sábado, 29 de fevereiro de 2020

Você Não Estava Aqui



“Você Não Estava Aqui”- “Sorry we missed you”, Inglaterra, 2019
Direção: Ken Loach

Você já pensou em como funciona o nosso atual sistema de entregas rápidas? Claro que do ponto de vista de quem é o comprador, não há maiores queixas. Inclusive num cenário muito competitivo só sobrevive quem consegue fazer o que promete quem vende.
Esse novo sistema é o foco do novo filme do diretor britânico Ken Loach, 83 anos, um dos cineastas mais coerentes em sua produção cinematográfica. Ele ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2006 por “Ventos da Liberdade” e sua segunda em 2016 por “Eu, Daniel Blake”. Quem já conhece o cinema dele sabe que seu objetivo é sempre mostrar para os espectadores problemas relacionados às condições de vida da classe operária e trabalhadora.
Aqui você vai ver o ponto de vista do entregador sobre seu próprio trabalho. E acompanhar sua desilusão sobre o sonho de não ter patrão, fazer seus próprios horários e ter mais tempo para a família.
Em “Você Não Estava Aqui” ele nos coloca vivendo com uma família que, depois da crise de 2008, não consegue se aprumar financeiramente. Eles se amam, pai e mãe são um casal afetuoso e há um filho adolescente e uma menina de 11 anos.
Abby, a mãe (Debby Honeywood), trabalha como cuidadora de idosos e deficientes que precisam de ajuda porque moram sozinhos. Ela é carinhosa e competente e tem muita paciência e compreensão com seus clientes.
Por causa de sua dedicação, muitas vezes chega tarde em casa e tem que orientar sua filha sobre o jantar pronto na geladeira. Quando chega, sente-se culpada porque vê a filha esperando por ela, bem depois da hora em que deveria estar dormindo. A escola começa cedo.
Num desses dias, Ricky (Kris Hitchen) e Abby conversam no jantar sobre a dificuldade de encontrar emprego. É aí que o marido pede à mulher que deixe ele vender o carro dela. O plano é empregar-se como autônomo numa empresa de entregas rápidas. Para isso teria que dar a entrada para comprar a prestações a van que é o veículo exigido pela empresa.
Ricky imagina que vai ser vantajoso não ter patrão, poder fazer seus próprios horários e finalmente poder pensar em economizar para a casa própria.
Abby fica desanimada porque seu carro é instrumento de trabalho. Muitos clientes moram longe. Mas ela se sacrifica e vai pegar vários ônibus todo dia. Talvez chegar mais tarde ainda à noite em casa.
E, infelizmente, vendido o carro e conseguida a última vaga existente, Ricky percebe que se enganou com as condições de trabalho. Não se leva em conta qualquer problema. Atrasos em entregas são multados, não importando o caos do trânsito. Uma maquininha impõe horários e o cliente pode seguir o trajeto da mercadoria do galpão até sua casa. Perder essa maquininha significa ter que pagar 1.000 libras e faltas sem que haja substitutos custam 100 libras para o entregador. Não há a quem recorrer se o problema for de saúde.
Ou seja, o ritmo e as regras são desumanos. E Ricky não vai ter tempo de ver a família. Trabalhará 14 horas seguidas e o banheiro será uma garrafa.
A família toda vai sofrer. Ken Loach faz a gente parar para pensar no que sustenta o nosso modo de vida contemporâneo. Somos mais felizes às custas do sofrimento de outros. Qual o preço da infelicidade dos que prestam serviços essenciais aos outros e são tratados dessa maneira?
O filme não vai mudar o mundo mas pode levar muitos de nós a pensar no que nunca passou pela nossa cabeça.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020



“Luta por Justiça”- “Just Mercy”, Estados Unidos, 2019
Direção: Destin Daniel Cretton

