segunda-feira, 30 de março de 2015

Dívida de Honra


“Dívida de Honra”- “The Homesman”, Estados Unidos, França, 2014
Direção: Tommy Lee Jones

Na conquista do Oeste, que ampliou o território dos Estados Unidos do Atlântico ao Pacífico, heróis já tiveram contadas suas histórias. Mas e os bastidores da conquista?
Tommy Lee Jones, em seu segundo longa como diretor e ator, vai lembrar das heroinas, as mulheres que, com muita coragem, ajudaram os pioneiros a estender as fronteiras de seu país. Inspirado no livro de Glendon Swarthout, “Dívida de Honra” traz, para o centro da cena, também as vítimas desse episódio da História dos Estados Unidos, que já produziu tantos filmes de faroeste. Nenhum como este.
Em uma paisagem inóspita, de uma beleza rude, aquela mulher de 31 anos, Mary Bee Cuddy (Hilary Swank, que ganhou um Oscar por “Menina de Ouro”2004), trabalhadeira e corajosa, cuida sózinha de sua fazendinha. Ela é primorosa em tudo que faz. Veio de Nova York e tem saudades das árvores de lá. Mas, não reclama de trabalho. Suspira apenas por um marido, uma mão para ajudá-la, um companheiro para partilhar de sua cozinha caprichada e escutar a voz afinada que se acompanha com um piano imaginário, com teclas desenhadas sobre um pano.
A pequena comunidade, no entanto, não oferece candidatos que a apreciem. É considerada chata e mandona. Aqueles eram tempos em que lugar de mulher era no trabalho extenuante, parideira para dar filhos aos homens grosseiros e brutos.
Não é de se espantar que as mais frágeis não sobrevivessem ou enlouquecessem. E o que fazer com essas loucas?
Mas Mary Bee era forte e não se deixava amestrar, além de possuir um coração generoso. Quando não aparece um homem disposto a levar as pobres loucas de volta para as famílias delas, ela se propõe a fazer a viagem. Diga-se de passagem que o trajeto podia levar cinco semanas, dependendo do que se cruzasse pelo caminho. O perigo espreitava, seja sob a forma de homens sem escrúpulos e índios que odiavam os brancos e, ainda por cima, fome, sede, frio.
Quis o destino que ela encontrasse George Briggs (Tommy Lee Jones), o salvasse da morte e com isso obrigasse ele a acompanhá-la no transporte das loucas, a tal “dívida de honra”.
Um filme que mostra a tragédia feminina mas também a coragem e determinação de Mary, aliadas a uma alma nobre e gentil, que fará com que aquele homem, igual aos outros, queira ser melhor.
Tommy Lee Jones dirige seu filme com o talento de quem conhece a arte do cinema e, como ator, traz humor e expectativas interessantes para o seu personagem.
“Dívida de Honra” é um filme a que se assiste com emoção, graças ao show de interpretação do elenco luminoso, onde, de quebra, vemos Meryl Streep , numa gloriosa ponta.

terça-feira, 24 de março de 2015

Mapas para as Estrelas


“Mapas para as Estrelas”- “Maps to the Stars”,Canadá, Estados Unidos, França, Alemanha, 2014
Direção: David Cronenberg

