terça-feira, 28 de junho de 2016

Big Jato


“Big Jato”, Brasil, 2015
Direção: Claudio Assis

Uma estranha imagem inicia o filme: um garoto tenta tirar, de dentro de sua boca, um peixe de pedra. E uma voz de adulto em “off” comenta:
“- Aquele peixe que nunca ia sair de dentro de mim e que era a coisa mais próxima da felicidade que eu conhecia...”
Nessa cena inicial há toda uma condensação da história do menino Xico (Rafael Nicácio), nascido em Peixe de Pedra, uma cidadezinha no sertão nordestino, que tinha sido mar há bilhões de anos atrás.
Vamos ver o que formou seu caráter e o que o ajudou a fugir de um destino de fossilização, de vida seca, destituída da seiva que a alimenta.
De óculos, olhos grandes e com muitas perguntas, Xico sobe na boleia do caminhão de seu pai, Velho Francisco, que ganha a vida limpando fossas. “Big Jato” é o nome do caminhão azul, antiquado, cujo motor nem sempre quer pegar. Tem escrito na traseira: Quem não reage, rasteja.
“- A curva é que dá sentido ao caminho na estrada. A reta nada diz da caminhada”, diz o Velho para Xico.
E na conversa, recheada de alusões ao serviço de limpeza que ele faz, o Velho vai soltando sua sabedoria poética para o filho.
Mas, quando chega em casa é dengoso só com a filha e exigente com a mulher (Marcela Cartaxo, sempre maravilhosa) e com os filhos homens, George e David, nomes que são pronunciados com sotaque americano.
Já Xico, o companheiro nas limpezas de excrementos, quer ser poeta, para horror do pai:
“- Concentre na matemática!”
O irmão gêmeo de Velho, tio Nelson (ambos interpretados por Matheus Nachtergaele, ator prodigioso), é dono de um programa na Rádio Ororubá. Irônico, dono da verdade, cheio de charme e inimigo do trabalho, é outra inspiração para o sobrinho Xico.
E, em matéria de amor romântico, o menino se instrui com Príncipe (Jards Macalé), um personagem estranho e marginal, com quem passeia nos trilhos do trem.
Apesar do pai machista leva-lo para o bordel, para perder sua virgindade com uma índia, Xico não consegue esquecer Ana Paula, menina recém chegada na cidade, que ainda por cima está noiva. É um romântico.
“- O verdadeiro sertanejo é aquele que se vai!” diz com ênfase o tio Nelson, que vive embriagado assim como o pai de Xico.
E o sobrinho sonha em seguir esse conselho.
“Big Jato” é o primeiro roteiro adaptado que o pernambucano Claudio de Assis filma. Saiu do livro de Xico Sá, transposto para a tela por Anna Carolina Francisco e Hilton Lacerda.
No Festival de Brasília, em 2015, ganhou o prêmio de melhor filme, ator (Matheus Nachtergaele), atriz (Marcela Cartaxo), roteiro e trilha sonora (DJ Dolores).

“Big Jato” é irreverente, rude e doce. Passa para o público o ponto de vista do menino que quer ser poeta e que ainda não descobriu o mundo. Mas que está louco para fazer isso!

domingo, 26 de junho de 2016

As Montanhas se Separam


“As Montanhas se Separam”- “Mountains May Depart”, China, França, Japão, 2015
Direção: Jia Zhang-ke

