“Nise – O Coração da Loucura”, Brasil,
2016
Direção: Roberto Berliner
Quem será essa senhora de tailleur bordô, coque, salto
baixo e bolsa, que bate com delicadeza na porta alta de ferro? Ninguém aparece.
E ela, persistente, bate com um pouco mais de força. Nada. Então, com uma força
surpreendente, ela esmurra a porta, até que alguém vem
abrir.
Esse início do filme apresenta Nise da Silveira
(1905-1999) à plateia que ainda não a conhece. Dá para notar que ela é uma
pessoa que opta primeiro pela educação mas que, se preciso for, usa até a força
para conseguir o que quer.
E foi preciso muita delicadeza e força mescladas para
conseguir realizar o trabalho que ela fez no Centro Psiquiátrico Nacional, no
Engenho de Dentro, depois que saiu da prisão da ditadura Vargas, acusada de ser
comunista, onde ficou de 1934 a 1936.
Era um tempo no qual se confundia hospital psiquiátrico
com prisão. Médicos e enfermeiros eram carcereiros e agentes de punição. O medo
andava junto com a sujeira e o abandono, nos corredores e enfermarias daquele
hospital.
A dra Nise (Gloria Pires, magnífica), única mulher entre
os psiquiatras, foi logo afastada da prática clínica porque não concordava com
lobotomias e eletrochoques. Acabou no lugar menos frequentado do hospital e com
quase nada de verba, o STO, Setor de Terapia
Ocupacional.
Ao chegar no local, cheio de lixo, ela arregaçou as
mangas e começou o seu trabalho com balde e vassoura, ajudada por uma enfermeira
de boa vontade.
Tudo limpo, ela convida os clientes (“pacientes somos
nós que temos de ser com eles”), que vagam pelo pátio de terra, uns nus, outros
vestidos em farrapos, para entrar:
“- Deixa que eles façam o que quiserem”, diz para Ivone,
a enfermeira.
Aos palpites repressores do enfermeiro Lima (Augusto
Madeira), ela retruca:
“- Cala a boca! O que eles falam aqui é matéria prima de
nosso trabalho. Ouça. Observe. E cala a sua boca!”
Incansável, ela pesquisa prontuários e ousa abrir o
“cofre”, a solitária onde Lucio, visto como capaz de matar, está encerrado há
dias.
Traz quem pode para o pátio e um jogo de bola é o início
da aproximação entre ela e aquelas pessoas evitadas.
Logo, Nise consegue a ajuda de Almir (Felipe Rocha) que
vai sugerir um novo caminho. Traz tintas coloridas e cavaletes com telas e assim
começa o que hoje é o legado do Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado no
Rio de Janeiro em 1952.
Seguidora de Jung, a quem escreve relatando seu
trabalho, Nise acreditava na busca de uma linguagem que pudesse trazer à tona
tudo aquilo que jazia no inconsciente de seus clientes. Via nas telas a história
de cada um. Do caos inicial surgia o começo de uma integração. As imagens
pintadas organizavam o que antes não tinha voz.
Mario Pedrosa (1900-1981), interpretado por Charles
Fricks, o maior crítico de arte da época, vê artistas nos clientes de Nise e
acontece a exposição “Os Artistas de Engenho de
Dentro”.
A dra Nise da Silveira, em pessoa e com bom humor, fecha
o filme e nos deixa com os olhos marejados.
Alguém do meu lado no cinema
diz:
“Ah! Se existissem mais pessoas como
ela...”
O excelente roteiro, baseado no livro “Nise – Arqueóloga
dos Mares” de Bernardo Horta, a direção inspirada de Roberto Berliner, a trilha
sonora brilhante de Jaques Morelembau, a fotografia impecável de André Horta e
um elenco harmonioso, ajudam a contar a história dessa grande
mulher.
Imperdível.
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