Narcisismos exacerbados, horror à idade, auto-medicação com drogas legais e abuso das ilegais, bebida demais, falta de disciplina, auto-engano, sexo como moeda de troca, desrespeito aberrante com os outros. Tem tudo isso em “Mapas para as Estrelas”.
O que pode acontecer quando muitos querem o mesmo espaço, que é reduzido, exigem o que desejam e usam de artimanhas perversas para derrubar competidores?
O cenário é bem contemporâneo e combina com o daqueles que disputam o poder, em todas as áreas onde se briga por ele.
Então David Cronenberg não fala só de Hollywood em “Mapas para as Estrelas”? Não, porque a fábula “dark” que ele conta, se ajusta a muitas arenas frequentadas pela natureza humana. Extrapola o mundo do cinema. E, por isso, merece a nossa atenção redobrada.
Claro que a linguagem usada é a da ironia, forçando nas tintas e transformando tudo em ópera.
A história envolve Agatha (Mia Wasikowska), uma garota psicopata que chega a Los Angeles procurando algo. Parece que é aquele mapa que mostra onde moram os astros do cinema. Mas, não se enganem. Ela sabe muito bem onde estão aqueles que procura.
E vai atrás.
Carrie Fisher (filha de Debbie Reynolds, que interpreta a si mesma), ficou amiga de Agatha no Facebook e vai colocá-la como assistente de Havana (Julianne Moore, maravilhosa), atriz decadente, obcecada em superar a mãe, que também era atriz e morrera ainda jovem, num incêndio.
O fogo também marcou Agatha na face e no corpo, num acidente na juventude. Ela usa compridas luvas negras e meias e botas que escondem essas cicatrizes. Ninguém imagina o que ela está tramando.
Havana, que está paranóica, drogada com remédios fortes, tem delírios com a figura da mãe, que aparece para ela em todos os lugares, maldizendo-a. Alucinada, ela consegue o papel que foi da mãe, numa refilmagem, às custas de uma tragédia.
Enquanto isso, Agatha, sua assistente, aproxima-se da execução de seu plano macabro. A auto-destruição ronda aquelas duas.
No fim, sobra pouco. A Cidade dos Anjos só tem decepção e morte para oferecer a quem deseja o impossível.
Julianne Moore foi escolhida como a melhor atriz do Festival de Cannes 2014, por sua interpretação no filme de Cronenberg. Aliás, ela é a estrela do momento, já que ganhou todos os prêmios da estação, incluindo o Oscar e o Globo de Ouro, no qual obteve dupla indicação por “Mapas para as Estrelas”e “Para Sempre Alice”.
O diretor canadense David Cronenberg, 72 anos, sempre fez filmes originais e estranhos. Basta lembrar alguns: “A Mosca”1986, “Gêmeos – Mórbida Semelhança”1988, “M. Butterfly”1993, “Crash”1996, “Um Método Perigoso”2011, “Cosmópolis”2012.
Em “Mapas para as Estrelas” parece querer mostrar aquilo que seus personagens não querem ver: a realidade.
Porque só com ela contamos. Quem não a encara, alucina.

sábado, 21 de março de 2015

Terceira Pessoa


“Terceira Pessoa”- “Third Person”, Bélgica, França, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, 2013
Direção: Paul Haggis

É um filme intrigante. Muitos personagens, em três cidades diferentes. Como todo filme coral, sabemos que as histórias vão se entrelaçar. Em “Terceira Pessoa”, isso acontece de uma forma original.
Assim, quando tudo começa em Paris, o escritor americano, ganhador do prêmio Pullitzer, Michael (Liam Neeson, perfeito no papel) espera Anna (Olivia Wilde, luminosa), sua amante, que vem encontrá-lo em seu hotel. Ele tenta escrever seu novo livro mas algo o perturba profundamente.
Michael e Anna fazem um jogo de gato e rato, com ironias mútuas, fugas e ardentes cenas na cama. E a mulher de Michael (Kim Bassinger) conversa muito com ele no celular, irritando Anna.
Em Roma, outro americano, Scott (Adrian Brody), um espião do mundo da moda que compra desenhos roubados de marcas famosas, envolve-se com uma bela cigana (Moran Atias) que precisa de dinheiro para salvar sua filha pequena das mãos de um cafetão. Mas por que ele volta e meia ouve uma mensagem antiga no seu celular? É de uma menina que o chama de pai.
E, em Nova York, Julia (Mila Kunis), uma atriz desempregada luta com o ex-marido (James Franco) na justiça para conseguir o direito de visita a seu filho, com a ajuda de uma advogada (Maria Bello). Estranhamente, essa mulher não consegue mergulhar na própria piscina. O que foi que aconteceu de tão terrível entre Julia e seu filho?
De repente nos damos conta de que, em todas as histórias há crianças em perigo. E aí nos lembramos de ter ouvido um menino dizendo “Olhe-me!” no início do filme, o que mexe demais com Michael, o escritor. Ele se lembrou da frase e a ouviremos ser repetida outras vezes, durante o filme.
“Terceira Pessoa” põe o espectador que gosta de “puzzles”, aquele jogo de pecinhas que se encaixam formando uma imagem, a procurar relações entre as histórias. Outros, poderão se desinteressar e achar que o diretor e roteirista, Paul Haggis, complicou demais e que o filme pula de lá para cá apenas para confundir.
É bom dizer que há um segredo na vida de Michael que será esclarecido no final, que é a raiz de seus bloqueios como escritor, sua culpa e depressão.
A uma certa altura, lemos no computador do escritor uma frase solta:
“Ele escreve para contar mentiras a si mesmo.”
Michael escreve sempre na terceira pessoa do título do filme. O “eu” está ausente. Não consegue encarar sua culpa na tragédia que aconteceu.
Paul Haggis, 62 anos, que já ganhou dois Oscars por seu filme “Crash” , melhor filme e roteiro original em 2006, em “Terceira Pessoa” não consegue o mesmo feito, apesar do excelente elenco e das belas tomadas em cidades fotogênicas. Mas o filme agrada a um certo tipo de público que gosta de filmes mais elaborados e toques de pecado.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Os Dois Lados do Amor