China, 1999. É Ano Novo. Jovens dançam uma coreografia “disco” ao som de “Together” gravada pelos Pet Shop Boys (“cover” do sucesso do Village People), festejando o novo século que chegava. Sonhos com o Ocidente?
Fogos de artifício pobrinhos sobre a cidade de Fenyang (terra natal do diretor). Dragões vermelhos desfilam nas ruas. O povo aglomerado se empurra, vestidos com cores escuras e roupas simples.
Logo, vemos um trio que canta e ri no carro vermelho que pertence a Jing Sheng (Zhang Yi)), um jovem herdeiro, que leva ao lado a bela Tao (Zhao Tao, mulher do diretor, atriz maravilhosa) e um rapaz proletário Liangzi (Liang Jin Dong), que trabalha numa mina de carvão.
Claro que os dois disputam a moça. Viram inimigos. O rico, sempre com um bonito casaco de couro, ameaça o pobretão, chegando a pensar em intimidá-lo com um revólver. Não é bom caráter.
Mas ela, apesar de gostar muito de Liangzi, escolhe o outro para se casar, sem refletir sobre sua arrogância, nem seu gênio ruim.
Os dois tiram fotos para o álbum do casamento diante de uma foto da Opera de Sidney, distante paraíso. E Tao ganha um cãozinho labrador do noivo.
Quando ela leva o convite de casamento para Liangzi, recebe a notícia que ele vai embora:
“- E quando você volta?”
“- Nunca”, responde ele, jogando longe a chave de sua casa pobre.
O diretor Jia Zhang-ke, 45 anos, retratado no documentário de Walter Salles, “O Homem de Feniang” de 2015, é um dos mais célebres diretores chineses (“Toque de Pecado”, 2013). Aqui, no primeiro segmento do filme, retrata seu país na passagem para o século XXI, quando despontam novos ricos como o noivo de Tao, embora o povo vivesse ainda muito mal.
Quando passamos para a segunda parte, em 2014, Tao está separada do marido, que se tornara um milionário, com negócios prósperos em Shanghai. O filho deles, Dole (Zhao Tao), mora cm o pai que obteve a guarda e estuda num colégio internacional. Não tem nenhum contato com a mãe.
Liangzi continua trabalhando em mineração, tem mulher e filho mas leva uma vida paupérrima. Fica gravemente doente e não tem dinheiro para se tratar.
O contraste entre as duas Chinas vai ser mostrado por Zia Zhang-ke, que escreveu o roteiro do filme, além de dirigi-lo, através das duas mulheres que se encontram quando a esposa de Liangzi vai procurar Tao, rica, bem vestida, cercada de amigos iguais a ela, num casamento. A outra, pobremente trajada, espera Tao na rua e implora sua ajuda.
Quando o pai de Tao morre, ela chama o filho de 7 anos para o enterro. São dois estranhos. Ao mesmo tempo que se exaspera, ela sente tristeza por não poder conviver com ele e educá-lo. E, ainda por cima, fica sabendo que o pai vai levá-lo para viver em Melbourne na Austrália. É bem clara a dissolução dos laços familiares nessa nova China.
Na despedida, a mãe entrega as chaves de sua casa para o filho:
“- Dole, você será sempre bem vindo na sua casa!”
Mas a falta de raízes é um dos sintomas desses novos chineses que só falam inglês e esqueceram o mandarim, como acontece com o filho de Tao.
A terceira parte do filme acontece na Austrália em 2025. O filho de Tao, que agora se chama Dollar (Dong Zijian) é um garoto aparentemente de bem com a vida mas, no fundo é um perdido.
O pai, que não fala inglês, continua o mesmo. Não se dá bem com o filho.
Uma experiência afetiva com uma professora (Sylvia Chang), há muitos anos longe da China de sua Hong Kong natal, faz Dollar lembrar-se de sua mãe, sentir falta do seu amor. Sente-se um desgarrado.
A cena final, magistral, traz de volta a música do início do filme e Tao, bela apesar de envelhecida, graciosamente dança aquela antiga coreografia de 1999. A neve cai e um novo cão labrador é sua única companhia.
“As Montanhas se Separam” é um filme dramático mas também doce e nostálgico. Mostra a China como um espelho do nosso mundo. O diretor enfatiza as mudanças, que vão acontecendo, usando um diferente tamanho de tela para cada segmento. A imagem maior, filmada com a mais nova tecnologia, não é a mais feliz.
Jia Zhang-ke tem tristes presságios para o futuro da humanidade, expressados com arte nesse seu belíssimo filme. Imperdível!


