domingo, 29 de agosto de 2010

5XFavela - Agora por Nós Mesmos






“5XFavela – Agora por Nós Mesmos”- Brasil, 2010

Direção: coletiva








Mesmo antes de "Orfeu Negro", do francês Marcel Camus de 1959, as favelas do Rio de Janeiro eram cantadas em samba e versos.
Nos anos 60, cinco rapazes brancos, de classe média, subiram o morro para mostrar a favela para o povo do asfalto. Era o Cinema Novo. “Cinco vezes favela” reuniu Cacá Diegues, Marcos Farias, Leon Hirszman, Miguel Borges e Joaquim Pedro de Andrade. Tornou-se um clássico do cinema brasileiro.
Cinquenta anos depois, o mesmo Cacá Diegues e sua mulher, Renata Almeida Magalhães, são produtores do filme “5 X Favela – Agora por Nós Mesmos”, concretização de um projeto de Diegues, que vinha fazendo um trabalho de oficinas de cinema com comunidades de favelas do Rio.
Diz Cacá Diegues em uma entrevista a Luiz Carlos Merten:
“Acho que estou realizando um dos sonhos da minha geração de Cinema Novo. Sempre quisemos colocar a cara do Brasil na tela e agora extrapolamos. A periferia, que era nosso tema, olha para si mesma, reflete sobre si mesma.”
E Renata, mulher de Cacá acrescenta:
“O objetivo do filme foi mostrar as várias nuances da favela. Infelizmente há muita gente que pensa que lá só existe violência, o que é errado. Por isso, a opção de colocar a câmera na mão dos cineastas das próprias comunidades.”
Os cinco episódios que compõem “5X Favela” são muito criativos e juntos são uma obra única.
O primeiro,“Fonte de Renda”, dirigido por Manaíra Carneiro e Wagner Novais, conta a história de um rapaz negro da favela que entra na Faculdade de Direito.
“- Como é o seu nome?” pergunta o professor.
“- Máicon. Sou o primeiro da família a entrar na Faculdade. Quero estudar e ajudar a minha comunidade.”
Mas os livros são caros e o salário da lanchonete é pouco. Máicon se envolve então com a venda de drogas para os colegas, apesar dos conselhos do padrinho ex-policial (Hugo Carvana), que o alerta:
“- Vai pela sombra, rapaz.”
O segundo episódio é “Arroz com Feijão” de Rodrigo Felha e Cacau Amaral e no início, escutamos Paulinho da Viola cantando no fundo:
“Você sabe que a maré
não está moleza não...”
E entramos na casa pobre onde vive gente honesta e feliz. Flores de papel enfeitam a mesa. O casal se ama. O filho sorri, cúmplice, dormindo no sofá da sala.
É aniversário do pai e o filho resolve comprar um frango de presente para ele, que reclamava com a mulher de estar cansado da marmita de arroz e feijão todo santo dia.
É o episódio mais tocante graças à atuação dos meninos Pablo Vinicius e Juan Paiva. Ruy Guerra contracena com as crianças e o trio encanta e diverte.
“Concerto para Violino “de Luciano Vidigal é o episódio no qual aparece a violência. Ouvimos tiros pela primeira vez.
Soldado e chefe do tráfico se unem para resgatar armas roubadas do exército. Três crianças criadas juntas na favela vão enfrentar uma cilada cruel do destino.
“Deixa Voar” de Cadu Barcellos mostra uma cena na laje de uma casa de favela. A brincadeira é soltar pipa e cortar a linha da pipa do outro com manobras difíceis e acerol.
“Soltar pipa é uma alegria,
Esta é a nossa diversão ”canta o rapper.
Mas, quando uma pipa se perde, um garoto corajoso vai buscá-la no território proibido da favela vizinha e descobre que é preconceituoso.
“Acende a Luz” de Luciana Bezerra é baseado em histórias reais vividas pelos moradores da favela em 2008.
Véspera de Natal e as famílias se preparam para a festa. Mas falta luz e todo mundo se empenha em conseguir que a ligação seja feita pelo homem da luz que sobe a favela.
O mais engraçado e terno dos episódios.
Roberto Carlos canta:
“Eu quero ter um milhão de amigos...”
É isso aí. “5X Favela – Agora por Nós Mesmos” é a oportunidade de subirmos o morro na companhia desses jovens talentosos e olhar a realidade das favelas pelos olhos de quem nasceu e cresceu lá. Muito preconceito vai cair por terra. Estereótipos cansados vão ser substituídos por um novo modo de ver.
Porque nesse filme mais Brasil aparece. São negros, brancos, mulatos de todas as idades e crenças, vivendo em situação bem precária mas que não perdem a alegria, a solidariedade ou o esforço da esperança de melhorar.
Vendo “5X Favela- Agora por Nós Mesmos”, vamos nos dar conta, talvez, de que a vida nos morros tem até mais humor.