“Os Dois Lados do Amor”- “The Disappearence of Eleanor Rigby: Them”, Estados Unidos, 2014
Direção: Ned Benson

Felizes como duas crianças, eles fogem do restaurante sem pagar a conta do jantar, rindo muito e vão fazer amor no parque.
Por isso levamos um choque, quando a vemos, com um rosto sem brilho e olhos baixos, largar a bicicleta e correr para o que adivinhamos ser a murada da ponte. Não vemos a queda mas o mergulho e o resgate de seu corpo quase sem vida.
No hospital, braço na tipoia e inerte na cama, seu rosto sem viço é olhado com um misto de simpatia e medo.
Eleanor (Jessica Chastain) ganhou esse nome do pai, Julian Rigby, fã dos Beatles. E agora, ironicamente, ela faz mesmo parte da canção que pergunta para onde vão todas essas pessoas solitárias. Não foi enterrada ainda, como a Eleanor Rigby de Lennon e McCartney, mas é como se já estivesse morta e então, inventa outra pessoa para ficar no lugar da outra que jaz com o seu passado. Ela está vazia.
Connor (James McAvoy), o marido e ela, voltam para as respectivas casas paternas.
El, como todos a chamam em casa, cortou o cabelo ruivo bem curto. Parece mesmo outra pessoa, menos pela aparência do que pela ausência da antiga leveza.
Volta para a universidade, onde encontra uma professora (Viola Davis, ótima) que a trata como um ser humano normal.
“- Você deve odiar os Beatles”, diz brincando quando ouve seu nome.
Será que há alguma chance para Eleanor? Por que ela não quer mais ver o marido? O que foi que aconteceu com eles?
Deve ter sido algo muito duro... Percebe-se a raiva que ela tem, por baixo da depressão que a cobre como um manto pesado e transparente, que serve como uma barreira entre ela e o mundo.
Mas, como cita um amigo de Connor: “O amor é um campo de batalha.” E a camera segue El, o marido também mas não se aproxima.
“- Nenhum de nós sabe como ajudar você”, diz o pai dela (William Hurt). E acrescenta: “A tragédia é como um país estrangeiro. Não conhecemos a lingua dos nativos.”
A mãe (Isabelle Huppert), sotaque francês, sempre com um copo de vinho na mão e distante, também não é de grande auxílio para a filha. Ela se abre um pouco mais com a irmã, mãe solteira.
Para Connor, também não há colo com aquele pai (Ciarán Hinds), bem sucedido e que não o compreende.
Mas, aos poucos, uma frase aqui, um olhar acolá, nos damos conta do que aconteceu. E, finalmente, entendemos porque Eleanor Rigby desapareceu.
O diretor e roteirista Ned Benson rodou dois filmes em 2013: “Her”e “His” contando a história sob o ponto de vista de cada um. Mas depois juntou os dois no “Them”, aquele que vemos aqui. Seu primeiro longa.
Jessica Chastain , que também produziu o filme, faz de sua personagem uma mulher de verdade e mostra porque é uma das melhores atrizes da atualidade. James McAvoy a segue de perto.
O filme é sensível, com uma fotografia noturna iluminada por uma luz dourada e uma trilha sonora de bom gosto.
Quase que tocamos a fragilidade de Eleanor e Connor mas também nos encantamos com a força inesperada que há dentro deles.
O amor, que estava lá o tempo todo, vai poder ressurgir do seu inverno?

terça-feira, 17 de março de 2015

O Amor é Estranho



“O Amor é Estranho”- “Love is Strange” Estados Unidos, França, Brasil, Grécia, 2014
Direção: Ira Sachs