terça-feira, 21 de junho de 2016

Paulina


“Paulina”- “La Patota”, Argentina, Brasil, França, 2015
Direção: Santiago Mitre

Paulina, a jovem advogada argentina, é intrigante desde o início do filme, numa discussão com o pai, o juiz Fernando (Oscar Martinez). Ele não se conforma com a ideia da filha (a excelente Dolores Fonzi), de interromper seu doutorado, com a expectativa de uma carreira brilhante à sua frente, para ser professora rural, perto do lugar onde nasceu, no norte da Argentina, fronteira com Brasil e Paraguai.
Mais do que irritar profundamente o pai, homem de esquerda que ela tacha de reacionário, parece que Paulina é movida por um idealismo político e crê que a ação pessoal vale mais do que o trabalho através de instituições, como os tribunais, na realização da justiça.
Ela namora, há muito tempo, Alberto (Esteban Lamothe) e ele também não entende por que ela quer ir trabalhar numa região pobre, outrora uma zona de florestas, hoje dizimadas pelas serrarias.
Lá chegando, frente à classe de adolescentes, ela logo perde uma autoridade que não tentou conquistar, colocando-se como “empregada dos alunos” tal como “os políticos são empregados dos cidadãos e não o contrário”.
Claro que a classe aproveita para ter a liberdade de ir embora, dispensando os ensinamentos políticos que a professora tenta passar de maneira infeliz.
Ela parece não compreender o nível de educação de seus alunos, assim como não entende quando falam em guarani entre si.
E a tragédia vai acontecer através de um equívoco. Paulina é vítima de algo terrível. E, como em todos os casos de estupro, é mais humilhada que ajudada no interrogatório policial e exames médicos.
Mas o que mais surpreende a todos é a decisão que Paulina toma frente às consequências desse estupro, mesmo que o pai e as próprias colegas dela, não concordem.
O filme “La Patota” de 1961, que inspirou esse segundo longa de Santiago Mitre, 35 anos, tinha o perdão como o motivo religioso que impedia a vingança.
Com Paulina é diferente. Ela não quer vingar-se mesmo conhecendo os autores do estupro. Ela não perdoa mas tenta entender, já que acredita que a polícia procura culpados, não a justiça. E pensa que a violência que sofreu já basta.
Paulina suscita muitas perguntas já que foge do padrão que encontramos em vítimas desse tipo de crime.
É na entrevista, que se passa durante todo o filme em “flashback”, com uma profissional que faz perguntas a ela, que uma hipótese pode surgir. Nesse mesmo sentido há também uma fala de uma tia de Paulina sobre sua mãe:
“- Você não se lembra dela mas era um demônio, não a rainha da bondade!”
E de repente, realizamos que Paulina não tinha mãe. Ora, suas ações passam a ter algum sentido, se pensarmos que uma poderosa corrente inconsciente impulsionava seus atos, antes de serem trabalhados num plano racional.
À luz dessa hipótese, afrontar o pai e fazê-lo sofrer, com bons argumentos, vingaria a mãe dela, vítima idealizada com quem se identificava.
Na cena inicial e na final, percebemos que os dois personagens principais dessa tragédia são a filha e seu pai. Disse Santiago Mitre numa entrevista:
“- Minha decisão no filme é acompanhá-la e não julgá-la. Uma vítima deve ser ouvida. Não se pode entender o que se passa pela cabeça ou mesmo pelo corpo de quem sofreu uma violência dessas. Quis fazer um filme que, em vez de impor as suas certezas, se movesse em um território difuso, de perguntas, que convide à reflexão.”
Co-produzido pelo Brasil (Walter Salles), o ganhador do Grande Prêmio da Semana da Crítica em Cannes 2015 é um filme original em sua narrativa, bem realizado e com atores fantásticos.
Mas “Paulina” não é para o grande público. É para quem gosta de mergulhar nas contradições da natureza humana.




