domingo, 20 de setembro de 2020

Mignonne




 “Mignonnes””- “Cuties”, França, 2020

Direção: Maimouna Doucoré

 

Ao som de uma canção na voz de uma mulher, o rostinho de uma menina negra maquiada com brilhos azuis, mostra susto, tristeza, dor e lágrimas. Algo errado aconteceu mas não sabemos ainda o que pode ter sido.

A sequência volta a um passado recente onde a mesma menina, Amy (Fathia Youssouf), arruma a casa e prepara uma surpresa para a mãe. Sobre o lençol esticado com cuidado na cama dela, Amy arruma um desenho que retrata a família, cercado por flores pintadas e recortadas.

Mas, quando a mãe chega, com o bebê nas costas, nem olha para Amy e corre atrás de Ismael, o menor, que entra num dos quartos do apartamento.

“- Não estou brincando “, diz a mãe. “Ninguém pode entrar nesse quarto. Vocês vão dividir esse outro aqui. “

Entendemos que a família que veio recentemente do Senegal para Paris, é tradicional e muçulmana, e está iniciando Amy nos preceitos religiosos reservados às mulheres. E, entre eles, está o privilégio dos homens casados a ter uma segunda esposa.

E é o que Amy escuta da mãe, que, apesar de desolada, tem que preparar o quarto reservado ao novo casal e a festa de boas vindas.

Amy não esconde sua raiva à doutrinação para a aceitação das regras de obediência e pudor reservadas às mulheres. E olha com desagrado o vestido reservado para a festa.

Por acaso, vai à lavanderia do condomínio e vê uma vizinha, Angélica, que é latina, dançando ao som de uma música animada, com roupas justas e longos cabelos soltos, que ela passa a ferro para alisar ainda mais.

Sentindo-se excluída na escola, onde não conhece ninguém, fica encantada com quatro garotas que dançam no recreio, vestidas em shorts e mini saias com blusas bem curtinhas. São as “Mignonnes”, as Lindinhas.

Logo, Amy vai querer ser uma delas. E rouba o celular do primo para aprender passos e poses para se aproximar de Angélica que vai ser sua ponte para as “Mignonnes”.

Na verdade são crianças, de 11 anos e querem ser mulheres. Seduzir e ser famosas como as que aparecem nos celulares com milhares de seguidores. Vestem roupas que revelam seus corpos ainda infantis e quando dançam imitam movimentos sensuais que tem a ver com sexo mas são ingênuas e não sabem o que estão fazendo. Querem ser admiradas e amadas.

Mas para Amy que vê o pai fazer o que quer e a mãe obedecer cegamente apesar da dor que sente no coração, senão vai acabar no inferno como castigo, a liberdade daquelas meninas é o céu para ela.

O filme ganhou o prêmio de melhor realização no Festival de Sundance e, pasmem, foi considerado imoral por pessoas que queriam proibir o filme aqui no Brasil, indo atrás de grupos americanos que também se escandalizaram.

A crítica internacional gostou do filme. Na França não causou nenhum escândalo porque o público entendeu que a diretora, que também é franco-senegalesa, ao invés de querer erotizar as crianças, ao contrário, mostra o que está acontecendo e o equívoco de Amy, exagerando e confundindo a liberdade com o uso de seu corpo infantil para alcançar algo que ela ainda não compreende.

O ritual iniciático de Amy foi difícil e pode servir de exemplo. O filme alerta para um problema que não é de hoje e que faz crianças imitarem mulheres adultas, em programas de televisão em horários diurnos, com o consentimento e a aprovação dos próprios pais. 


sexta-feira, 11 de setembro de 2020

 



“Dukhtar”- “ Daughter-Filha”, Paquistão, 2014

Direção: Afia Nathaniel

 

Um rio de águas azuis leva numa canoa vermelha uma mulher vestida de rosa, com longos cabelos escuros. Ela olha a estrada brilhante que o sol ilumina no rio.

Mas tudo era um sonho que faz com que ela acorde intrigada. A jovem mãe de uma menina de 10 anos, casara aos 15 com um homem bem mais velho que ela.

Assim é no Paquistão, onde duas meninas constroem uma casa de bonecas com lascas de pedras. A mesma pedra das montanhas que rodeiam aquele vale com picos nevados.

A mais jovem diz que quer ter uma casa como aquela:

“- Então você vai ter que esperar. Só mulheres casadas tem direito a ter uma casa. ”

A pequena é inocente e a maior acha que não é a hora de contar o que sabe. Diz apenas:

“- Depois de casar você também vai ter filhos. ”

“Como é que se faz um bebê? “ pergunta a pequena.

“- Isso também é um segredo. ”

Mas a menina insiste e finalmente a maior responde  que quando sua irmã casou, disse para ela que quando um rapaz olha uma moça e ela também olha para ele, um bebê começa a crescer na barriga dela.

“- Por isso seu pai não deixa você sair de casa “ acrescenta.

A aldeia em que vivem está muito longe do resto do mundo. A vida é simples e as cores que vestem as mulheres são belas como as árvores amarelas do vale. Mas a paisagem dos picos é só rocha e neve.

Infelizmente, a natureza humana é a mesma em toda a parte. E o pai da menina pequena, que é um chefe local, vai ter que seguir a tradição cruel que não leva em conta os sentimentos das mulheres.

Há uma inimizade antiga com um grupo que vive não longe dali. Muitos já morreram por causa dessa inimizade. A única coisa que pode fazer cessar uma  vingança sem fim é a filha do líder casar-se com o chefe do outro clã. A paz será selada com esse casamento.

Agora entendemos o ar tristonho da mãe da menina. Ela mesma tivera um destino igual, casando-se com um marido muito mais velho e rude, porque seu pai assim decidira.

E quando chega um amigo para visitá-los, a troca de olhares do homem bem mais jovem que o chefe e a mãe da menina, adivinhamos que vai acontecer algo inesperado. Ele aproveita um momento a sós com ela e sussurra :

“- Sei que você é infeliz. Eu queria ter pedido você em casamento mas seu pai já havia dado sua palavra... mas se ficar viúva...”

A vida das mulheres não é fácil nessas montanhas. Sofrem sozinhas e obedecem ao pai e ao marido. Aliás os homens vivem brigando, se vingando pela lei do olho por olho, são desconfiados e rudes.

Mas um ato de rebeldia pode mudar essa sequência de injustiças e crueldade.

O filme “Daughter” é singelo e além de mostrar a tradição desse povo, vai também seguir mãe filha em sua busca pela liberdade e o direito de decidir a própria vida.