Quando será que o amor é estranho?
No caso daqueles dois homens, já maduros, cercados por amigos e família, que se casam em Nova York, na frente de um juiz, só preconceituosos falariam assim.
Juntos há quase quatro décadas, o pintor Ben (John Lithgow) e o professor de música George (Alfred Molina), se amam de verdade. Foram até inspiração para o casamento de Kate( Marisa Tomei). Ela conta com graça, na festa, para todos ouvirem, que foi pedida em casamento por causa dos dois. O clima de carinho e parceria em que eles viviam, inspirara o pedido de Elliot, sobrinho de Ben.
Eles são queridos por todos e parecem felizes.
Mas aqueles que acham esse amor estranho, pecaminoso até, vão conseguir fazer com que a felicidade de Ben e George se transforme numa separação forçada.
George, por causa da exposição de sua relação com Ben, oficializada pelo casamento, perde o emprego na escola católica onde lecionava música e era maestro do coral. E o dinheiro deles não dá mais para manter o apartamento em que viveram juntos por 20 anos.
Os dois passam a depender da generosidade alheia e vão viver separados. Ben na casa de Kate e Elliot, dividindo o quarto com o filho deles, o adolescente Joey. E George vai para o sofá na casa dos amigos, policiais gays, onde a vizinhança faz uma festa todo dia até altas horas.
É a ocasião para o diretor Ira Sachs, 49 anos, co-roteirista com o brasileiro Mauricio Zacharias, falar de temas como a intimidade, convivência forçada, família e sucessão de gerações. Tudo em torno à separação do casal, com os problemas vividos por eles e por aqueles que os recebem em suas casas.
Porque “O Amor é Estranho” centra-se no casal Ben e George, mas mostra também a vida de outros casais à volta deles. E, apesar dos pesares, o casal separado por força das circunstâncias, mostra algo difícil de se ver. Há entre eles uma ternura rara, um prazer na companhia um do outro, que os dois atores, escolhidos pelo diretor, nos transmitem com brilho.
E percebemos que o amor pode ser estranho em outro sentido. Porque é um sentimento que enfrenta dificuldades e se fortalece, resistindo aos dissabores e, fazendo de cada encontro de George e Ben, uma fruição intensa.
Mais. Quem é amado e ama como aqueles dois, fará sempre a diferença por onde passar. Ben, por exemplo, ajuda Joey (Charlie Tahan) a ter coragem para viver o amor, como vemos na bela cena final do filme.
É quase nada ou ao contrário, é muito o que vamos ver nesse filme comovente, que mostra acontecimentos da vida, ao som das românticas peças para piano de Chopin.
Nada piegas, nem escandaloso, “O Amor é Estranho” é um filme primoroso.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Para Sempre Alice


“Para Sempre Alice”- “Still Alice” Estados Unidos, França 2014
Direção: Richard Glatzer e Wash Westmoreland