sábado, 18 de junho de 2016

Vida Selvagem


“Vida Selvagem”- “Vie Sauvage”, França, Bélgica, 2014
Direção: Cédric Kahn

Nora (Céline Sallette) e Paco (Matthieu Kassovitz) se entendiam bem naquele começo idílico. Jovens, hippies, um por do sol deslumbrante e ele a vê coroada de luz, cabelos rebeldes e louros, vestida como uma cigana, bela e feliz. Casam-se uma semana depois, debaixo de uma árvore centenária. Juram fidelidade para sempre.
E Nora, que trouxe um filho de outro homem para aquela família, teve dois meninos, criados à maneira que Paco e ela acreditavam ser o certo. Não iam à escola mas aprendiam em casa. Tinham uma educação igual às outras crianças, pensavam os pais, mas na liberdade da vida nômade, entre outros que eram como eles, contrários à sociedade de consumo e às leis dos homens da cidade.
Mas a vida muda as pessoas. E Nora passou a querer uma casa. Cansou-se daquilo. Brigavam. Paco irredutível. Viveriam para sempre naquele trailer, agora seminômades, junto à comunidade alternativa. Fogueiras à noite, canções, danças e baseados.
E, um belo dia, Nora foge, levando as três crianças. Aquilo deixa Paco furioso e ele vai atrás, exigindo os filhos de volta. Promete até uma casa para Nora.
Mas ela, apoiada pelos pais dela, recusa o pedido de Paco e chama a polícia.
O juiz dá a guarda à mãe mas nas primeiras férias com o pai, os meninos de 7 e 8 anos de idade escutam seu apelo e vão com ele, tornando-se fugitivos, procurados pela polícia.
Desesperada, a mãe tenta recuperar os filhos mas é só Thomas, o mais velho, que fica com ela.
Essa história é real e fez manchetes de jornal na França, onde o pai conseguiu fugir por onze anos, vivendo com os dois filhos Tsalit (David Gastou) e Okyesa (Sofrane Neveu). O filme é baseado no livro “Hors système – onze ans sous l’étoile et la liberté” escrito pelo pai Xavier Fortin e os filhos.
No começo, os dois meninos gostavam da vida que levavam. O pai, como professor, ensinava a eles o que as crianças da cidade aprendiam na escola e passava para eles sua filosofia de vida. Amavam e respeitavam o pai mas, pelo menos o menor, sentia falta da mãe. Vemos isso numa cena como um sonho, onde ele procura a mãe que chama seu nome.
Crianças crescem. E os adolescentes (Jules Ritmanic e Romain Depret), desde sempre, são rebeldes à autoridade. O pai, até então, entronizado como um deus, tem que ser contestado.
“Vida Selvagem” não julga ninguém nem discute a posição do pai ou da mãe. Apenas mostra o ponto de vista dos dois meninos, primeiro crianças que descobriam a natureza com prazer e depois adolescentes, que queriam ouvir “som” alto, viver numa casa sem animais, receber os amigos e namorar.
A fotografia de Yves Cape captura a beleza idílica do campo na neblina, cascatinhas e riachos transparentes. O canto dos pássaros, sempre presente, é a música que emoldura as imagens.
Os atores respondem com brilho à direção de Cédric Kahn, destacando-se Matthieu Kassovitz, o diretor do filme “O Ódio-La Haine” de 20 anos atrás, que vive com convicção o Paco de longos cabelos num rabo de cavalo, duro e apegado às próprias ideias, apesar de amoroso com os filhos.

Finalmente, “Vida Selvagem” fala menos da natureza, que da guerra entre os casais que se separam e usam os filhos como reféns, sem se dar conta do que fazem, com muito egoísmo. Grande verdade.

terça-feira, 14 de junho de 2016

A Odisseia de Alice


“A Odisseia de Alice”- “Fidelio, L’Odyssée D’Alice”, França, 2014
Direção: Lucie Borleteau

