldade de se expressar. Ele é operário de um grande armazém, prestes a ser despedido e trocado por robôs.
Os dois tem o mesmo olhar perdido. E usam o mesmo metrô mas não se veem, cercados de gente das mais diversas origens, etnias e cores.
Quando chegam em casa, nos prédios vizinhos em frente às linhas do metrô, tendo acima deles a igreja branca do Sacré-Coeur no alto da colina, saem à janela e ao terraço. Ela come um pêssego e ele bebe uma cerveja. Em outros dias ela fuma e só a fumaça branca do cigarro chega até ele.
Olham a mesma paisagem mas não sabem um do outro.
Nós os vemos com aquele olhar de procura e torcemos para que eles se encontrem logo. Mas sabe do que mais? Não iria dar certo nesse momento.
Mélanie e Rémy vão à mesma farmácia, no mesmo minuto. E reclamam da mesma coisa: problemas com o sono. Um leva um relaxante e outro um estimulante mas não é disso que eles precisam.
Na academia, Rémy conversa com um colega durante um intervalo na parede de escalada:
“- É normal. Todo mundo tem dias bons e maus” diz o outro.
“- Eu só tenho dias ruins”, reclama Rémy.
Chegam a frequentar a mesma loja de alimentos, onde são atendidos pelo dono simpático que indica as melhores iguarias, mas não se olham.
Mélanie escuta suas amigas e passa a frequentar “sites” de relacionamentos mas todos os homens que aparecem só fazem ela beber mais do que o normal.
E, no metrô, uma crise de ansiedade faz com que Rémy passe mal. Algo houve naquele dia no metrô que mexeu fortemente com os conflitos internos de Rémy.
O médico percebe e recomenda uma psicoterapia.
Mélanie teve a mesma ideia, apesar de nenhum ataque de pânico nem de ansiedade.
E lá vão eles. Rémy com um senhor de cabelos brancos (François Berléand) e Mélanie com uma psicoterapeuta bem feminina (Camille Cotin).
E começou assim um ponto em comum com os dois. Cada um quer saber o que o impede de viver uma vida de melhor qualidade e quem sabe encontrar um par.
Não é da noite para o dia que isso pode acontecer mas algumas experiências adiante e coragem para ver lá dentro deles o que carregam de traumas infantís não solucionados, vão talvez aproximá-los.
É o que espera a plateia que sai leve desse “Encontros” encantador.


terça-feira, 1 de outubro de 2019

Bacurau




“Bacurau”- Brasil, 2019
Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Meirelles

Tudo começa com uma imagem linda. A Terra azul vista lá de cima com Gal cantando “Não Identificado”. A câmera vai descendo e vamos, num caminhão de água para a cidadezinha no oeste de Pernambuco, Bacurau, nome de um pássaro grande e bravo que só aparece à noite.
O letreiro avisa que tudo vai se passar daqui a alguns anos.
Estranhamos, com o caminhoneiro e a moça a seu lado, que na estrada, um outro caminhão que leva como carga caixões de defunto, chama a atenção, emborcado.
Passamos pelas ruínas de uma escola e logo chegamos à cidadezinha de uma rua só, casas pobrinhas e ruas de terra.
A moça volta para casa porque morreu sua avó querida, dona Carmelita, aos 94 anos. Vestida de branco ela jaz na cama, na casa acanhada cheia de gente para o velório. Toda a cidade comparece ao enterro da anciã, saudada pelo filho como a matriarca de uma família espalhada pelo mundo.
Só a dra Domingas (Sonia Braga) sobe numa cadeira, não para louvar mas para insultar a morta. Depois ficamos sabendo que ela é um doce de pessoa, menos quando bebe. Pediu desculpas publicamente.
O cortejo, com direito a carro de som, leva dona Carmelita e, estranhamente, por duas vezes sai água cristalina de dentro do caixão. Mas lenços brancos acenando marcam a despedida do povo à velha senhora. E a câmera mostra o belo céu vermelho, depois cinza e azul.
Vamos conhecendo os habitantes de Bacurau, gente pobre, sofrida mas que ainda sabe sorrir e cantar.
Outra coisa estranha é o “close”, que acontece algumas vezes, da boca de alguém engolindo uma coisa que parece um comprimido ou pedaço de algo amarelo.
Mas, mais estranho ainda é que parece que Bacurau desapareceu do mapa. Como foi isso?
O filme vai levando o espectador a ver o que sofre o povo nessa cidade. Falta de água, eletricidade, comida, remédios, vacinas. Tudo.
Quando chega o prefeito, em plena campanha para reeleição, todo mundo desaparece e só se ouvem os insultos gritados pelo povo, atrás de suas portas e janelas.
Tudo que o prefeito trouxe, ou quase tudo, tem o prazo de validade vencido e o remédio gratuito de tarja preta é um veneno, avisa a dra Domingas.
Tudo tem limite nessa vida, parece dizer o povo.
E quando a violência gratuita explode através de armas “vintage” e invade a tela, levamos um susto.
“Bacurau” é uma fábula sobre a injustiça, a violência gratuita gerando violência e a loucura de que o ser humano é capaz.
O que mais me arrepiou foi a tela de uma televisão mostrada rapidamente, que anuncia “execuções públicas no Anhangabaú”. Será que vamos retroceder a esse tipo de barbárie de norte a sul?
Temos todos que refletir sobre o que queremos para o nosso Brasil. “Bacurau” ajuda nisso.