Um Doce Olhar




“Um doce olhar”- “Bal”, Turquia/ Alemanha, 2010
Diretor: Semih Kapanoglu


“Bal” quer dizer “mel” em turco. E é um filme que precisa ser descoberto pelo espectador.
Aparentemente simples, sem muitos acontecimentos, parece contar apenas a história de um menino que não fala, gagueja muito quando lê e preocupa a mãe, plantadora de chá (Tulin Ozen). O pai, Yakup (Erdal Besikcioglu) é apicultor e a família muçulmana mora em uma aldeia perdida no norte da Turquia, região montanhosa e coberta de florestas.
Mas, se você se deixar penetrar pelo filme, verá que ele tem muitos caminhos como a floresta onde quase tudo se passa.
Vamos presenciar de uma maneira íntima as dificuldades que podem atrapalhar o rito de passagem da primeira infância para “a idade da razão”, na qual uma criança descobre o mundo através da capacidade de ler e passa a compreender a cultura em que vive para nela se inserir.
Yusuf tem 6 anos, é inteligente mas não consegue ler nem falar sem gaguejar muito. Interpretado por Boras Altas, um ator excepcional e muito bem dirigido, ele logo nos conquista
e ficamos tocados pelo seu amor incondicional por seu pai-heroi.
A cena inicial do filme vai nos preparando para nos identificarmos cada vez mais com uma criança sensível, para quem o mundo é o lugar mais escuro da floresta quando o pai não está com ele.
Trabalhando no alto da copa das árvores, Yakup, o pai, enfrenta o perigo, acompanhado pelo olhar admirado do filho Yusuf, que o ajuda a içar para cima os utensílios de que o pai necessita para o manejo das abelhas e a extração do mel. Seu rosto brilha e vemos pelos seus olhos a luz dourada filtrada pelas folhas verdes dos ramos mais altos da árvore. Um cenário idílico.
Mas acontece o acidente que antevíamos. O galho se quebra e o pai fica pendurado da árvore. Queda iminente? A floresta-mundo fica escura e aparece o terror de perder a quem se adora.
Os letreiros passam na tela e a gente fica cismando... O que aconteceu?
Parece que a vida continua porque, em seguida, presenciamos a uma das cenas-chave de “Um doce olhar”. O menino no colo do pai conta que teve um sonho:
“- Eu estava sentado sob uma árvore...”
“-Shhhh... Sussure no meu ouvido. Os sonhos não devem ser espalhados por aí“, diz o pai.
O menino passa a cochichar e não escutamos o que ele diz.
“-Não conte seus sonhos para ninguém”, recomenda o pai.
“Um doce olhar” é o terceiro filme de uma trilogia que não entrou em cartaz no Brasil. O primeiro filme é “Yumurta” (Ovo), que passou no Festival de Cannes em 2007 e conta a vida adulta de Yusuf. O segundo é “Sut” (Leite) que foi visto no Festival de Veneza em 2008 e narra a juventude do nosso menino de “Bal ”(Mel). O diretor contou a história de trás para a frente e parece que há uma intencionalidade nisso.
Luiz Carlos Merten que entrevistou Kapanoglu em Berlim, onde “Um doce olhar” ganhou o Urso de Ouro, conta no Estadão que perguntou-lhe se toda a trilogia não seria um sonho do menino Yusuf. Merten diz que o diretor sorriu e confirmou que havia feito “Um doce olhar” e toda a trilogia com essa intenção mas que “pouquíssima gente fazia essa viagem”.
Já que ficamos sabendo disso que tal assistir a “Um doce olhar”totalmente descompromissados com a realidade?
“A vida é sonho” é o titulo de uma peça de Calderon de La Barca.
Pois é. No lusco-fusco da floresta, um menino que tem horror a perder seu pai sonha com a vida. A árvore o envolve com suas raízes imensas e o sustenta para que siga em frente.
Esse menino vai aprender que não se pode agarrar o reflexo da lua na água... Mas que um ser adorado que partiu, continua vivendo no coração daquele que ama.
E, com uma menina maior que ele, aprenderá também que a poesia pode ajudar a entender a vida. Escutou os versos na escola e os repete sussurando:
“Noites azuis de verão,
Pelas veredas caminharei...”





