segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Castelo de Vidro



“O Castelo de Vidro”- “The Glass Castel”, Estados Unidos, 2017
Direção: Destin Daniel Cretton

Já dizia Tolstoi, o grande escritor russo, na abertura de seu livro “Anna Karenina”: “Todas as famílias felizes são parecidas, as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. ”
A família de Jeanette era tão diferente das outras que as memórias dela viraram best-seller em 2005 e agora, filme de cinema, dirigido por Destin Daniel Cretton, do elogiado “Short Term 12” de 2013.
Brie Larson (que ganhou o Oscar por “O Quarto de Jack”) interpreta Jeanette Walls, a jornalista de fofocas sofisticada e elegante, que vemos sair de um jantar com o noivo (Max Greenfield) e convidados dele, num restaurante de Nova York no fim dos anos 80. No banco de trás do taxi, vê um homem bêbado e uma mulher revirando o lixo na calçada. Seu olhar se transforma e vemos nele horror e mágoa.
Quando o filme faz um “flashback” começamos a entender melhor aquele olhar da jornalista no “New York Times Magazine”.
Tudo que ela conheceu na infância foi uma vida de nômades com os pais boêmios e educação precária em casa, ministrada por Rex (Woody Harrelson, ótimo) um pai alcoólatra e sonhador, por vezes violento, que ela idolatrava. A mãe negligente com os quatro filhos, a pintora Rose May (Naomi Watts), era desligada da realidade e tão doente quanto o marido, com o qual vivia numa “folie à deux” ou seja, uma loucura compartilhada.
Ambos até percebiam o sofrimento dos filhos, mas não sabiam viver de outro modo. Havia sempre uma felicidade possível nos sonhos que o pai alimentava de construir uma casa linda, um castelo de vidro, onde a luz do sol reinaria e traria a vida tranquila e a paz desejadas.
Era grande a frustração das crianças quando, em nome desses delírios do pai deles, muitas vezes iam para a cama com fome. O sonho alternava com o pesadelo.
Mas as crianças são tão dependentes de pai e mãe que, mesmo quando essa relação deixa a desejar, se apegam àquilo que podem ter, porque é melhor que nada. E, quando há uma reversão de papéis, cuidam como podem do pai, como a pequena Jeanette fazia até a adolescência quando saiu de casa. Aliás as atrizes mirins Chandler Head e principalmente Ella Anderson, que interpretam Jeanette na infância, estão brilhantes no papel.
A palavra “aceitação” é usada por Jeanette Walls para falar dos pais. Apesar dos sofrimentos, ela diz que sempre se sentiu “amada e valorizada”.
“O Castelo de Vidro” não descamba para o dramalhão, embora a história beire o inacreditável. E mostra que, quando a realidade afinal pode ser vista cara a cara, aquelas crianças cresceram e se tornaram aquilo que queriam ou podiam, conforme seus talentos, ser na vida.
Ou seja, uma família infeliz ou disfuncional, não é desculpa para o fracasso. Cada um precisa lidar com a própria infância para tornar-se uma pessoa madura que, finalmente, depende de si mesma e de suas escolhas.



quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Lady Macbeth


“Lady Macbeth”- Idem, Inglaterra, 2016
Direção: William Oldroyd

Quando a vemos pela primeira vez, Katherine porta um véu branco de noiva e ouvem-se cânticos de igreja. Mas algo nada romântico cerca aquela mocinha. Está em seus olhos.
E logo a vemos ser vestida com uma camisola pela empregada negra, que pergunta:
“- Está nervosa?”
Ela responde que não e senta-se na cama, à espera do marido.
Quando ele chega, muito tempo depois, é para dizer que ela deve ficar dentro de casa e para ordenar com rudeza que tire a camisola. Nua, ela espera mas o marido joga-se na cama, sem um olhar para ela.
Na cena seguinte a câmara mostra a paisagem de colinas crestadas pelo frio. Ouvem-se trovões.
Aos poucos, o ritual quotidiano se repete, com Katherine num vestido azul-pavão brilhante que contrasta com a falta de cores da casa e dos tons escuros da paisagem. Sentada ereta no sofá com a saia armada pela anágua dura e o corpo apertado num corpete, o longo cabelo preso em tranças num coque, ela espera. E a espera é sempre longa e entediante. Nada acontece.
Mas Katherine, debaixo de sua aparente natureza dócil, esconde algo que vai surgir e florescer nesse ambiente de servidão onde vive.
À noite, nua e olhando para a parede, ouve o marido perpetrar sua rotina de masturbação, sem permitir que ela o encare.
Katherine (a excelente Florence Pugh, de apenas 19 anos) foi comprada como mercadoria pelo pai de seu marido (Paul Hilton), muito mais velho do que ela, sendo o sogro um brutal dono de minas de carvão (Christopher Fairbanks) que só quer que ela dê um herdeiro à família. Ele faz com que ela se lembre desse dever o tempo todo e a trata tão mal quanto trata a empregada negra, Anna (Naomie Ackie, uma atriz que fala com os olhos).
Mas Katherine, debaixo de sua aparente natureza dócil, esconde algo que vai surgir e florescer nesse ambiente de servidão onde vive. A rebeldia começa pela procura de ar puro, algo que a livre do clima claustrofóbico da casa. Agasalhada com seu xale, cabelos ruivos ao vento, ela visita as colinas terrosas de Northumberland, norte da Inglaterra.
O marido mais viaja do que fica em casa, o que faz com que Katherine descubra o alojamento dos empregados e lá encontre Sebastian (Cosmo Jarvis), para quem a sexualidade de Katherine se abre e ele a torna mulher.
Vemos no rosto expressivo da atriz Florence Pugh a transformação ocorrida quando ela se instala no território feminino e exerce livremente seus poderes de sedução.
E é aqui que Lady Macbeth encontra Lady Katherine, pois ambas buscam o poder. O que o marido lhe nega, ela busca por si mesma e começa uma escalada de tomada do poder na casa dos Leicester. Katherine quer sempre mais. E, por isso, vai precisar eliminar aqueles que se interpõem entre ela e seu alucinado desejo de liberdade.
O roteiro foi escrito por Alice Birch que adaptou a novela do russo Nikolai Leskov de 1865, “Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk”. A ação foi deslocada para a Inglaterra vitoriana do século XIX e bem sabemos que não era fácil ser mulher nessa época. E o final foi mudado para se adaptar com mais clareza à psicose desenvolvida por Lady Katherine.
O diretor estreante, William Oldroyd, veio do teatro e conta a história de maneira seca, quase sem música que, quando aparece, faz pesar ainda mais o clima naquela casa dos Lester.
E os personagens secundários e servos são negros, outra mudança na história russa, numa alusão direta ao racismo e classe social, assunto tão candente nos dias de hoje.
Exemplar é a transformação do agredido em agressor, com todas as consequências que isso trouxe para Lady Katherine.
Não é a natureza humana livre que se expressa nela mas o peso da explosão de seus limites.



segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Afterimage


“Afterimage”- Powidoki”, Polonia, 2016
Direção: Andrzej Wajda

Não pode ter sido à toa, nem mera coincidência. O último filme da carreira do importante cineasta polonês Andrzej (1926-2016), teve como assunto a biografia de Wladslaw Strzeminski (1893- 1952), considerado um dos maiores pintores da Polônia.
Criado na tradição da arte russa, ele morreu aos 59 anos como indigente, tuberculoso, sem trabalho, expulso da Associação de Artistas de Lodz onde morava e demitido como professor de arte da Escola Superior de Belas Artes, da qual tinha sido co-fundador.
Mais. A Sala Neoplástica no Museu de Arte de Lodz (criado por ele, o segundo Museu de Arte Moderna da Europa) que exibia suas pinturas e esculturas de sua então mulher, Katarzyna Kobro, foi desmontada por ordem superior no começo dos anos 50.
No entanto, Strzeminski (lindamente interpretado pelo excelente Boguslaw Linda) era um pintor contemporâneo de Malevitch, Kandinsky e Chagal, criador em 1922 da primeira exposição “avant-garde” na Lituânia, então sob domínio polonês.
O artista tinha perdido um braço e uma perna na Primeira Guerra mas, mesmo assim, trabalhava bastante e os alunos adoravam suas aulas, que ninguém perdia, na Escola Superior de Belas Artes. Nelas, ele expunha sua “Teoria da Visão” que depois foi publicada em livro.
O que aconteceu com Strzeminski? A que se deveu a condição decadente como terminou seus dias?
Foi vítima da intransigência dos burocratas do Partido Comunista que abominavam a arte abstrata e a liberdade de escolha do artista, pregando o “realismo soviético”, arte ideológica com o intuito de engrandecer os ideais do comunismo soviético, retratando os precursores e líderes do movimento stalinista e os camponeses e operários, já que para eles toda arte deveria sustentar “as necessidades do povo”. Pura propaganda em cartazes, esculturas e imensos quadros, a maioria beirando o mau gosto.
Essa descida para a morte que o pintor executa com sóbrio rigor e até mesmo, aceitação, dá uma pista sobre a escolha de sua vida como um filme do fim da vida de Wajda.
Ele, que foi exilado político e depois senador pela Polônia, é conhecido por seus filmes engajados. Seu pai foi morto por Stalin e ele viveu a época de que trata o filme, sabendo bem do sofrimento a que os opositores do regime estavam condenados.
Há uma forte identificação entre o cineasta e o pintor, ambos apoiados em sua arte e vivendo seus próprios ideais, sem adesão alguma ao que não julgavam verdadeiro.
Mesmo a maneira com que o roteiro conta a vida do pintor, sem entrar em detalhes sobre sua vida afetiva, parece ecoar o desejo de Wajda de valorizar no homem que ele retrata, mais do que tudo, a atitude, a postura firme frente às convicções que defendeu até o fim.
Depois de mais de 50 filmes (“Cinzas e Diamantes”1958, “Danton”1983) e 90 anos de idade, “Afterimage” é um testamento estóico e sobretudo um libelo intransigente contra a falta de liberdade na criação artística.
Vamos sentir falta do cinema brilhante de Wajda...



segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A Viagem de Fanny


“A Viagem de Fanny”- “Le Voyage de Fanny”,França, Bélgica, 2016
Direção: Lola Doillon

As crianças são sempre as que mais sofrem nas guerras. Perdem os pais ou se separam deles, encontram-se em mãos de estranhos e, mais que tudo, não entendem direito o que está acontecendo.
Em 1943, em meio à Segunda Guerra, na França sob ocupação alemã, famílias judias deixavam seus filhos em internatos, onde achavam que eles estavam mais protegidos. Acima de tudo, ninguém podia saber que eram crianças judias.
Essa é a história real de Fanny Ben-Ami que, quando tinha 12 anos, precisou deixar a escola em Megève, na França e seguir para a Suiça com outras crianças, inclusive suas duas irmãs menores. O país estava nas mãos dos nazistas e os judeus eram delatados e perseguidos.
Tudo era perigoso. Pessoas eram presas por desconfiarem que elas poderiam ser judias. Franceses colaboracionistas se aliavam aos alemães. O que pensar de crianças pequenas, com papéis falsos, que tinham que decorar seus novos nomes e, principalmente, negar que fossem judeus?
É comovente a ingenuidade da irmã menor de Fanny que pergunta a uma certa altura:
“- Mas se ser judeu é ruim por que somos judeus? ”
Uma criança pequena não consegue perceber a maldade e o preconceito por trás do racismo, da inveja ou da mera estupidez, que conduz homens a perseguir outros, seus semelhantes.
Por causa de uma série de contratempos, Fanny (na bela interpretação de Léonie Souchaud) torna-se a responsável pelo grupo, que passa os maiores perigos a caminho da fronteira suíça. Ela é obrigada a amadurecer para tomar decisões das quais dependia a vida de todos.
A originalidade desse filme é não apenas contar a história pelos olhos das crianças mas também deixar ver como elas precisavam ser crianças, mesmo em meio às maiores dificuldades.
Então os maiores, Fanny e Victor, tomam conta dos menores, chamam a atenção deles mas quando é proposta uma brincadeira, todos se deixam levar, na procura de um alívio, mesmo que momentâneo, à tensão que se instala. Uma cena num riacho mostra bem essa necessidade de esquecer por momentos a realidade dura que viviam.
A diretora Lola Doillon, em seu terceiro longa, ficou conhecendo o livro que conta a história de Fanny Bem-Ami, 86 anos e decidiu transformá-lo em um filme.
Claro que foram feitas algumas alterações, já que não se trata de um documentário, mas nada comprometeu a verdade da viagem que Fanny enfrentou, levando não apenas nove, como no filme, mas 28 crianças com ela.
Para ela, o mais importante é que o filme foi feito em memória de todas as outras crianças que também sobreviveram, pelas que não conseguiram e por aquelas que, ainda hoje são sacrificadas pelos conflitos dos adultos.
Lola Doillon conta que ficou chocada quando, durante as filmagens, começaram a aparecer na TV as imagens dos refugiados da guerra da Síria e as crianças inocentes que sofriam. Ninguém se esquece da imagem do menino morto na praia. Era um drama contemporâneo que ecoava o que aconteceu com milhares de crianças judias 70 anos atrás.
É algo que precisa ser pensado para que não se repita nunca mais.