Por que a mãe de Brian Stevenson (Michael B. Jordan) se preocupa quando o filho, formado em Direito por Harvard, resolve mudar-se para o Alabama no final dos anos 80? O que ela temia? Simples. O racismo cruel que envenenava a mente das pessoas, principalmente naquela parte do país, contra os negros.
E Bryan conta para ela como se emocionara ao visitar os presos do corredor da morte na Penitenciária Holman. Todos pretos. Sem assistência jurídica eficiente. Resignados na fila da cadeira elétrica.
Ele fica indignado. E, com o auxílio de uma psicóloga branca (Brie Larson), vai lutar para salvar os injustiçados através de um escritório de Iniciativa Judicial Igualitária, com verba federal e sem fins lucrativos.
Um dos casos emocionara principalmente o advogado. Conhecido como Johnny D. (Jamie Foxx) era da geração de Bryan e tinham frequentado a mesma igreja. Walter McMillian, tinha sido condenado sem provas cabais, apenas por uma testemunha duvidosa, pelo assassinato de uma moça branca de 18 anos.
O promotor (Rafe Spall) não precisou se esforçar muito para o júri condenar o prisioneiro à prisão perpétua, pena mudada para condenação à morte pelo juiz.
Quando o advogado vai até a casa do condenado, encontrar sua família e vizinhos, toda a comunidade tinha certeza de que Johnny D. não cometera aquele assassinato. Pela simples razão que trabalhara às vistas de todos fritando peixe. Não saíra dali. Mas nenhum policial viera perguntar nada a eles.
Bryan então fica convencido da inocência de seu cliente. Fora algemado sem explicações por um policial que olhou com inveja a caminhonete nova dele, que trabalhava duramente como lenhador e o levou para a prisão.
O filme mostra o trabalho dedicado e eficiente do advogado em busca de brechas que invalidassem o processo. Mas é desanimador quando percebe que tudo conspira contra a prova da inocência de Johnny D.
A sociedade branca local pressiona os defensores da lei a fazer “justiça”. Que morra Johnny D.
O filme tem suspense e boas cenas no tribunal. Mas quem se destaca é Jamie Foxx, interpretando um homem que desacredita da própria capacidade de ser defendido por um crime que não cometeu. Cabem a ele os momentos de maior emoção.
Talvez com medo de tudo cair num dramalhão, dada a tremenda injustiça que será cometida, o diretor havaiano Destin Daniel Cretton pecou no oposto. Faltou um pouco mais de indignação.
O racismo se expande hoje em dia mundo afora. As imigrações forçadas por guerras e pobreza acirram os preconceitos. Quando é que vamos entender que o nosso egoísmo está criando um mundo cruel demais?


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A Melhor Juventude



“A Melhor Juventude”- “La Meglio Juventu”, Italia 2003
Direção: Marco Tulio Giordana

A passagem do tempo e o local onde vamos ver os acontecimentos na vida de dois irmãos, Matteo (Alessio Boni) e Nicola (Luigi Lo Cascio), é importante como um gancho para que cada um de nós relembre o que se passou na nossa própria vida, num instante fugaz. Assim, nossa juventude também aparece na tela da nossa mente. Vivemos e revivemos, conforme nossa idade e experiências de vida, essa juventude dos dois personagens principais. E depois a maturidade.
Parece que esse é o maior achado do roteiro de Stefano Rulli e Sandro Petraglia. Emoções, dúvidas, encontros e desencontros, amores, projetos, rompimentos, crises de consciência, sexualidade, tudo que é humano e juvenil vai acontecer na primeira parte do filme por três horas. Na segunda, com mais três horas, os personagens colhem o que plantaram. E a maior ou menor rigidez consigo mesmo, sela o destino dos dois irmãos.
As mulheres são importantes na vida dos dois, embora haja dificuldade de aproximação, insegurança. Numa conversa de Nicola com a mãe, que era professora já idosa, pode ajudar a entender melhor a relação dos dois irmãos com a mulheres:
“- Quando éramos crianças a impressão era de que a senhora gostava mais dos alunos do que da gente...”
A câmera passa pelas belas paisagens italianas mas não se detém nelas, apesar de magníficas. Interessa-se mais pelo rosto dos personagens onde aprendemos a ler o que se passa. Ao longo do filme cria-se uma intimidade entre nós e eles.
Os acontecimentos na Itália, políticos e sociais, no começo dos anos 1960 até o início do novo século, interessam quando envolvem os personagens, como a inundação de Veneza, a morte do juiz Falcone e o massacre cometido pela máfia, as Brigadas Vermelhas e a decadência de Roma.
Se na juventude de Matteo ele quer ajudar Giorgia (Jasmine Trinca) livrando-a do manicômio e do eletrochoque e envolve o irmão na empreitada, há uma ingenuidade própria da idade que quer liberdade para todos. Mesmo que seja para trazer mal para suas próprias vidas.
Já adulto e responsável pela filha Sara, Nicola mostra que aprendeu que a contenção é necessária para que a pessoa não faça tanto mal a si mesma.
O que há de diferente nesse filme é que a sua duração permite aprofundar o conhecimento da psicologia de cada personagem, mesmo sem sabermos o que vai acontecer. Ninguém fica de lado, nem é esquecido.
A trilha sonora esplêndida vai de “Blue Moon” a Freddie Mercury, Mozart e Cesária Évora e viajamos por toda a Itália. Na Noruega, Nicola escreve num cartão para sua irmã mais velha “Tudo é Belo!!!” Perguntado sobre o que mudaria em sua vida, ele responde:
“- Tiraria os pontos de exclamação. ”
O filme foi premiado no Festival de Cannes na mostra “Um Certain Régard” e passa em São Paulo trazido pelo Festival de Cinema Italiano. Quem gosta de cinema não vê as horas passarem.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