terça-feira, 24 de agosto de 2010

Coco Chanel e Igor Stravinsky







“Coco Chanel e Igor Stravinsky”- França, 2010

Direção: Jan Kounen






Uma outra biografia de Chanel no cinema? Pois é, mas muito diferente das outras. Essa assume de cara a lenda, que é como Chanel contava as histórias que inventava sobre si mesma.

Porque se o filme “Coco e Igor” não é pura ficção, também não é inteiramente verdadeiro.

Jan Kounen, o holandês que assina a direção e o roteiro, inspirou-se no romance do inglês Chris Greenhalg de 2003, que mistura realidade e imaginação para contar um suposto caso entre a estilista mais marcante do século XX e o homem que revolucionou a música clássica, inspirando-se em motivos folclóricos russos.

Quando aconteceu a primeira apresentação da “Sagração da Primavera” ( “Le Sacre du Printemps”) em Paris, 1913, no Théâtre des Champs Elysées, dançada pelo “Ballets Russes” com coreografia do mais famoso bailarino do mundo, Vaslav Nijinsky, foi um escândalo. A burguesia da época não entendeu a proposta da nova linguagem da música e vaiou o compositor e os dançarinos. O tumulto foi tanto que a polícia teve que intervir.

Apenas ela, de branco, vestida à la Vionnet, guarda a compostura na platéia e vê-se curiosidade, quase aprovação, em seu rosto expressivo. Respira ao ritmo da orquestra.

Mademoiselle, como todos a chamavam, iria adorar a interpretação de Anna Mouglalis, longilínea, altiva e distante, qual ave rara em meio a um bando de gralhas. Em 1913, Chanel ainda não era quem viria a ser mas, tal Igor Stravinsky, era alguém que podia compreender o novo e admirar o fora do comum.

Sete anos mais tarde, depois da Primeira Grande Guerra, e da morte de Arthur “Boy” Capel, seu grande amor, ela é apresentada formalmente a Igor Stravinsky. O compositor estava exilado em Paris, sem dinheiro, com quatro filhos e a mulher Katia tuberculosa ( interpretada com doçura por Yelena Morosova).

“- Até de luto ela fica elegante”, diz alguém que a observa.

“- Foi o marido?”

“- Não. O amante. Boy. Um acidente trágico.”

Chanel havia se refugiado fora de Paris em sua casa Bel Respiro em Garches, após a morte de Boy. Mas era o casamento de uma de suas melhores amigas, Misia Sert, e ela fez uma exceção e apareceu por lá.

Já fascinada por Igor, Chanel encarna uma mecenas e convida o compositor a passar um tempo em sua casa para fazer modificações em sua “Sagração”. Convite feito e aceito, seguiram Chanel e a família Stravinsky para a Bel Respiro.

Um dos grandes acertos de Jan Kounen é causar um impacto estético no plano que mostra a casa, beje com janelas negras, em meio a um jardim requintado.

“- Eu nunca tinha visto uma casa com janelas negras...”, diz Katia, mulher de Igor.