Quando o filme começa, vemos Alice nua, nadando no mar azul transparente. Ela passa um sentimento de liberdade e naturalidade, brincando na água. Coloca o maiô laranja quando vai de encontro ao homem deitado na prainha vazia e privada, só para tirá-lo de novo e fazer amor com Felix (Anders Danielsen Lie), seu namorado dinamarquês.
Ele desenha histórias, é artista gráfico e passa para o papel o corpo de Alice.
“- Adoro quando você desenha meu sexo, mas não tenho seios tão grandes...”
“- Em meus sonhos você tem”, responde Felix, com um sotaque que delicia Alice (a bela atriz grega Ariane Labed).
Ela é engenheira naval, tem 30 anos e vai partir no Fidelio, antigo navio de carga. E é com saudades que deixa Felix.
Depois da escalada da escada que a traz a bordo de noite, alguém pergunta:
“- Você tem medo de fantasma?”
Porque na cabine que Alice vai ocupar, morreu um tripulante. Ele estava na sala de máquinas e sua morte está envolvida em mistério. Não se sabe a causa e ele será sepultado no mar.
Alice assiste à cerimônia e encontra na cabine o diário de Patrick. Ela vai mergulhar nessa leitura íntima e refletir sobre a vida.
Mas uma surpresa a espera no Fidelio. Gael (Melvil Poupaud) é o charmoso comandante do navio e um antigo amor de Alice.
Ela é a única mulher a bordo. Passa seus dias entre homens. E não parece se importar com a atmosfera de piadas e conversas masculinas.
Alice sabe lidar com a sexualidade que emana de seus poros e mora em seus olhares e, é claro, Gael volta para a cama dela.
Quando Felix, seu amor em terra, se faz presente através de uma caixa com 30 livros que ele manda para ela, Alice sorri agradecida, pensando no amor dos dois. Mas parece que o que ela sente pelo namorado dinamarquês não a impede de dispor do próprio corpo a seu bel prazer. Aliás é ela quem escolhe quem se deita com ela, como descobre um atrevido que entra na cabine dela sem ser convidado.
“A Odisseia de Alice” lembra a outra, a de Ulisses, que, por mais que se deitasse com feiticeiras, deusas e sereias, no fim volta para sua Penélope.
Mas o tema da fidelidade, lembrado no nome do navio, ainda não trabalhado por Alice, vai colocá-la numa encruzilhada. A aparente facilidade com que lida com sua forte sensualidade, que a invade quando no mar, pode ser uma defesa construída para evitar ter que escolher alguém para amar. Ou terá ela vontade de ter duas vidas, uma na terra, outra no mar?
O primeiro longa de Lucie Borteleau, 34 anos, deu o prêmio de melhor interpretação feminina para Ariane Labed. A diretora é talentosa e faz um filme com uma reflexão importante sobre a mulher do século XXI que, por mais que queira adotar um papel dito masculino, tal qual Ulisses, apesar das aventuras também precisa de um amor porto seguro. E será que um homem, que não tenha essa atitude livre, vai suportar a vida dupla da mulher dele?
Alice espera “tudo” do amor. Uma idealização infantil. Esquece que tem que haver uma reciprocidade essencial na dupla amorosa?
É um belo pequeno filme que faz pensar.



terça-feira, 7 de junho de 2016

De Amor e Trevas


“De Amor e Trevas”- “A Tale of Love and Darkness”, Israel, 2015
Direção: Natalie Portman

A bela israelense Natalie Portman chegou aos três anos de idade, com a família, nos Estados Unidos. Lá estudou psicologia em Harvard e como atriz ganhou um Oscar pelo papel em “Cisne Negro”.
Admiradora de Amos Gitai, ela resolveu tentar a direção e, no seu primeiro longa, escolheu adaptar para o cinema as memórias do mais famoso escritor israelense, Amós Oz, 76 anos.
Assim fazendo, ela homenageou suas origens e mostrou talento para adaptar e dirigir um livro denso, com mais de 600 páginas, que conta 20 anos da história de Israel.
Foi obrigatório um recorte e Natalie Portman escolheu retratar, como o centro de seu filme, a relação entre o menino Amós (o excelente Amir Tessler) e sua mãe Fania, vivida com intensidade pela atriz e diretora.
O filme começa mostrando, através da visão do menino judeu de 6 anos, a vida em 1945, na Palestina, ainda sob o mandato britânico, passando depois pela criação do Estado de Israel e a guerra da Independência em 1948/49, retratando o sofrimento e a coragem dos que lutaram pelo nascimento de uma pátria.
A diretora faz o próprio Amós Oz ser o narrador de sua vida, interpretado por um ator, que repete as palavras que ele escreveu aos 30 anos, idade com que sua mãe morreu. Ela era uma romântica sonhadora, conta ele. Acreditava na terra onde jorrava leite e mel.
Seu pai, o escritor Arieh Klausner, era de uma família que veio da Polonia (na época Ucrânia) para a Palestina, em 1933. Era o oposto de sua mãe, entusiasmado e acadêmico, apaixonado pela lingua hebraica, mas sem muito público para seu livro “Os Contos da Literatura Hebraica”.
Os avós paternos de Amós viviam também em Jerusalém e a mãe e as irmãs de Fania em Telavive. A mãe de Amós tinha uma péssima relação com sua mãe dominadora e repetia, com certa distância, a mesma relação com a sogra.
No filme, vemos como ela procurava a solidão, parou de contar histórias e desenvolveu um quadro de enxaquecas que não a deixavam dormir. Da apatia para uma mudez, da insônia para sintomas de uma depressão grave, que vão levá-la ao suicídio. Sempre inexplicável para os que ficam.
E é tocante perceber como o menino agia com ela com cuidado, como se pudesse mitigar suas angústias. E, nos damos conta de como deve ter sido trágica essa morte para ele. Escreveu: “Minha mãe começou a pensar na morte como se fosse um amante protetor, quando as promessas de sua infância não foram cumpridas”.
E como eram pungentes as histórias, verdadeiras parábolas sobre sua vida, sempre com elementos de tragédia, que Fania contava para o filho. Ao ouvi-las, vemos as imagens poéticas escolhidas por Natalie Portman para ilustrá-las: a aldeia abandonada invadida pelos pássaros negros, a mulher vendida pelo marido no jogo de cartas que se mata com fogo, o jovem militar polonês que atira na própria cabeça, o comerciante de peles raras que enlouqueceu de pena pelas raposas mortas e outras mais, que certamente inspiraram o filho escritor.
Aos 15 anos, ele mudou seu sobrenome para Oz, que quer dizer “coragem” em hebraico e foi viver num”kibutz”, onde fica afastado do pai.
E, desde cedo, ele se preocupava com o destino dos árabes que compartilhavam a Palestina com os judeus. Isso é traduzido numa frase que ele, pequeno, diz para a menina árabe, Aisha, que ele encontra numa festa: “nosso país tem lugar para nossos dois povos”.
Nos anos 70, Amós Oz vai fundar o movimento pacifista israelense “Schalom Achschan”(Paz Agora), que defende a criação de dois estados independentes, um judaico, outro árabe.
“De Amor e Trevas” é um filme comovente, que ensina um pouco da história de Israel e mostra que Natalie Portman, 35 anos, além de grande atriz, promete como diretora.