Pode acontecer com qualquer um.
Mas quem vê aquela família que celebra o aniversário de 50 anos de Alice, mãe de Anna e Tom, que o marido brinda como a mulher mais linda e inteligente que ele conhece, não vai pensar em drama.
Uma das filhas, Lydia, não está presente porque mora em Los Angeles. Ela tem um teste para um papel na TV e não veio para Nova York.
Sente-se uma leve reprovação na voz de Alice quando dá essa notícia mas ela é afável, delicada e firme, não deixando o ar festivo do jantar sofrer qualquer abalo.
Alice Howland (Julianne Moore) é a mais jovem professora de Linguística da Universidade de Columbia. É referência em seu campo de estudo. Bonita, longos cabelos ruivos, pequena e bem cuidada, ela gosta de cozinhar e parece contente com sua vida. Por isso impressiona quando ela tem um branco durante uma palestra.
“- Eu sabia que não deveria ter bebido aquele champagne”, brinca ela, enquanto recupera a palavra perdida.
Mas quando se perde durante uma corrida no parque, vemos pânico em seus olhos. Curvada, respira profundamente para situar-se mas está mergulhada em confusão.
Auto-suficiente, Alice vai ao neurologista sozinha. Ele escuta seus sintomas, faz alguns testes e pede uma ressonância e depois um PET-SCAN. Mas não há dúvida. É Alzheimer. Um tipo raro e familiar.
E começa uma descida aos infernos para Alice:
“- Parece que meu cérebro está morrendo e tudo aquilo pelo qual trabalhei a vida inteira está indo embora...”
A família também sente o baque, o marido (Alec Baldwin) se impacienta e ela tem vergonha de ter essa doença que faz dela um ser no qual ninguém mais a reconhece.
A impotência e a dor estão nos olhos expressivos de Alice quando diz:
“- Eu queria ter câncer. As pessoas são solidárias. Usam fitas rosa por você, levantam fundos...”
Julianne Moore, 54 anos, ganhou todos os prêmios de melhor atriz, inclusive o Oscar, por esse papel. Mereceu, porque conseguiu expressar toda a dor psíquica que a doença traz com sua postura, seu olhar que busca e não encontra o que procura, a impotência em seus ombros caídos, a fragilidade extrema em que se encontra uma pessoa que vai se perdendo, morrendo em vida.
O filme tem uma particularidade. Dirigido por um casal gay, um dos diretores e roteirista, Richard Glatzer, enfrentava uma doença degenerativa incurável, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), enquanto co-dirigia o filme. Um drama real acontecia por detrás das cameras. Ele não conseguiu resistir à doença que o levou no dia 10 de março, enquanto eu escrevia essa resenha. E talvez por isso, evitou-se o tom lacrimoso e o foco do filme está na atitude corajosa com que Alice lida com as perdas inexoráveis.
Lydia (Kristen Stewart), a única dos filhos de Alice que não fez o teste genético para saber se tem a doença, é também a única que demonstra generosidade com a doença da mãe. A atriz vem crescendo nos últimos filmes que fez,  contracenando com Juliette Binoche e agora com Julianne Moore.
“Para Sempre Alice” é um filme pequeno e belo, com uma grande atriz que nos toca com a interpretação de um ser humano que luta para viver mas que aceita o seu destino, com uma nobre resignação e não desiste do amor, mesmo que não haja mais palavras para dizê-lo.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Blind


“Blind”- Idem, Noruega, 2014
Direção: Eskil Vogt

Ingrid (a talentosa Ellen Dorrit Petersen) apresenta-se na tela como uma mulher solitária. Alta, pele muito branca, olhos de um azul escuro, rosto nórdico, cabelos lisos louríssimos. Ainda jovem, senta-se num apartamento despojado, perto da janela. Tem computador e aparelho de som a seu lado.
Quando começa a narrar em “off” sua cegueira, não o faz para lamentar-se. Descreve o que aconteceu. A mancha no olho, a visita ao especialista, o diagnóstico.
“- Dizem que minha capacidade de visualizar vai desaparecer porque o nervo óptico vai definhar sem novas impressões. Mas também disseram que eu posso retardar o processo me exercitando todo dia.”
Lembranças, associações, desejos, conflitos, medo. Tudo isso vai entrar em cena.
Presa no apartamento por sua fobia, a princípio, como não vê, não quer ser vista.
Demora um pouco para o espectador perceber, mas a mente observadora e criativa de Ingrid vai abrindo espaços, através das histórias que ela conta para si mesma. Essas narrativas aparecem visualmente na tela, assim como aparecem na mente de Ingrid. Estamos dentro da cabeça dela, vendo o que ela imagina.
Ingrid encontrou sua Sherazade e as histórias vão sendo escritas no computador, pensadas e mesmo sonhadas.
“- Quando sonho, posso enxergar. Aí acordo pensando que vou voltar a ver e não...”
Para combater a solidão e a depressão, a libido de Ingrid vai ajudá-la a encontrar imagens e, em seu mundo interno, personagens se movimentam.
Há pornografia, sexo comum, voyeurismo, amizade, maternidade. Os cenários são os que ela conhecia antes de ficar cega. O humor começa a aparecer e ela sorri sózinha.
Porque ela sente que o casamento está em crise, o marido Morten (Henrik Rafelsen) é o centro de sua atenção.
“- Agora ele vai chegar, contar como foi o dia dele e perguntar do meu. Quer saber se eu saí. Não fala nada mas deve ficar decepcionado comigo...”
A auto-estima de Ingrid está abalada mas ela vai aos poucos ficando mais confiante, transmutando paranoia em desejo e, ao invés de procurar um outro mundo para o marido, longe dela, introduz o homem que ela ama em suas fantasias.
“- Às vezes eu sinto que ele está aqui no apartamento. Ele diz que não é para eu ficar imaginando coisas... Mas o piso faz barulho...Ele poderia estar sentado, calado e me observando...”
A luta de Ingrid para conseguir viver na escuridão, sair da depressão e o desejo de amar e ser amada, são traduzidos em imagens fantasiadas e vivências na realidade, às vezes difíceis de serem diferenciadas, devido à montagem impecável.
O roteiro é fascinante, escrito pelo próprio diretor, norueguês, que já nos envolveu com o roteiro de “Oslo – 11 de agosto” de 2011. Esse é o primeiro longa de Eskil Vogt, 40 anos,  o que aponta para uma carreira brilhante no cinema.
Elogiadíssimo pela crítica e premiado pelos festivais por onde passou, “Blind” é um filme raro, que provoca o espectador, para que ele possa refinar sua sensibilidade.
Uma experiência enriquecedora. 