E, guiados por sua anfitriã, acompanhamos os russos descobrindo, com estranheza, a beleza e a perfeição daquela casa art-decô, concebida como cenário para aquela mulher tão diferente de tudo o que conheciam.

“- Não gosta de cor, Madame?” pergunta Katia.

“-Só se for preto “ , retruca Chanel.

Será um curto espaço de tempo. Uma primavera e um verão. Mas o suficiente para que a atração existente entre aqueles dois se expressasse em uma sexualidade desprovida de afeto.

A câmara ronda os corpos brancos e mostra a agonia e o êxtase febrís. Há distância e proximidade mas nunca intimidade. Ela, um pássaro pernalta, pescoço longo e crista. Mais escamas que penas. Ele, homem severo, músculos treinados, olhar distante e sofrimento na alma.

“-É preciso se esquecer para se perder na música”, diz ele a ela.

Ela não fora feita para a languidez. Ele, pesado, unido à terra, era dotado de asas só no espírito.

Duas almas sensíveis e angustiadas. Dois gênios do século XX.

Ela compreendeu a música dele mas sua postura de vida não admitia que ele não a admirasse nem muito menos o seu machismo.

“- Eu sou tão poderosa quanto você, Igor. E tenho mais sucesso”, diz ela a ele.

“- Você não é artista, Coco. É uma vendedora de tecidos.”

Embate de egos.

Durante o tempo em que viveram em Garches ele trabalhou a sua “Sagração da Primavera”, que fez muito sucesso quando foi reapresentada. Ela, que já havia revolucionado o modo como as mulheres se vestiam, livrando-as dos espartilhos e apresentando-as ao jersey e a um modo feminino de vestir roupas masculinas, lançou o perfume Chanel Número 5, um dos ícones do mundo do consumo.

No filme, os figurinos executados por Chattoune Bourrec e Fabien Esnard-Lascombe, que contaram com a ajuda de Karl Lagerfeld, estilista à frente da Maison Chanel, são esplêndidos, inspirados nos desenhos de Chanel e revistas Vogue da época.

“Coco Chanel e Igor Stravinsky” é um filme requintado até nos mínimos detalhes. E tem atuações marcantes de Anna Mouglalis e Mads Mikkelsen.

Se você não sair correndo do cinema e esperar os letreiros finais, vai ver uma cena final tocante. Em preto e branco, em 1971, ano da morte de ambos, há um encontro de almas que não foi possível durante a vida terrena deles. Na essência haveria uma afinidade que não foi vivida...

A única prova tangível disso é o ícone dourado que Igor trouxera da Rússia e dera para Chanel e que ela conservou perto de si até o fim.

Um objeto sagrado para ele e para ela uma lembrança do encontro com o homem que a marcou? Pode ser. Ela nunca disse nada a ninguém sobre isso...

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A Origem





“A Origem”- “Inception”, Estados Unidos/ Reino Unido, 2010

Diretor: Christopher Nolan



Preparem-se para uma viagem vertiginosa.

Um homem é jogado na praia por ondas de um mar espumante. Seu rosto é tenso. Ele parece desmaiar na água e vê um menino e uma menina de costas para ele. Em sonho?

E a partir daí você não vai desgrudar os olhos da tela.

Cansaço? Nem pensar. Porque você vai ter que prestar muita atenção nas próximas duas horas e meia. E, mesmo assim, tem gente que precisa voltar e ver de novo, de tão complexa e intrigante é a trama. Porque tudo é misterioso e as cenas se sucedem com muita rapidez.

Um quebra-cabeças monumental vai ser montado peça por peça.

A sensação de sermos sugados para dentro de uma história é a experiência que fica depois de assistirmos ao filme “A Origem”, “Inception” no original, que pode ser melhor traduzido por “Inserção”.

As sinopses descrevem o personagem Dom Cobbs, vivido por Leonardo Di Caprio, como um ladrão de mentes que é um fugitivo. Ele consegue dormir, entrar no sonho de uma outra pessoa e roubar uma idéia. Um “hacker”mental.