sábado, 4 de junho de 2016

Campo Grande


“Campo Grande”, Brasil, 2016
Direção: Sandra Kogut

O que será que aconteceu com aquela criança? Está na portaria de um prédio da zona sul do Rio de Janeiro. É uma menina de uns 5 ou 6 anos e chora desconsolada e muda:
“- Sua mãe me conhece? Você já esteve aqui?” pergunta Regina, a moradora que tinha seu nome num papel que estava com as crianças. O irmão da menina sumiu.
Não tem outro jeito. E a menina sobe para o apartamento de Regina (Carla Ribas, ótima) que mora com a filha de uns 18 anos (Julia Bernat).
Bem que Regina tenta mas o telefone da Prefeitura não ajuda. Alguém fala em Conselho Tutelar.
A menina deixada sozinha na cozinha pega algo na geladeira, cospe e agarra uma banana. Vai para a sala do apartamento e bate no vidro da janela, sempre chorando. Enrola-se na cortina.
“- Além de fazer xixi no sofá da dona Regina você quer destruir a casa?” diz brava a empregada que vem ver onde a menina está.
A menina chora, sentida e balbucia:
“- Mãe...”
Foge da empregada, desce pela escada de serviço correndo e joga-se num abraço com um menino, um pouco mais velho do que ela, que está na portaria:
“- Igor! Onde você tava?”
“- Calma. Eu vou achar ela.”
É o irmão de Rayane, que a mãe também deixou na portaria do prédio de Regina.
Saem à procura da mãe, perambulando pela cidade barulhenta. Carros, buzinas , construções. A menina (Rayane do Amaral) grudada no irmão (Ygor Manuel, maravilhoso). Ele sobe no monumento da praça para gritar:
“- Ô mãe!”
Mas acabam voltando para o prédio. O menino tem certeza de que a mãe vai voltar. Mas quando?
“Campo Grande”, dirigido com sensibilidade por Sandra Kogut, emociona. Mostra o desamparo de Regina frente a uma situação que ela não consegue resolver e que a angustia:
“- Você está assim porque não sabe cuidar das pessoas”.
E Regina, que está divorciada e que tem que sair do apartamento porque a filha vai morar com o pai, tem que ouvir de Lila:
“- Você quer que eu fique morando com você para não sair desse apartamento.”
E a maior parte do filme passa-se na procura da mãe das crianças por Igor e Regina, depois que a menina foi colocada num Abrigo. Os dois vão até Campo Grande onde o menino diz que a avó e a mãe moram.
Ela, que no começo estava apenas irritada com aquele  menino, vindo não se sabe de onde e que só dava trabalho, vai mudando de atitude.
Na verdade, passa a admirar aquela criança que ama a irmãzinha, adora a avó e que procura desesperadamente a mãe. Regina está só e não tem ninguém para procurar. Com Igor ela começa a pensar sobre sua solidão.
Assim, ao longo do filme vemos a aproximação da garota Lila com sua mãe Regina. E uma transformação, de uma mulher quase feia e desleixada, para uma outra que tem o cabelo penteado e um brilho amoroso no olhar.
Tanto o menino Igor cantando a música predileta da avó, quanto Regina repartindo um sanduíche com a filha e dormindo depois juntas, são cenas que colocam lágrimas incontroláveis no nossos olhos. Não tem como escapar da emoção.
“Campo Grande” é uma surpresa e tanto.