segunda-feira, 2 de março de 2015

Força Maior


“Força Maior”- “Force Majeure”, Suécia, 2014
Direção: Ruben Oslund

Montanhas altas cobertas pela neve fresca da manhã e o sol que faz tudo cintilar são o cenário ideal para aquela família sueca, em férias nos Alpes franceses.
Um fotógrafo aparece e faz o grupo familiar, meio constrangido, encenar união, afeto e carinho:
“- Juntem as cabeças! Sorriam!”
Esse ritual faz parte do pacote das férias, que a mãe Ebba (Lisa Loven Kongli) explica para outra hóspede do hotel:
“- Meu marido tem trabalhado muito, então achamos bom sair alguns dias com as crianças.”
E, na segunda manhã, lá vai outra vez a família para as pistas, o pai sempre na frente, seguido pelo menino menor e a menina e a mãe atrás, protetora.
Hora do almoço, eles relaxam no terraço do restaurante, ao sol. É quando acontece algo inesperado.
Numa estação de esqui como aquela, todos sabem que os pisteiros detonam avalanches com dinamite, em lugares onde as pessoas não esquiam. Por isso, todos no terraço sacam seus celulares para fotografar aquele espetáculo inusitado, bem na montanha em frente. Nada parece perigoso mas fantástico.
A neve desce pela encosta, avolumando-se e a avalanche não para mas continua vindo, assustadoramente, para cima dos turistas. Alguns já se levantam das cadeiras e correm.
Ebba grita pelo marido Tomas (Johannes Kulnke), agarrada aos filhos. Em meio à neblina provocada pela nuvem de neve que os atingiu, percebemos que Tomas não está ali.
Passado o susto, a neve assenta e o sol já brilha e os que correram voltam para seus lugares, aliviados.Tomas está entre eles e parece não dar-se conta do olhar de Ebba.
“- Eles sempre controlam muito bem essas situações. Não havia perigo, afinal...”desconversa Tomas.
Mas o estrago já estava feito. Ebba olha para o marido como se não o reconhecesse. Onde está o protetor, pai de seus filhos e amor da vida dela?
Aquela quase-tragédia na verdade fez desmoronar a imagem que tanto Ebba como o próprio Tomas faziam do papel do pai e marido.
Pior. Tomas parece evitar o contato com o que aconteceu. Sua fragilidade emergiu à sua revelia. Sua auto-estima vai sofrer uma queda brutal.
E o que eram férias prazerosas transformam-se num pesadelo. Questionadas as ilusões que cada um do casal tinha a respeito do outro, agora são quase estranhos. Os filhos assustam-se com o que veem acontecer e sentem-se ameaçados.
Mas, na verdade, quem é que pode dizer o que faria na mesma situação? O interessante de “Força Maior” é que o diretor e roteirista, Ruben Oslund, 40 anos, nos coloca pensando nisso. Tanto na fuga de Tomas como na reação de Ebba.
Trata-se aqui de questionar o que se espera do outro e na reação punitiva da decepcionada sobre o que decepcionou mas que nada pode fazer, porque já aconteceu o que nem ele previra.
“Força Maior” é um filme inteligente e questionador. Ganhou o prêmio do júri na mostra paralela “Un Certain Regard”, no Festival de Cannes 2014 e merece ser visto.