Pois bem. Um novo desafio é apresentado a Cobbs. Um empresário japonês muito poderoso quer que ele implante uma idéia na cabeça de um herdeiro cujo pai está morrendo e é concorrente dele.

Para conseguir isso, algo que parece impossível aos olhos do japonês, Cobbs começa a arregimentar pessoas para ajudá-lo nessa missão (Arthur é Joseph Gordon-Levitt, Ariadne é Ellen Paige, Eames é Tom Hardy e Yusef é Dileep Rao).

E Cobbs parece saber fazer a tal inserção. Vagamente nos damos conta de que ele diz já ter feito isso no passado.Os demônios vão ser enfrentados novamente (Mal, personagem de Marion Cotillard).

E começa uma ação estonteante na qual Cobbs é sempre alvo de perseguidores surgidos de não sei onde.

Efeitos visuais espetaculares desafiam a nossa própria mente e ajudam a criar o estranhamento peculiar à narrativa que nos faz prestar atenção ao irrelevante.

Um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho...

Eu diria que não estamos no universo de sonhos que foram descritos por Freud em seu livro “A interpretação dos sonhos” como “os protetores do sono”. Construidos com os “restos do dia” às vezes são lembrados pelo sonhador e podem ajudar em uma terapia psicanalítica através de uma linguagem a ser decifrada pelo paciente e seu terapeuta.

Talvez se pareçam mais com delirios essas cenas que arrastam Cobbs e seu time para quatro diferentes níveis de acontecimentos sonhados em grupo. Tudo sempre muito perigoso...



A melhor imagem visual para o que se passa com Cobbs parece ser o desenho feito pela “arquiteta” Ariadne: um circulo envolvendo outros inúmeros círculos. Um labirinto circular de onde só se sai pulando para outra dimensão, para cair em outro circulo e assim por diante, “ad infinitum”. Seria uma alusão à mitológica Ariadne e seu fio que ajuda o herói a matar o monstro e sair do labirinto vitorioso?

Ou ainda: enormes espelhos face a face multiplicam ao infinito a imagem de Cobbs e Ariadne, até que ela arrebenta um deles e passa através para um novo espaço. É a “Alice” de Lewis Carrol vista por Tim Robbins?

Sim. Porque aqui e ali podemos reconhecer citações de outros filmes e homenagens a outros diretores como Kubrick de “2001- Uma Odisséia no Espaço” (cenas de levitação no hotel sem gravidade como uma nave espacial e a sequência final da viagem no tempo), Orson Wells (o catavento é “Rosebud” do “Cidadão Kane”) ou ainda os filmes de James Bond e “A Ilha”no qual Leonardo Di Caprio foi dirigido pelo mestre Martin Scorcese.

“A Origem” é um filme fascinante e o diretor Christopher Nolan conta que ficou por dez anos escrevendo o roteiro:

“Queria fazer um filme de ação, num mundo reconhecível, mas que pedisse ao público para entrar na viagem, desde o começo”, diz ele.

E essa é a originalidade do roteiro que nos força a seguir os detalhes cada vez mais intrigantes da história na tela. Somos obrigados a acompanhar Cobbs em sua fuga da realidade insuportável. Uma empatia forçada pela narrativa instala-se entre nós e o protagonista surtado.

Porque sabem os estudiosos da mente humana que, na tentativa de fugir de uma realidade dolorosa, a pessoa tenta criar um novo mundo, a neorealidade da loucura. Parece que é isso que acontece aqui porque tudo indica que Cobbs sofreu uma perda de modo terrível e se sente culpado. Seu luto não pode ser vivido porque ele foge da dor através das distrações rocambolescas criadas por sua própria mente.

Mas essa maneira de distrair-se parece tornar-se ainda mais dolorosa que o enfrentamento da verdade. Então, no fim do filme, Cobbs, apesar de quase cair na tentação da roda-viva de suas lembranças martirizantes, volta à vida, permite-se o perdão e o esquecimento.

Se bem que advirto que essa é só uma das muitas maneiras de se entender esse filme. Para cada cabeça uma sentença? Pode ser. Talvez a ambigüidade esteja nos planos do diretor que instiga o espectador a pensar.