sábado, 12 de agosto de 2017

Valerian e a Cidade dos Mil Planetas

 
“Valerian e a Cidade dos Mil Planetas”- “Valerian and The City of a Thousand Planets”, França, 2017
Direção: Luc Besson

Leve seu olhar para se encantar com o visual dessa fantasia de Luc Besson, 57 anos, diretor francês de “O Quinto Elemento” de 1997 e “Lucy” de 2014.
É o filme mais caro jamais produzido na Europa. Custou quase 180 milhões de dólares mas não foi sucesso de bilheteria nos Estados Unidos. Lá, os críticos não gostaram. Aqui, veem pontos positivos e alguns acham o roteiro muito pueril.
A cena inicial é em 2020 e David Bowie canta “Space Oddity” enquanto naves espaciais se acoplam formando uma estação, com americanos e russos trabalhando juntos. A eles se juntam representantes de todas as nações do nosso mundo e, ao longo dos anos, de outros mundos habitados em nossa galáxia, criaturas estranhas mas que concordam que a estação espacial Alpha irá levar uma mensagem de paz para cantos desconhecidos do universo.
Passam-se 400 anos e estamos num planeta que é praia branca, mar azul e céu também. Habitam esse paraíso seres branco-azulados, altos, magros e de feições suaves. Lá, pescam pérolas preciosas e, através de um bichinho meio lagarto, meio rato ou gato colorido, reproduzem as pérolas que retornam ao mar. É um planeta habitado por seres que acreditam em sustentabilidade, paz e harmonia.
Até que acontece o Apocalipse. Naves explodem tornando negro o céu azul e o planeta é destruído pela guerra dos humanos.
Em outra praia, um rapaz e uma mocinha tomam sol. São agentes da Federação, Valerian (Dane DeHaan) e Laureline (Cara Delevingne). Ela está brava porque ele se esqueceu do aniversário dela.
Valerian tenta seduzir Laureline, prometendo até casamento mas ela não confia em sua fidelidade:
“- Não quero ser mais uma em sua lista de conquistas.”
Mas são interrompidos em sua briguinha por uma voz que avisa que a nave chegou no planeta Kyrian. Os dois se apressam a deixar a praia virtual e preparam-se para pousar.
A eles é confiada uma missão e começa uma aventura que passa pelo mercado mais bem abastecido de todas as galáxias, na Cidade dos Mil Planetas. Vão encontrar criaturas de sonho e pesadelo.
A mais interessante de todas elas é Bubble (Rihanna) que faz um extraordinário show para Valerian e ajuda o rapaz a avaliar melhor seus sentimentos por Laureline.
O filme é baseado nos quadrinhos lançados na França em 1967 por Pierre Christin e Jean-Claude Mézières e que encantavam Luc Besson aos 10 anos de idade. E levou 7 anos para ser produzido.
O diretor convocou artistas gráficos originais que criaram a beleza e a estranheza dos personagens. E aqui, não são todos os alienígenas que são maus. Ao contrário, os seres do planeta destruído conseguem conquistar Valerian e Laureline e há uma ajuda mútua, baseada em empatia.
Fica clara uma mensagem pacifista bem atual e um sonho de esperança para o futuro não só da humanidade mas de todo o universo.
Pode ser até algo bem distante da cabeça de muita gente. Mas a beleza visual impressionará a todos, certamente.
Talvez o filme pudesse ser mais curto, eliminando cenas desnecessárias para a compreensão da história e ganhando assim pessoas sem muita paciência para mais de duas horas de filme.
Quem quiser ver os frutos de uma imaginação prodigiosa, embarque no filme, sem pestanejar.



segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Os Meninos que Enganavam os Nazistas


“Os Meninos que Enganavam os Nazistas”- “Sac des Billes”, 2017
Direção: Christian Duguay

Uma bolinha de gude azul, escapa das mãos de um menino que redescobre Paris, depois de uma ausência forçada pela ocupação alemã, durante a Segunda Guerra.
O ano é 1944, o mês agosto, é verão e bandeiras francesas tremulam nas janelas da cidade. Paris foi libertada.
O menino adolescente relembra então o que aconteceu em 1942, quando ele e sua família judia tiveram que fugir do perigo nazista.
Joseph, o Jojo, tinha 10 anos (Dorian Le Clech, estreante talentoso), e era o caçula da família de quatro filhos. Maurice, seu irmão (Batyste Flurial) tinha 12 anos e os dois eram muito unidos.
Crianças alegres e levadas, filhos do barbeiro do bairro judeu (Patrick Bruel faz o pai, ótimo) e de uma doce mãe, violinista (Elza Zylberstein), eles não se davam conta do que acontecia. Aliás, é próprio da infância manter um clima de eterna brincadeira.
Mas logo o pai deles tem que mandá-los para o sul da França, onde já estavam seus dois irmãos maiores, em Nice.
O perigo era sério. Estrelas amarelas com a palavra “Judeu” tinham que ser costuradas em suas roupas. O antissemitismo era feroz e crescia.
Com o coração apertado vemos o pobre pai tendo que ser severo para que as crianças acreditassem no perigo:
“- Você é judeu? ”, pergunta o pai.
“- Não! ”, responde o menor e leva um tapa do pai, que renova a pergunta:
“- Eu sei que você é judeu! “
Assustado, depois de mais um tapa, ouve o pai explicar:
“- Melhor levar um tapa agora do que perder a vida por medo de levar um tapa. Não digam para ninguém que são judeus. Entenderam? É muito perigoso."
E lá se vão os dois irmãos para uma viagem até a zona livre. Caminho difícil, que iniciou os dois anos e meio que ficaram longe da família, enfrentando perigos, doenças e, principalmente, precisando crescer rápido. Amadurecer à força, para poder encarar decisões complicadas e salvar a própria vida.
O filme é uma adaptação da biografia “best-seller” de Joseph Joffo, que conta essa história real. É através dos olhos do menino que ele foi que vemos os acontecimentos.
Sabemos quão terríveis foram esses anos de guerra, especialmente para quem era judeu. A novidade é que há aqui sofrimento e dor, mas há também a amizade entre os dois irmãos, se apoiando frente ao medo e perigos pelos quais passaram.  E a coragem e perspicácia, além da sorte que tiveram, ao passar muito perto da morte certa.
O filme é comovente, nos fazendo temer pelas crianças o tempo todo e suspirar fundo quando conseguem se safar com êxito de situações aterrorizantes.
Impossível não sentir um nó na garganta quando Joseph, o Jojo, pode enfim, gritar a plenos pulmões para que todos ouçam:
“Eu sou judeu!”
Produção modesta, o mérito do filme, dirigido com acerto pela canadense Christian Duguay, é contar essa história que não pode ser esquecida por quem a conhece e ensinar uma lição para as novas gerações. Para que nunca mais se repita.