O Preço da Verdade



“O Preço da Verdade”- “Dark Waters”, Estados Unidos 2019
Direção: Todd Haynes

É noite. Três adolescentes resolvem tomar um banho no rio depois de uma festa. São surpreendidos por homens que, dentro de um barco, vaporizam algo nas águas onde os meninos estavam se refrescando. Estamos em Parkersburg, Virgínia, na área rural.
“- Malditas crianças! Sumam daqui! ”, gritam os homens.
Um texto na tela conta que o filme se baseia em fatos reais, que apareceram num artigo do New York Times, intitulado “O advogado que se tornou o pior pesadelo da DuPont”.
Quem é esse advogado? É o que o filme de Todd Haynes vai contar. Mas não vai ser de forma escandalosa, apesar de se prestar a isso.
Bob Billot (Mark Ruffallo, ótimo), que trabalhava num importante escritório de advocacia, que atendia grandes empresas, acabara de se tornar sócio, reconhecido o seu esforço no trabalho da firma. Ele é o tipo de sujeito que se entrega de corpo e alma às causas que defende. Tem família, mulher (Anne Hattaway, discreta e competente) e um bebê, que pouco vê, de tanto trabalho que traz para casa.
Mal sabia ele que a causa de sua vida, que vai durar décadas, estava para começar.
Dois fazendeiros o procuram. Um deles, Wilbur Tennant (Bill Camp), conhecia a avó de Billot, moradora próxima da fazenda dele, na cidade natal do próprio advogado, que não fazia alarde de suas origens caipiras.
“- Estão envenenando o rio. Você tem que ver.”
Billot fica incomodado com a situação porque sua firma de advogados trabalha justamente no campo contrário. Defendia as fábricas de produtos químicos. Mas vai com Tennant ao lugar dos acontecimentos, meio a contragosto, mas sem ferir os brios do vizinho de sua avó.
E, para sua surpresa e horror fica estarrecido com a verdade que ele tenta, no início, esconder de si mesmo.
Mas não consegue negar que algo naquele ambiente da fazenda estava matando o rebanho de vacas do fazendeiro. Ao presenciar um surto numa vaca muito magra e estranha e ver os estragos acontecidos nos bezerros que nasciam com malformações congênitas, ele não consegue mais encontrar desculpas. A DuPont estava lançando produtos tóxicos no rio e envenenando o meio ambiente.
Pior, mais tarde ele vai descobrir que o estrago era muito maior e prejudicava a todos. Um produto vendido como uma novidade luxuosa, uma panela antiaderente, chamada Teflon, continha o mesmo produto tóxico que matava as vacas.
Mais criminoso ainda era o detalhe que a DuPont sabia desses perigos e conhecia seus efeitos danosos, produtores de doenças graves em seres humanos e escondia tais dados de seu público consumidor.
Homens como Robert Billot são raros e preciosos. Apesar das dificuldades jurídicas que enfrentou com inteligência, de ter sua vida familiar perturbada pelos acontecimentos e de ter abandonado a firma em que trabalhava e ganhava um bom dinheiro, não hesitou em escolher defender as vítimas, pobres e doentes. E enfrentar, ainda por cima, o fato de que a DuPont era a maior empregadora da região.
Todd Haynes faz um filme denúncia, sem muitas cores nem efeitos especiais. Bastou chamar o talentoso ator Mark Ruffallo e contar uma verdade estarrecedora que toca a toda a humanidade.
Esse exemplo certamente será seguido por outros. Crimes ambientais estão ocupando espaço e a atenção de suas vítimas, todos nós. 