quarta-feira, 1 de junho de 2016

Alice Através do Espelho


“Alice Através do Espelho” – “Alice Through The Looking Glass”, Estados Unidos, 2016
Direção: James Bobin

Quem nunca quis voltar ao passado e consertar algo errado ou mesmo fazer o que deveria ter feito e não fez? Ora, isso é impossível. Será?
Essa é a intrigante questão de Alice nesse “Através do Espelho”, com os mesmos personagens de “Alice no País das Maravilhas”, dirigido por Tim Burton em 2010 e que no novo Alice é somente produtor, ajudando o diretor James Bobin a recriar o mundo que ele imaginou.
Aqui estão de novo Mia Wasiskowska (Alice), Johnny Depp (O Chapeleiro Maluco), a Rainha Branca (Anne Hathaway) e a Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter). O Tempo (Sacha Baron Cohen) é o novo e temido personagem que tenta impedir Alice de se aventurar pelo passado.
Ela volta para Londres em 1875, depois de uma longa expedição à China, com o navio “Maravilha”, que era de seu pai e do qual agora é capitã. Lembrem-se de que Alice não foi feita para ficar em casa tricotando.
Nas cenas iniciais, uma corajosa Alice salva o navio do naufrágio certo e da pilhagem dos piratas.
Mas parece que, em terra firme, os problemas que Alice encontra são desanimadores. A mãe hipotecou a casa delas e ela terá que entregar o navio para poder ficar com a casa.
Pior, novas expedições não estão no programa dos investidores e, como ela é sócia minoritária, só lhe resta trabalhar no escritório e receber a pensão do pai. Que pesadelo para uma feminista como Alice...
Pobre dela. E, como o mundo é cruel, dessa vez ela escolhe entrar no espelho e reencontrar os personagens de sua infância no País das Maravilhas.
O que acontece quando somos surpreendidos pela vida com uma realidade que ultrapassa nossa habilidade de lidar com ela? Algumas pessoas enfrentam tal realidade com as armas que possuem, outras preferem fugir. Criam uma nova realidade ilusória. Parece que esse foi o caminho que Alice escolheu.
Mas as coisas não vão bem no País das Maravilhas. Tudo continua tão bonito como sempre foi mas o Chapeleiro Maluco está morrendo de tristeza. Quer encontrar sua família, mas não sabe como. Todos estão preocupados com ele.
Claro que, em outra leitura, o País das Maravilhas é o mundo interno de Alice, povoado com seres que são parte dela e que, portanto, vivem os problemas dos quais ela quer fugir no mundo real.
A fantasia é um escape mas deixa entrever o que ela precisa enfrentar. Ajudando seus “pedaços de mim”, Alice estará se ajudando e colocando ordem em seu íntimo, para recuperar as forças que perdeu com a depressão.
E Alice vai aprender, navegando nas ondas e túneis do tempo, as lições que cada uma de suas partes tem que aprender com o passado e assim sair do surto e superar as dificuldades atuais em sua vida.
É um filme para adolescentes e adultos. Crianças podem ver também mas mais para se distrair com as belas imagens.
Tudo é muito colorido, há humor nos personagens, mas como são muitos, a trama proposta pelo roteiro é difícil de ser seguida. Então, o que mais encanta o espectador são as imagens deslumbrantes em 3D, os personagens vivos e os desenhados.
Se, no filme de Tim Burton, Alice lidava com o luto pela morte do pai e saia do buraco do coelho mais sadia e forte com a experiência, nessa nova versão, mais velha, ela parece mais surtada do que nunca, enredada em delírios e sonhos alucinantes.
Dá até uma certa pena ver todo o esforço e energia desperdiçados na movimentação maníaca de Alice para finalmente, sobreviver como ela quer, capitaneando o “Maravilha” como seu pai, seu herói para sempre.