Para mim a lição que fica é a de aprendermos que a pior realidade será sempre melhor que o melhor dos sonhos. Porque é acordado que podemos agir, tentando mudar a realidade ou então aceitá-la, quando não tem remédio e partir para a vida, apesar de tudo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Vincere



“Vincere”, Itália, 2009

Diretor: Marco Bellocchio





Desde as primeiras cenas, o diretor, Marco Bellocchio, aos 70 anos, impressiona. Mostra um fanfarrão que desafia Deus e uma mulher extasiada perante esse homem de gestos teatrais e olhar escuro. Tudo está ali. Os elementos da tragédia se apresentam com simplicidade magistral.

“Vincere”, baseado no livro “O filho secreto do Duce” de Pieroni, com roteiro assinado pelo próprio Bellocchio e Daniela Ceselli, conta um episódio desconhecido da história da Itália pela voz de uma mulher que foi riscada da história oficial. Ida Dalser, a primeira mulher de Benito Mussolini e seu filho, vão ser cruelmente destituídos de liberdade e condenados a uma morte em vida, ambos trancados em manicômios, onde morreram.

E ela acalentara tantos sonhos... Chegara a vender tudo o que tinha, para ajudar o homem que adorava a fundar o jornal “Il Poppolo d’Italia”, embrião do Partido Fascista.

Na cama com ele, seus olhos fechados de amor, não viam os dele, abertos, procurando outro êxtase em fúria contida. Casam-se em 1914 e ela tem um filho, reconhecido pelo pai (o ator Filippo Timi faz os dois papéis com intensidade feroz).

Quando estoura a Primeira Grande Guerra, ele se alista e ela só vai reencontrá-lo em uma cama de hospital, ferido, assistido pela mulher Rachele (Michela Cescon), por quem fora preterida.

E aqui começa um calvário que Bellocchio filma de maneira empática e solene.

Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno, belíssima e excelente atriz) nunca aceitou deixar de ser a mulher do Duce e mãe de seu primeiro filho, apesar de ter todos os documentos dessa união destruídos pelos fascistas. Calada de forma brutal, ela não se deixa abater. Proclama alto e bom som que ela é a verdadeira mulher do homem que todas as italianas queriam.

Diz Bellocchio:

“Essa mulher aceitou a própria destruição. Mas não foi por loucura. Ela escolheu a rebelião absoluta, o que prova uma coragem extrema.”

Mas essa coragem torna-se a obsessão de uma vida.

Após o episódio do hospital, no qual ela encontra a mulher que seria a esposa oficial até o fim, é no cinema que Ida e nós, espectadores, vamos vendo as imagens reais, em preto e branco, da ascensão de Mussolini, não mais um ator, mas ele mesmo. As imagens das notícias passadas nos cinemas da época impactam e mostram como Bellocchio é um mestre da narrativa.

Aliás o diretor usa o cinema dentro do filme com sensibilidade. Em uma passagem, afastada do filho, Ida assiste a “The Kid” de Charles Chaplin. Sua dor, identificada à dramaticidade da dupla separada na tela, emociona. O psiquiatra que tenta ajudá-la no manicômio, assiste ao seu desespero e alude aos tempos difíceis que todos viviam sob o fascismo. É preciso ser ator e suportar a humilhação para sobreviver.

Mas Ida não sabe ser razoável...Ela tem um lado Medéia que a empurra para a tragédia.

Eis que uma mulher representa uma nação: a Itália busca um “Salvador”. Benito Mussolini ascende à sua sacada em Roma onde discursa socando o ar, mãos na cintura e “rictus” facial de um possuído, para o povo que o aclama. Ele grita: “E vinceremo!”

Mas tanto a mulher quanto a nação vão passar do amor enlouquecido à decepção e ao ódio.

Marco Bellocchio já mostrou na tela a loucura das Brigadas Vermelhas em “Bom Dia, Noite” (2003) que trata do seqüestro e assassinato de Aldo Moro em 1978.