sábado, 1 de fevereiro de 2020

Jojo Rabbit



“Jojo Rabbit”- Idem, Estados Unidos, 2019
Direção: Taika Waititi

Quem não sabe nada sobre o filme leva algum tempo para entender o que se passa. Como? Um menino de 10 anos, fardado, que jura lealdade a Adolf Hitler? E o que é aquilo? O próprio Hitler está no quarto do menino? Conversa com ele e o incentiva?
Claro que é uma comédia. Aliás é mais uma sátira. Mas não como as outras que já vimos. Ao som dos Beatles cantando “I Wanna Hold Your Hand” em alemão, passam na tela cenas reais de multidão e jovens com o uniforme do exército da juventude, o Jungvolk, fazendo a saudação fanática.
O garoto vai ao campo de treinamento nazista, comandado pelo Capitão (Sam Rockwell), um sujeito que esconde insegurança atrás da arrogância. Tem também uma gorda agressiva, Fraulein Rahm (Rebel Wilson) que promete ensinar as meninas a fazer bebês para Hitler e descreve os judeus como tendo chifres e escamas de peixe pelo corpo. À noite, a diversão é queimar livros na fogueira.
Mas de onde vem esse apelido Jojo Rabbit ? Os outros meninos riem e chamam Johannes Betzler assim. Só entendemos quando vemos a cena onde ele se recusa a matar um coelhinho com suas próprias mãos.
Daí em diante compreendemos melhor o objetivo do diretor Waikiki, que faz o amigo invisível de Jojo (Roman Griffin Davies). Ele não pretende só ouvir risos na plateia. Quer fazer pensar como uma criança de 10 anos pode ser levada a acreditar em inverdades tolas, assim como o resto do país:
“- Os judeus são assustadores. Eu mataria um se o visse na minha frente”, diz Jojo a seu único amigo, Yorki (Archie Yates).
“- E como você vai saber que é um judeu? Eles são como nós”.
“- Esqueceu dos chifres que escondem com o chapéu?”
E Jojo precisa da companhia de seu amigo invisível, o próprio Hitler (personagem do próprio diretor Waititi), visto pelo olhar infantil, maneiroso, exagerado, bufão. Sente falta do pai. Ninguém sabe onde ele está. Nem a mãe (doce Scarlett Johansson). Ou assim pensa Jojo.
Nada é o que parece na vida de Jojo. Mas ele vai descobrindo e amadurecendo aos poucos. Leva algum tempo para entender porque a mãe dele abriga Elsa (Thomasin McKenzie), uma judia, escondida no sótão.
Jojo ficou ferido no rosto e na perna, durante um exercício na floresta. Com o amigo invisível tenta jogar uma granada e ela explode em cima dele.
Agora, sentido-se mais inseguro ainda, fica mais tempo em casa. E é aí que vai ocorrer um fato inédito na vida de Jojo. Uma amiga de verdade, apesar de ser uma judia.
Esse contato real com o diferente e o imaginado monstruoso, como tinham ensinado a Jojo, é o que vai fazer a diferença. Elsa é de carne e osso, sem chifres, mais velha do que ele, bonita e inteligente. Ele vai se apaixonar, como a mãe havia dito a ele.
Os momentos mais emocionantes do filme são os que marcam as descobertas das verdades. Ele passa da infância à puberdade durante a Segunda Guerra, da qual foi poupado para viver uma vida com liberdade para dançar, como prega o poeta Rilke que Elsa apresenta para ele.
O filme é uma adaptação do livro de Cristine Leunens, “Caging Skies”, pelo diretor neozelandês, que se diz “o judeu da Polinésia”, e está na lista dos indicados ao melhor filme de 2019, além de mais outras 5 indicações.