domingo, 6 de agosto de 2017

O Filme da Minha Vida


“O Filme da Minha Vida”, Brasil, 2016
Direção: Selton Mello

Embrulhado para presente, num dourado iluminado, o filme dirigido e roteirizado por Selton Mello, começa apresentando o jovem personagem principal, vivido por Johnny Massaro, num monólogo em “off”, enquanto imagens belíssimas de Walter Carvalho, mostram o caminho de terra e os trilhos do trem, nos anos 60, no sul do Brasil:
“No começo eu só via o início e o fim dos filmes, dizia meu pai...Depois eu entendi que o meio era tão importante quanto o fim. Meu pai é francês, minha mãe é brasileira (...)
Ele tinha bom coração e acreditava nas pessoas. Poucos amigos mas eram como da família. Era um homem simples e por isso fui estudar na capital. O dia da minha partida foi uma festa. No dia em que voltei com meu diploma de professor, meu pai partiu para a França. E o resto, eu não posso contar”, diz ele com um olhar enigmático.
E é justamente, o meio, o recheio, que vai ser visto em cenas que a memória de Tony guarda da infância com seu pai (Vincent Cassel, presença marcante e bela). O presente é um lugar de conflitos.
A fazendinha, o pomar, a névoa que encobre a paisagem, o campo, o cavalo, a vaca, o galpão onde Tony guardava a bicicleta, seu meio de transporte, ao lado da motocicleta que o pai deixou. Contrastando com a luminosidade idealizada dos dias felizes, o presente é enevoado, a chuva é cinza e a mãe tristonha (Ondina Clais).
Os afetos são tímidos e faz falta a presença do pai que tudo invade. Tony não entende porque ele foi embora sem dar explicações. Qual o caminho a tomar para descobrir por que ele os deixou? E assim se perguntando, vai palmilhar o passado em suas lembranças para libertar seus sentimentos amorosos presos a essa lacuna inexplicável.
Parece que sua vida não pode adquirir uma expressão mais sólida sem essa resposta. Paco (Selton Mello, também atuando), amigo do pai, sujeito rude e afetuoso, é o companheiro desses momentos em que Tony precisa encontrar algo que explique o misterioso comportamento do pai. Mas se Paco sabe algo mais, se fecha em copas.
Uma culpa inconsciente impede Tony de viver o amor por Luna (Bruna Linzmeyer, bela atriz), ela também experimentando sua própria crise de identidade, espelhada na vida da irmã Petra (Bia Arantes), antiga Rainha do Glamour, que não está feliz.
Mas é o trem, no seu ir e vir, dirigido por um inspirado Rolando Boldrin, que será o símbolo da busca que faz Tony finalmente amadurecer. Compreende que a pressa não leva a lugar nenhum. E que o ritmo da vida tem que ser vivido com calma. Sem impaciência.
Relembrar o trauma da rejeição parece começar a lançar luz sobre a escuridão. E depois da tempestade tudo fica mais claro e convidativo.
“O Filme da Minha Vida” é o terceiro longa de Selton Mello, que assinou “Feliz Natal” de 2008 e ”O Palhaço” de 2011. Belo e nostálgico, sua história (“Um Pai de Cinema”) vem do escritor chileno Antonio Skármeta (“O Carteiro e o Poeta”), que faz uma ponta como dono do bordel.
Bem acabado, com uma excelente reprodução de época, o filme nos transporta para um Brasil de afetos sinceros, embalados por uma trilha sonora perfeita que vai de Nina Simone a Aznavour, passando por Sergio Reis cantando “Meu Coração não é de Papel”.
O filme de Selton Mello é um momento de agridoces recordações que envolve a plateia com uma força inesperada. Adorável.