Em “Vincere” expõe a loucura do fascismo, mostrando como sua ideologia de extrema direita faz Mussolini aliar-se a Hitler e jogar a Itália em uma guerra da qual o país sai combalido.

Tanto na vida privada como na pública, Mussolini foi o algoz onipotente, obcecado pela vitória a qualquer preço.

O mundo não pode esquecer essa história cruel de fanatismo e impiedade. “Vincere”, com grande arte, cumpre esse papel de nos fazer lembrar das conseqüências arrasadoras da tirania no poder.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Salt







“Salt” – Estados Unidos, 2010

Diretor: Phillip Noyce



Filmes de ação não fazem o meu gênero. Mas fui ver “Salt”, ainda que de pé atrás.

Aliás, fui ver Angelina Jolie. E tenho que confessar que me diverti. O filme é ela. Pulando, escalando, correndo, lutando, matando gente ruim. E sem quebrar uma unha. Mentira. Vi uns arranhões no joelho e algum sangue no rosto e na camisa rasgada, quando ela enfrenta um pelotão sozinha.

Sim, porque a gata Jolie sempre cai em pé, além de ter sete vidas e muito fôlego. E, de quebra, esbanja beleza com seus olhos de uma cor que mais ninguém possui, como canta Roberto Carlos. Para não falar daquela boca que só fica linda nela.

“Salt” não quer ser um filme realista. Longe disso. É pura fantasia e entretenimento. O diretor e roteirista, o australiano Phillip Noyce, consegue engatar uma coisa na outra usando, além de muita ação, reviravoltas de enredo, surpresas, complôs e jogo de espelho. E por isso a gente fica se perguntando o filme inteiro: quem é Salt?

Aparentemente Evelyn Salt, a personagem de Jolie, é uma agente da CIA e ponto final. Mas, por trás daquela aparência mansa esconde-se uma fera ferida (outra vez o Roberto).

Casada com um biólogo alemão que encontrou no borboletário de um museu, sem mais aquela, ela se transforma de borboleta em aranha.

E mais não conto porque seria estragar a graça do filme.

Mas podemos falar um pouco de Angelina Jolie.

O roteiro de “Salt” tinha sido imaginado para Tom Cruise que desistiu do projeto porque percebeu que iria fazer mais do mesmo. Achou o roteiro muito parecido com “Missão Impossível” e foi rodar “Encontro Explosivo”com Cameron Diaz, também em cartaz em São Paulo.

E dá para entender porque Cruise não quis e Angelina pegou correndo. “Salt”só tem graça com uma mulher no papel principal. Faz toda a diferença. Mérito dela ter percebido isso.

Aliás, Angelina Jolie estreou cedo no cinema, aos 6 anos, em um filme com o pai, o ator John Voight, em 1982. Mais tarde foi modelo, estudou cinema na Universidade de New York mas apareceu mesmo para o grande público só em 1998, através de um papel num filme para a TV, no qual fazia Gia, uma top-model drogada que morria de AIDS.

Colecionou vários prêmios em sua carreira, desde então, mas o principal foi o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2000 que ela mereceu pelo papel de uma sociopata no filme “Garota Interrompida”, ao lado de Winona Ryder.

Mais tarde, em 2005, durante a filmagem de “Mr e Mrs Smith”, conheceu Brad Pitt e daí em diante mantém um relacionamento que parece que deu alguma estabilidade à Jolie que tinha fama de rebelde, dois casamentos desfeitos e um filho adotivo.

Hoje, o casal mais bonito do cinema tem no total seis filhos, sendo três adotivos e três biológicos. E aquela que colecionava tatuagens e punhais, não falava com o pai e se drogava, tornou-se embaixadora da Boa Vontade da ONU e frequentemente participa de missões humanitárias para ajudar refugiados na África, Cambodja e Paquistão.

A antiga “ovelha negra”de Hollywood transformou-se e parece que quer esquecer o passado sombrio. Dizem que de tudo que ela ganha uma grande porcentagem vai para a caridade.

Angelina Jolie conseguiu mudar o seu destino e dar exemplo de bom caráter.
Ela merece o sucesso que tem.